Perdoai-nos,
Senhor
Estávamos à mesa de um café, eu e o
Rosendo, quando este, puxando-me a aba do paletó, . me diz um tanto ou quanto
alarmado: - Olhe quem vem aí, o Policarpo! Aquilo é um peroba terrível, quase
analfabeto, ateu, metido a filósofo. .. E sujo.
E não pode dizer mais, porque o
Policarpo já estava perto. Chegou, suado, empoeirado, as botinas por engraxar,
um chapéu amarrotado, sem cor definida, um maço de livros e jornais em
baixo do braço, além de uma pasta, o que tudo lhe dava um aspecto de vendedor
ambulante.
Rosendo fechou a cara, não
cumprimentou o outro, e resmungou umas coisas para o lado, como se estivesse a
falar com alguém, embora não se soubesse com quem ele falava.
- Olá, grande ateu - fui eu dizendo,
assim como quem pilheria, para disfarçar.
O Policarpo não deu grande
importância ao Rosendo, e replicou-me:
- Você está enganado. Eu não sou
ateu, sou apenas sincero; digo o que sinto, e como sinto.
Se é certo o que vocês referem sobre a reencarnação, eu devia ter sido um
grande hipócrita, que procura atualmente remir-se, ou fui uma vítima dos
velhacos, e de tal jeito, que tomei
o mais profundo horror à hipocrisia. Ora, o que eu acho é que vocês, com suas
oblatas, seus
subornos, suas rezas, não passam de uns grandes mentirosos.
E o Policarpo voltou-se para chamar
o caixeiro, que não aparecia com o café, e nem ao menos
com as xícaras.
O Rosendo aproveitou para rosnar: -
Não te dizia? Grandíssima cavalgadura!
Eu tossi, pigarreei, espirrei para
que o outro não ouvisse.
- Mentirosos com as nossas rezas,
porque? - Aventurei, sentindo-me tocado, assim na minha doutrina, como na minha
pessoa.
- É justamente nas preces que se
ostenta a hipocrisia dos "crentes". Fartos de se enganarem uns aos
outros, resolveram enganar a Deus.
O Rosendo catucava-me os pés, com
grande prejuízo para os meus sapatos e os calos.
- Como enganar a Deus? - Indaguei,
aparvalhado.
- Não é outra coisa o que vocês
fazem todas as noites, todos os dias, ou todas as horas. Que
é o pão nosso de vocês senão a maior patranha lançada ao Criador? Que é o que
vocês dizem?
"Pão nosso de cada dia nos dai hoje e perdoai as nossas dívidas, assim
como nós perdoamos
aos nossos devedores ... "
- Eu não digo bem assim -
interrompi.
E o Policarpo continuando: - O fato
é que ninguém perdoa coisa nenhuma. Contrarie alguém no que quer que seja, e ele
logo dirá:
"- Aquele sujeito há de me pagar!"
Outro fingir-se-á resignado,
benevolente, enquanto lamentará: "Ele há de achar um dia quem
lhe faça o mesmo!"
Ora, aquela expressão não é mais do
que o desejo de vingança por mão de outrem. Este declamará:
"Eu perdoei, mas Deus há de puni-lo ." Quer dizer que lançou a vingança
nas costas de Deus. E me estou só referindo aos seráficos. Muitos existem que
não podem esconder a ira e despejam meia dúzia de desaforos na cara do
antagonista, quando não a querem quebrar.
Um tal apanha uma frase no ar, ou
sabe que disseram dele qualquer coisa, ou viram numa expressão algo de alusivo
a sua importante personalidade, e ei-lo aziumado, formalizado, já vendo um
inimigo pela frente.
Por ligeira que seja uma observação
que se faça a um cidadão, por mais inofensivo que se
torne o reparo, às vezes íntimo, na melhor das intenções, e temos o cristíaníssimo
cidadão a
dizer, com umas casquinadas irônicas: "Ora vejam, aquele idiota a querer
ensinar-me, a dar-me
lições, a dizer-me o que eu devo fazer... "
E toca a rebuscar na vida do
reparador, nas suas palavras, ou na sua sintaxe, o que ele teria feito, dito ou
errado, para proclamar aos quatro ventos a ação má que ele praticou, a má
palavra que disse, ou a asneira que perpetrou.
Às vezes, nem é preciso que haja um
motivo. Basta que o "cristão" descubra uma falha no
outro, para que a vá mostrar a toda a gente. É preciso que ela retumbe.
Vejam-me a mim. Não faço mal a
ninguém; nada tenho com a vida alheia, mas porque não posso pagar o engraxate,
nem comprar um chapéu; porque os meus livros os adquiro no sebo; porque digo o
que penso, logo vou criando uma série de rancorosos adversários, como se eu
tivesse culpa das minhas ideias, ou como se as possuísse para ferir quem quer
que seja.
Neste momento, o Policarpo lançou
como que um olhar vago em torno, mas que ao Rosendo se afigurou uma flechada
quando, de relâmpago, passou por ele. Levantou-se, então, abruptamente,
deixou na mesa, apenas, 40 centavos, que era o pagamento das nossas duas xícaras,
e saiu de repelão, fazendo um bico com os beiços, que devia ser a suprema
expressão do
nojo ou da ira.
Policarpo, parecendo inteiramente
alheio à rabanada do Rosendo e ao próprio Rosendo, continuou:
- E eles todos, com os olhos
levantados ao céu, representado pelo forro da casa, irão rezar
o Padre Nosso e dizer a Deus que perdoam aos seus inimigos.
- Quer dizer que você perdoa -
atalhei.
- Nunca eu quis dizer isto; não sei
se perdoo; provavelmente farei o mesmo que vocês; não
minto, porém, ao meu semelhante, e muito menos mentiria à face de Deus, já lhe
afirmando o que talvez não estivesse em minhas forças, já lhe pedindo o que
poderia adquirir com o meu trabalho.
É, meu velho - continuava ele -
batendo-me amigavelmente nos ombros - devemos ter
a sinceridade do autor da Summa Teológica,
que ao lhe perguntarem o que ele faria se
fosse tentado, respondeu: "O que eu devia fazer eu sei; o que eu faria só
Deus o sabe." Assim
digo eu: "- Sei lá se me vingaria!" Que é o que pode dizer que faria
ou fará quem foi forjado
nesta lama de que saímos?..
- Argamassada com lágrimas - concluí
eu, para dizer alguma coisa, e não ficar como aluno
que está recebendo uma lição, embora me parecesse uma frase à La Palice[1],
mal a tinha pronunciado.
- Argamassada com muita estupidez e
muito sangue - para logo replicou o Policarpo.
E pondo na mesa os duzentos réis que
faltavam para o pagamento completo do café, servido
a três, enquanto eu procurava apressadamente um níquel no bolso, despediu-se, e
lá se
foi, suado, empoeirado, o chapéu velho, as batinas gastas, tipo do filósofo
malquisto, mastranquilo
com a consciência.
por Carlos
Imbassahy
(pai)
in Reformador (FEB) Dezembro 1945
[1] Do Blog:
Jacques de la Palisse, foi um nobre e militar Francês,.Nasceu em 1470 e faleceu
em 1525. Combateu os exércitos italianos e morreu na batalha de Pavia. A sua
popularida junto aos soldados, fez nascer várias canções militares a seu
respeito. Uma dessas canções, cantada após a sua morte, possuía os seguintes
versos: "S’il n'était pas mort il ferait envie", (Se ele não
estivesse morto, faria inveja) a qual foi deformada em "s'il n'était pas
mort il (ƒerait – serait) en vie"(se ele não estivesse morto faria/estaria
vivo); desta frase saiu o termo «lapalissada», que designa uma forte
evidência, uma situação extremamente óbvia. Fonte: Wikipedia
Nenhum comentário:
Postar um comentário