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“O Cristianismo do Cristo
e o dos seus Vigários...”
Autor: Padre Alta (Doutor pela Sorbonne)
Tradução de Guillon Ribeiro
1921
Ed. Federação Espírita Brasileira
Direitos cedidos pela Editores Vigot Frères, Paris
Todos
vós, minhas Senhoras e meus Senhores, conheceis de nome esse monge, nascido em
1091 e morto em 1153, que pregou a segunda cruzada - 1147 a 1149 - e que nunca
se pode consolar do desbarato dos Latinos pelos Turcos. Quis Deus guardar o
triunfo para os cismáticos gregos, no ano 1912. Poucos dentre vós, porém, ao
que suponho, terão lido a dissertação que ele dirigiu ao papa Eugênio - 1145 a
1153 - e que foi publicada sob o titulo nada significativo de De
Consideratione - "Tratado da Consideração". Permiti-me, peço,
que eu dela vos cite algumas passagens.
Livro
II, capítulo VI, Seleção de Obras
Místicas, por Buchon, págs. 345 e 346:
"Pode-se, é certo, fazer bom uso do poder e
do dinheiro, santíssimo padre. Podereis, sem dúvida, encontrar algum pretexto
para granjear um e outro. Mas, não podereis tirar do apóstolo o vosso direito,
pois que o apóstolo não vos pode haver dado o que não tinha. Ele vos deu o que
tinha, isto é, a solicitude em cuidar de todas as igrejas, porém não a
dominação, visto que diz em termos formais: "Não "pretendemos ter
dominação sobre o clero, porquanto fomos instituídos para ser o modelo do rebanho" (I Petri, V, 3). - E, para que não suponhais que isto haja ele
dito mais por humildade do que por verdade, a voz do Senhor se faz ouvir assim
no Evangelho: "Os reis das nações as
tratam com império e seus governadores tiram delas benefícios; não seja assim
entre vós" (Lucas, XXII, 25). - Donde manifestamente se vê que a
dominação é defesa aos apóstolos. Tende então, agora, a coragem de juntar a
dominação ao apostolado. Ai está, parece-me, uma associação que vos é defesa.
Portanto, se quiserdes possuir simultaneamente as duas coisas, ambas vos serão
arrebatadas ... "
E
por muitas páginas prossegue S. Bernardo nessa condenação da dominação papal.
Depois,
retoma - Livro IV; capítulos 2 e 3 de Buchon,
páginas 366 e 367:
"Passemos a outras coisas. Pretenso pastor,
andais todo coberto de ouro e todo rebrilhante de soberbos ornamentos. Que bem
resulta daí para as vossas ovelhas? Se eu ousasse, dir-vos-ia que com tudo isso
dais pasto aos demônios, não às vossas ovelhas. Tratava-as dessa maneira S. Pedro?
E S. Paulo zombava assim dos fiéis? Vemos agora todo o zelo da cristandade aplicado unicamente em exalçar a dignidade dos seus
chefes: dá-se tudo às honrarias e ao fausto, nada ou quase nada à virtude.
Permiti, pois, que eu não vos poupe, a fim de que vos poupe Deus. É preciso que
desaproveis tudo isso, se não quiserdes ser desaprovado por aquele cujo lugar
ocupais: quero dizer - S. Pedro, a quem nunca ninguém viu carregado de
pedrarias, nem vestido de seda, nem coberto de ouro, nem transportado sobre uma
facaneia branca, nem cercado de soldados, nem acompanhado de uma multidão de
oficiais... Em tudo isto, sois antes sucessor de Constantino, do que sucessor
de São Pedro."
Referindo-se,
em seguida, à corte romana, à do século XII, que foi, dizem as Histórias Eclesiásticas,
a mais gloriosa época do papado, continua o intrépido doutor:
"Falarei
inutilmente, mas falarei livremente. Porque inutilmente? porque os grandes da
Igreja porão "o máximo cuidado em não me ouvir!"
Ah!
sim, acrescento eu: Deus mostrou que era do parecer de S. Bernardo, retirando
ao papa o poder temporal e permitindo que os Romanos dessem hoje a si mesmos
por chefe, não um cristão, mas um judeu. A cúria romana, como corretivo único,
declara ímpios e apóstatas os cristãos que se lembrem de ser, quanto a este
ponto, do parecer de Deus. Escutemos ainda S. Bernardo:
"Os pontífices
de outrora uma só coisa sabiam: "dar tudo o que tinham e dar-se a si
mesmos...” todo o proveito que cogitavam de tirar dos que se submetiam à
doutrina santa consistia em acharem meios de dispor os povos a servir a Deus
perfeitamente. Era no que trabalhavam de todas as maneiras, muitas vezes com o
coração despedaçado e o corpo em sofrimento, "com fome e sede, mal
vestidos sob o frio", como diz S. Paulo. Mas, onde está agora essa moda
antiga? Veio outra, algum tanto diferente, não é? As práticas do presente não
são inteiramente as do passado. Confesso que o cuidado, a inquietação, o zelo,
a solicitude ainda se fazem perceptíveis; mas, se não diminuíram, recaem sobre
outros objetos. Sim, posso dar testemunho de que agora ninguém se poupa ao
trabalho mais do que antigamente: o emprego do trabalho, o objetivo é que se
tornaram menos admiráveis . Vedes, papa Eugênio, todos esses olhos postos sobre
vós? Que é o que observam? Serão os vossos lábios, para melhor apanharem os vossos ensinos? Não! Olham as vossas
mãos, e não sem motivo, pois que agora são as mãos que fazem todos os negócios
do papado. Mostrai-me, peço-vos, em toda a vossa cidade, alguém que vos haja
reconhecido por papa, sem a intervenção ou a esperança de alguma soma em
dinheiro. E esses protestos, que vos fazem todos os prelados romanos, do seu
devotamento ao vosso serviço, têm outro fim que não seja obter autoridade para
prejudicar? Peço acrediteis que conheço bem o gênio e a maneira de agir desta
nação. Hábeis para o mal, incapazes para o bem; odiosos ao céu e à Terra, por
terem posto mãos sacrílegas sobre uma e outro; sem piedade real para com Deus,
exploradores das coisas santas; rixentos e invejosos uns dos outros, hostis aos
forasteiros; querendo que toda gente trema diante deles; infiéis aos seus
superiores e insuportáveis aos seus inferiores; importunos, desavergonhados,
até obterem de vós o que desejam; ingratos, desde que o tenham obtido, ninguém os pode amar, porque eles a ninguém
amam... Como vedes, sei qual é a vossa camarilha: os incrédulos e os
destruidores formam a vossa companhia; sois guardador oficial de lobos e não de
ovelhas. Convertei-vos, peço-vos, para que não vos pervertam.
Mas, como transformá-los?
Confesso que até ao
presente esse povo pareceu extremamente endurecido e indomado. Estais, porém,
certo de que eles são absolutamente indomáveis? Se tem uma frente dura,
endurecei a vossa ainda mais do que a deles: não há nada tão duro que não ceda ao que o é mais. Se tendes procedido assim, sem nada conseguir, ainda
vos resta fazer uma coisa: Deixai a morada dos Caldeus!" é o que Vos clama
o profeta. Persuado-me de que não vos arrependereis do vosso banimento, tomando
para vossa habitação a terra inteira, em vez de uma cidade apenas." (Livro
IV, capítulo III, tradução de Buchon, pág. 363).
Porém, não! Volto ao
meu primeiro ponto: a vós mesmo é que deveis imputar o que fazem aqueles que
vos cercam, pois eles nenhum outro poder têm, senão o poder que lhes destes, ou
que os deixastes tomar. Corre-vos por isso o dever de compordes a vossa comitiva,
chamando para tão importantes funções, não esses jovens, mas os velhos,
verdadeiros Anciãos do Povo, a exemplo de Moisés: velhos, quero dizer: pela
sabedoria e pela virtude, mais do que pelos anos, e não apanhados unicamente ao
vosso derredor, mas buscados em todas as partes do mundo, porquanto, afinal, em
todas as partes do mundo devem ser escolhidos aqueles que hão de julgar das
coisas que interessam ao mundo inteiro... A não ser assim, os últimos tempos
porão a nu o mal interior que os primeiros tempos haviam ocultado... Muito vos
enganais, com efeito, se credes que a vossa autoridade apostólica promanou de
Deus para ser única, não apenas soberana. Toda pessoa, diz o Livro Sagrado,
deve ser submissa às potências superiores." Não diz: "à potência
suprema", como se fosse uma única; mas': "às potências
superiores", como sendo muitas. O vosso poder, pois, não é o único
instituído por Deus; há outros menores, inferiores, que também o são. Faríeis
um monstro se, destacando um dedo da mão, o ligásseis à cabeça. O mesmo se dará
com esse corpo, que é a Igreja de Jesus-Cristo, se colocardes os seus membros
de modo diverso do em que ele os dispôs; visto que, afinal, não imagino
cometais o erro de crer que não foi Jesus Cristo quem estabeleceu na sua
Igreja, como diz S. Paulo, uns para serem apóstolos, outros para serem
profetas, outros evangelistas, doutores e pastores outros, para trabalharem no
criar santos e em construir o corpo da Igreja ... Oh! infeliz esposa de Jesus Cristo,
que te achas presentemente confiada a condutores que não se envergonham de
guardar para si exclusivamente o que, segundo a ordem determinada por Deus,
reverteria para a Igreja inteira!" (Livro III, capítulo V, págs. 362,
364). “
Mas,
basta destas citações, que eu poderia prolongar mediante outras ainda mais
desagradáveis. As que aí ficam são suficientes para demonstrar que não
constitui impiedade o não se fecharem os olhos às chagas da Igreja, nem
constitui blasfêmia o denunciá-las ao único médico que as pode curar, porquanto,
na Igreja de Jesus Cristo, o médico do clero é o leigo, como o médico do leigo
é o padre: Mandavit Deus unicuique de proximo suo - "Deus deu a cada
um o encargo do seu próximo", diz o Livro Sagrado chamado precisamente Eclasiástico (XVII, 12).
Com
efeito, a desgraça das enfermidades que os profetas e todos os santos denunciam
na Igreja Católica é que os enfermos se apegam às suas enfermidades. Não serão,
pois, a corte romana, nem o clero que reformarão a corte romana. Eis porque os
leigos tinham voto na Igreja, no primeiro século depois de Jesus Cristo,
porquanto, afinal, não é um livro herético, mas o livro sagrado dos Atos dos Apóstolos que nos mostra S.
Pedro pedindo a opinião de todos os fiéis, a fim de eleger, dentre eles, um
substituto para Judas. E sempre, nos dez primeiros séculos, e disso dá
testemunho a história autêntica, os bispos foram eleitos pelo sufrágio
universal, não apenas dos padres, mas dos leigos. Sabeis, por exemplo, que S.
Martinho foi nomeado arcebispo de Tours, pela vontade do povo, que violentou os
bispos e os forçou a renunciar àquele que queriam nomear. Os leigos, pouco a
pouco, se deixaram despojar de todo direito, de toda intervenção, mesmo a mais
devotada, nos negócios da Igreja. O deplorável resultado, que já no século XII
S. Bernardo denunciava, com o tempo se agravou e os católicos, ainda os mais
corajosos na defesa de todos os seus outros direitos e no cumprimento de todos
os seus outros deveres, se dobram covardemente - peço perdão do termo - ante a usurpação eclesiástica que lhes
proíbe falar e agir e só lhes concede uma função, a de obedecer e calar. Esse o
grande mal donde nascem todos os outros, na Igreja Católica. Já não estamos,
contudo, nos séculos da Inquisição e não é preciso ter a coragem de um Savonarola
ou de um Luís de Lyon para ousar agir e falar como se pensa, tanto mais quanto, entre os católicos intelectuais e mesmo
entre os padres, são legião os que pensam hoje o que São Bernardo ousava dizer.
-
Mas, se esses ousarem falar, como faço esta noite, não serão tratados como
modernistas, como protestantes, etc., pelos beneficiários do mal que eles
tiverem a ousadia de denunciar? não serão desconsiderados aos olhos dos
ignorantes que, na Igreja, como alhures, são em número considerável?
Ah!
sim! É essa precisamente a tática desde que livros e revistas se tornaram
objeto de exploração. Em vez de refutarem, injuriam: afirmar ou negar basta,
sem necessidade de prova autêntica do que avançam. Um grande pontífice de não
sei que revista judaica, um destes Dias, me censurava o ter ousado pretender
que o Talmud é posterior ao Evangelho. Não é que ele ignore que mesmo a
primeira parte do Talmud, a Michna, só ficou terminada depois do século II da
nossa era (25); é que ele sabe que o seu público o acreditará
sobre palavra e disso se aproveita. Os rendeiros do clericalismo se utilizam
mais habilmente da confiança de seus fiéis: criaram uma palavra, da qual fazem
ficha de excomunhão: "modernista, liberal, protestante", etc. Logo
que os pregoeiros públicos da ortodoxia, "com os olhos postos na mão
pontifical que os tem de pagar", como diz S. Bernardo, lançam o
qualificativo oficial sobre os adversários da exploração ou da opressão na
Igreja, a causa está julgada. Porque, como também o diz São Bernardo, "não
é da cabeça, mas da cauda do escorpião que se deve temer" (26).
(25) Rabino Elias Soloweyczyk
- "A Bíblia, o Talmude e o Evangelho", pág. 7, nota 1.
(26) Livro IV, 4,
pág. 369
Não
sei se em História Natural é exata essa asserção; na história da Igreja, porém,
é tristemente justa.
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