Afinidades
Conta-nos
Tolstoi que, à beira de um caminho, formara-se pequena roda de curiosos em torno do cadáver, em putrefação, de um velho cão.
"Decerto, teve a morte de todos os cães ladrões: foi justamente
executado", dizia um.
"Era
um cão danado, e foi justo matá-lo", ponderava outro.
"Como
fede o imundo!", dizia terceiro, "e os patifes que o mataram não
sepultaram; deixaram-no envenenando os ares com seus pestíferos miasmas! Eram
da mesma igualha do cão vadio!"
E
pragas e imprecações e blasfêmias inspirava em todos os transeuntes aquele
espetáculo.
Eis senão quando
alguém se aproxima muito mais, curva-se, contempla embevecido os dentes do
cadáver; aproxima-se ainda mais e exclama, encantado: "Como são lindos os
seus dentes! Que simetria maravilhosa! Que marfim perfeito! Esta dentadura é um
poema do Criador!"
Olharam
todos. Quem seria aquele homem que encontrava a beleza, a harmonia, Deus, num
cadáver em putrefação! Seria um anormal, um monstro sem olfato, sem sentimentos
e sem sentidos!
Não;
era o Cristo, o enviado de Deus, aquele que só tem afinidades com o belo, o justo,
o harmonioso, o sublime e, por falta de ressonâncias em sua alma, não vibra com
o mal, com as coisas inferiores.
Até
aí o resumo do conto de Tolstoi, mal feito, talvez.
Seja
assim também a nossa alma. Saiba descobrir algo de bom e de belo em todas as
iniciativas de nossos irmãos. E, partindo desse 1% de bem que exista em 99% de
mal numa obra, não a destrua, mas trabalhe para elevar e aumentar o bem a 2%,
certo de que o mal é passageiro e só o bem é eterno. Esqueça a parte má e
colabore com a boa, porque esta tem que crescer e dominar um dia pela lei
natural do progresso humano. Que importa seja longo e penoso o trabalho, se a
eternidade é nossa!
Todas
as nossas obras retratam seus autores: têm muito de mal e pouco de bem; mas uma
obra má pode ser apenas andaime para outra menos má e assim a pouco e pouco
chegaremos às boas obras. Só não podemos ser mornos, temos que ser quentes ou
frios, porque esta é a lei e aquele que quiser salvar; a sua vida, a perderá.
Só uma atitude nos é proibida e seria o mau exemplo, seria a ociosidade: a de
ficarmos à beira do caminho, maldizendo dos que passam sob o peso de suas
culpas e faltas, tentando dissuadi-los de todas as tentativas e a convencê-las
de que antes de tudo temos que ganhar o reino de Deus, na convicção de que todas
as outras coisas nos serão dadas de acréscimo. Eles não pretendem receber, não
se sentem com direitos adquiridos, mas somente cheios de compromissos assumidos
com a lei.
Há
um infinito de trabalho material a fazer antes de passarmos à obra mais elevada
de construirmos o reino de Deus em nossos corações, como ideal superior.
Estamos imitando e reproduzindo obras da Igreja? Porque não imitar tudo de bom
que foi feito pelos nossos antecessores? Só não devemos imitá-los no fanatismo
religioso, e não será o primeiro passo para esse fanatismo o só vermos em todas
as suas obras o cadáver do cão e não percebermos nalgum lugar também o marfim
daquela dentadura?
Há
grandes erros no Cristianismo organizado em Igrejas, mas foi ele que nos conservou o texto do Evangelho e nos preparou os grandes
Mestres que hoje nos dirigem caridosamente. Lacordaire, Vicente de Paula, Antônio de Pádua,
Emmanuel, Venâncio Café, Fenelon, Lamennais, Marlot, Adolfo (bispo de Argel),
Vianney (cura d'Ars), Santo Agostinho, São Francisco Xavier, todos foram padres
católicos e hoje são nossos caridosos Guias. Quantos Espíritos superiores
cumpriam sublimes missões na Igreja! Porque fugirmos de tudo quanto se pareça
obra da Igreja, quando tais obras foram realizadas por estes mesmos Espíritos
que hoje são nossos Guias?
Seria
lamentável cegueira, fanatismo insensato, repudiarmos por espírito de seita as
obras boas realizadas pelas Igrejas. Não podemos deter-nos somente nas obras
semelhantes às da Igreja, mas em muitos casos seria absurdo ou crime não
continuarmos a obra da Igreja para os serviços de assistência material, sob
pretexto de que nossa missão é mais elevada. Sem dúvida, a missão do
Espiritismo é eterna e tempo virá em que se parecerão ridículos os serviços de
assistência que hoje fazemos, por não necessitarmos mais deles; mas antes de
chegar esse tempo, seria crime não nos movimentarmos, não colaborarmos até
mesmo nas obras de iniciativa católica ou protestante ou leiga que tenham por
finalidade socorrer os necessitados.
Por
mercê de Deus, o Espiritismo não forma uma casta, uma seita à parte da Humanidade;
porque tem tarefas a cumprir em todos os meios sociais: nos templos de todas as
seitas, nos hospitais, nas escolas, nas oficinas, nas penitenciárias, nos lares,
nas cidades e nos campos, com ou sem o rótulo espírita.
Espiritismo
é revelação do amor universal que tem de ligar todos os seres. Os Espíritos não se comunicam somente em nossos Grupos;
sabemos que eles nos falam igualmente dos púlpitos das Igrejas e da tribuna das
instituições leigas, pela pena dos pensadores e pela coluna dos jornais, pela boca
dos reformadores sociais e pelas descobertas da Ciência. Rótulo é limitação e
limitação é divisão e divisão é ódio e enfraquecimento. Tentemos conservar o
espírito da Doutrina acima das trevas de seitas. Não aspiremos a formar uma
grande Igreja, mas a ajudarmos grandemente à Humanidade com todas as Igrejas ou
sem nenhuma Igreja. Em vez de um grande movimento espírita, pensemos em um
grande movimento regenerador, mesmo que o rótulo espírita não tenha que
aparecer.
Compreendamos
que a luz nunca foi e jamais será monopólio de uma Igreja ou de uma Escola. A
Nova Revelação anula o espírito de seita e estabelece a lei das afinidades. Os
Espíritos superiores podem achar mais afinidade em um livre pensador, em um
filósofo ou pregador católico, do que num médium fechado pelos preconceitos, e,
então, servir-se-ão de um daqueles e não deste para transmitir ensinos aos
homens.
Sabemos
que durante mais de meio século os médiuns na Inglaterra e nos Estados Unidos
estiveram fechados a qualquer mensagem que confirmasse a reencarnação, mas
durante esse tempo muitos pensadores não espíritas, naqueles mesmos países,
divulgaram com outros rótulos o ensino da lei das reencarnações.
Ismael Gomes Braga
Reformador
(FEB) Abril 1946
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