A Haste
de Moisés
José
Brígido (Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Abril 1944
Tarde
quente nos arredores de Samaria. Ao longe, mulheres morenas, esbeltas,
conduzindo ao ombro almudes cheios d'água, regressavam da fonte de Nad-Gog,
batendo graciosamente as sandálias na poeira fina da estrada cheia de Sol. A
beira do caminho, sentado em enorme laje, um nazareno com alguns amigos.
*
José:
sei que continuas sofrendo por causa das criticas que te fazem... Vai para dois
mil anos, passou por aqui o Mestre, semeando bondade, tolerância e amor. Deixa
que tuas lágrimas corram para que teu coração fique desoprimido, mas não te
esqueças, José, de que Ele disse: "Bem-aventurados os que choram, porque
eles serão consolados." José sorriu e obtemperou: "- Não compreendo.
Eles citam o Evangelho e são intolerantes, falam no Mestre e não perdoam...
'Não posso fazer nem dizer nada, porque meus gestos e minhas palavras são deturpados. Não compreendo, não consigo
compreender... " O nazareno apertou-lhe a mão carinhosamente e tornou:
"- José: não é preciso compreender; o suficiente é perdoar... Foi ainda o
Mestre que ensinou, no sermão do monte: "Bem-aventurados os que têm sido
perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem, vos perseguirem e, mentindo,
disserem todo o mal contra vós, por minha causa". Sim, José, por causa
d'Ele, porque, se procuras ser fiel ao Evangelho e falas a verdade, tudo quanto sofreres será por causa do
Mestre. Não te irrites nunca. Silencia e ora, porque eles são cegos, guias de
cegos, mas os piores cegos, porque fecham os olhos para não enxergar a
luz..."
*
O
nazareno manteve-se alguns instantes em silêncio, como que a deixar que suas
palavras fossem meditadas. Depois, continuou: "- Esta advertência do
Mestre deve estar sempre em nossa memória:
"- Todo aquele que ouve as minhas palavras e as observa, será
comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha. Desceu a
chuva, vieram as torrentes, sopraram os ventos e deram
com ímpeto contra aquela casa, e ela não caiu; pois estava edificada sobre a
rocha. Mas todo aquele que ouve as minhas palavras e não as observa, será
comparado a um homem néscio, que edificou a sua casa sobre a areia. Desceu a
chuva, vieram as torrentes, sopraram os ventos e bateram com ímpeto contra
aquela casa, e ela caiu; e foi grande a sua ruína."
*
Como
José estranhasse que os seguidores de uma mesma doutrina a tratassem de maneira
tão contraditória o nazareno propôs-se contar-lhe uma velha história. E
começou: "- Há muitos anos, em Jerusalém, antes da
vinda do Cristo, dois homens discutiam, aos gritos, em praça pública. Juntou muita
gente e logo se formaram dois partidos. A algazarra atraía cada vez maior
número de curiosos, que se iam transformando em outras tantas pequenas facções,
cada qual tentando impor seu ponto de vista como sendo o único verdadeiro. A
confusão cresceu e o desentendimento acabou perturbando a vida pacata da velha
cidade, como se por ali houvesse passado um ciclone. O chefe da grande sinagoga
interveio e cada grupo escolheu um delegado para expor diante dele sua opinião.
*
O
primeiro, depois de olhar superiormente para os circunstantes, falou: - "A
força de Jeová esteja comigo. Diz o meu amigo Josué que Moisés fez sair água da
rocha de Meribah, golpeando-a com uma haste de cinco palmos. Isso não é
verdade! A vara não podia medir menos de sete palmos!" Em seguida, o líder
do segundo grupo apareceu, dogmático: "- Tão certo como Israel ter-se
chamado Jacob, a haste usada por Moisés não media sete palmos, mas apenas
cinco!". Veio outro, cujo sectarismo se refletia no olhar duro: "- Que não me despreze a sabedoria de Salomão - Josué e Saul estão
redondamente enganados. A haste que Moisés empregou contra a rocha de Meribah
não media cinco nem sete palmos, pois tinha exatamente seis!". Mais um se
apresentou, porejante de farisaísmo: "Pelas santas barbas de Salomão,
filho de Elkanah e Hannah! A haste de Moisés não podia ter senão nove
palmos!". E assim por diante. A audiência foi suspensa, em face da
impossibilidade de se chegar a uma conclusão satisfatória. Todos se supunham
detentores absolutos da verdade integral e ninguém cedia um passo. A vaidade, o orgulho e a
intolerância eram barreiras que os impedia de ver longe. Consideravam-se
profundamente religiosos, mas somente seguiam a Lei quando ela não colidia com
seus interesses pessoais. Então, o chefe da grande sinagoga considerou,
apaziguador:
*
"Irmãos! O tamanho da haste com que
Moisés golpeou duas vezes a rocha de Merihab não vos pode interessar tanto,
nessa discussão mais estéril que a mulher de Ashod. Estais sendo movidos pela
vaidade, que vos alimenta a intolerância. Pergunto-vos: tendes observado os
santos mandamentos? Quantas vezes já falseastes o Decálogo, tomando em vão o
santo nome de Jeová? Deixastes de cobiçar a casa do vosso próximo, sua mulher,
seu servo, sua serva, seu boi, seu jumento, enfim, algo que lhe pertença! Qual
de vós, vendo extraviado o boi de vosso irmão, ou a ovelha, não passastes por
ele indiferente? Qual de vós, que tanto vos azedais por nonadas, exercestes a
caridade, a tolerância, o amor ao próximo? Entretanto, sois severíssimos quando
julgais. Pedis que outros observem a Lei, mas a repudiais, como se não
tivésseis também deveres a cumprir. Bem melhor será que procureis viver os
santos mandamentos, não se lembrando deles apenas para exercerdes
dissimuladamente vossas vinganças. Ninguém sabe quando voltarão a soar as
trombetas que anunciaram a ruína de Jericó... "
*
"Depois
de tão edificantes palavras, os discutidores, confundidos, se retiraram
silenciosamente.
Talvez
a preciosa lição não ficasse por muito tempo gravada naquelas almas
empedernidas, José, mas seria, sem dúvida, excelente ensejo para a
reabilitação. É que lhes faltava caridade, e onde não há caridade, não há amor,
porque caridade é amor em sua mais linda expressão. Já dissera Paulo de Tarso,
em sua primeira epístola aos Coríntios: "Se tiver toda a fé a ponto de
remover montes, e não tiver caridade, nada sou." E Tiago confirma:
"De que serve, meus irmãos, se alguém disser que tem
fé, se não tiver obras? Acaso pode essa fé salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã
estiverem nus e necessitarem o pão quotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide
em paz, aquentai-vos e saciai-vos, e não lhes derdes o que é necessário para o
corpo, que lhes aproveita? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si
mesma. Mas, alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras."
*
José
respirava com dificuldade, tamanha a comoção de que era presa. E o nazareno
concluiu: "- Tiago foi mais positivo, ao indagar: "Mas quereis saber,
ó homem vão, que a fé sem as suas obras é estéril? Vedes que é pelas obras que
o homem é justificado, e não somente pela fé. Pois assim como o corpo sem
espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta."
*
Terminada
a narrativa, José partiu, mais conformado, mais disposto a olhar os homens e o
mundo com benevolência. E de suas passadas largas pela estrada, ficaram apenas
as pegadas que o vento morno da tarde já começava a desfazer...
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