domingo, 4 de março de 2012

02/03 Melquisedec e Jesus



02/03  Melquisedec e Jesus

             
Zêus Wantuil

Apêndice sob título ‘Docetismo’
 in “Elos Doutrinários” (FEB)  3ª Ed 1978


Caráter figurativo - O Livro dos Salmos - 110:4 ou 109:4, segundo alguns tradutores, referindo-se ao Messias futuro, diz: “Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec.”, frase que nos conduz de imediato, sem alternativa, à exclusão de toda e qualquer outra espécie de sacerdócio, inclusive, por conseguinte, o sacerdócio judaico, à maneira de Aarão.

            Os homens, na sua vaidade e pretensão, almejam também o título de messias. Talvez por isso é que, até os dias de hoje, no ritual da ordenação dos sacerdotes da Igreja, o bispo católico declara: “Tu és sacerdote in aeternum, secundum ordinem Melchisedec.”

            O Apóstolo dos Gentios, na Epístola aos Hebreus - 5:6 e 10; 6 :20, transcreveu as palavras de David e expôs largamente no capítulo sétimo, dessa mesma epístola, a semelhança entre Jesus e Melquisedec.

            Desejando positivar, ante os olhos dos judeus, a autoridade e superioridade da pessoa e da missão de Jesus, o inspirado apóstolo de Tarso aproveitou aquela personagem misteriosa, talvez pelas seguintes razões: a) em vista da dupla dignidade de Melquisedec, como sacerdote de Deus e como rei; b) pela aplicação do seu próprio nome: “rei de justiça” e do nome da cidade sobre a qual reinou, intitulando-se “rei de Salem”, isto é, “rei de paz”, aproximando-se, destarte, da revelação transmitida ao profeta Zacarias, concernente a Jesus: “Eis vem a ti o teu rei. Ele é justo e traz a salvação.”  “Ele anunciará a paz às nações.” Dizendo ser Melquisedec “sem pai, nem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida, permanecendo sacerdote para sempre”, anunciou-o Paulo, por conseguinte, “semelhante ao Filho de Deus”.

            A seguir, o apóstolo assinala que o superior que abençoa é quem recebe o dízimo do seu inferior. Ora, Melquisedec abençoou, a Abraão, bem como todos os sacerdotes levíticos descendentes do patriarca, inclusive o próprio Levi, os quais, indiretamente, pagaram dízimos a Melquisedec na pessoa de Abraão. (Hebr., 7:4 a l0).

            Era imperfeito e incompleto o sacerdócio levítico e igualmente a lei moisaica, salvaguarda do mesmo, que apenas estabelecera as bases da Lei divina. O tempo, diante da evolução alcançada pelo homem, exigia uma “melhor esperança”, que foi trazida por Jesus-Cristo, sumo-sacerdote perpétuo e incorruptível, “não feito segundo a lei do mandamento carnal”, não mais da estirpe de Aarão, mas de um sacerdócio superior ao deste último, isto é, da ordem de Melquisedec, conforme revelação pré-anunciada pelos Salmos de David (Hebr., 7:11 a 24).

            O versículo três do capítulo em foco, esclarecem-no os autores católicos, e de maneira inteligente, dizendo que chamando Paulo a Melquisedec – “sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida”, quis relacionar estas palavras não propriamente à personalidade de Melquisedec, em si mesma, mas querendo com isto significar que a Escritura intencionalmente lhe não menciona o pai, a mãe, a genealogia, nem nascimento, nem morte, para que deste silêncio das Escrituras resultasse Melquisedec mais semelhante a Jesus, a quem prefigurava.

            A Enciclopédia de Migne explica que o dizer - o rei-sacerdote de Salem não teve princípio nem fim de vida - com esta referência se quis fazer entender que ele não tivera limites marcados nas funções do seu sacerdócio, não possuindo predecessores nem antecessores, podendo-se daí inferir que ele não havia tido nem princípio nem fim de sua vida sacerdotal, prefigurando-se, já antecipadamente, a eternidade do sacerdócio de Jesus.

            A primeira elucidação acima exposta se nos apresenta incompleta sob uma análise minuciosa, pois surge-nos de imediato a interrogação: Quererá o autor afirmar que Jesus apareceu e desapareceu do mundo com aqueles quesitos do versículo?

            Analisemos as razões judiciosas dessa pergunta que encerra em si, ocultamente, inúmeras outras interrogações.

            Vamos dizer que essa revelação paulina se relacione à origem espiritual de Jesus no seio imperscrutável do Criador. Ora, se assim fosse, estaríamos diante de uma revelação sem razão de ser, pois todos os seres igualmente saíram do Criador e eternamente viverão.

            Os espíritas também não podemos compreender e aceitar o Cristo como parte de uma Trindade Divina, igual a Deus, visto que, baseados nas palavras do mesmo Jesus, conservamo-nos monoteístas, só admitindo, por conseguinte, um único Deus, sempiterno e incriado.

            Prossigamos:  Segundo os católicos, o Cristo teve um nascimento sobrenatural, sofrendo, ao fim de sua missão, a morte real consequente à crucificação. Somente três dias após o sepultamento ressuscitou, no mesmo corpo de carne, indo com este envoltório para as altas regiões celestes. Baseados nesse modo de entender, poderiam afirmar que o Mestre não nasceu nem morreu.

            Esta exposição católica, diante das leis naturais a que todos os seres e coisas forçosamente devem obedecer, peca por sua incoerência, irracionalidade e visível infantilidade. É até degradante, mesquinho e misérrimo aos nossos olhos, pensar-se que o Unigênito do Pai se dirigiu aos altos páramos celestiais num corpo de carne pútrida. Graças, porém, às revelações do Espírito Santo, através do Consolador prometido que já vive entre os homens, estamos elucidados de maneira satisfatória quanto a esse fato da vida do Cristo.

            Jesus, aos olhos da quase totalidade dos cristãos, nasceu da virgem Maria, obedecendo sua formação a todo o processo normal da evolução intrauterina, iniciada de maneira desconhecida, anormal, milagrosa. Houve, destarte, para os teólogos, um verdadeiro nascimento humano.

            Agora, se admitirmos concepção, evolução fetal e parto aparentes, sem afetar a pessoa de Maria, já não poderemos dizer que houve nascimento real.

            Tomemos nesse ponto a segunda proposição em estudo, isto é, a morte do Cristo. De antemão, todos sabemos impossível a propalada ressurreição de Jesus, em carne morta, como impossível e desnecessária também será a ressurreição de todos os seres humanos falecidos, nos seus primitivos corpos de carne, no dia do Juízo final.

            Mas - objetarão -, os quatro evangelistas unanimemente afirmam, citando testemunhas, que o corpo do amado Senhor desaparecera do sepulcro previdentemente guardado por soldados das autoridades administrativas, aparecendo depois a inúmeros discípulos.

            Não negamos a autenticidade de tais fatos. As Escrituras merecem-nos todo o respeito e admiração, principalmente à vista de um ponto em que o acordo é perfeito entre diferentes relatores. O que não é concebível é o admitir-se, até hoje, diante do progresso científico e do raciocínio mais iluminado, uma ressurreição em carne e osso.

            O fato de vários espíritas só admitirem que Jesus ressurgiu no corpo perispirítico, que então se tornava visível quando ele o desejasse, deixa, entretanto, no ar, uma interrogação a respeito do que sucedera ao corpo carnal do mesmo Jesus, e, além disto, o maravilhoso e comentadíssimo fato da Ressurreição deixaria de ter a importância que os crentes e descrentes lhe emprestaram e continuam a emprestar; seria um fato corriqueiro, sem interesse algum, pois era sabido dos judeus, baseados em exemplos inúmeros do Velho Testamento, e o é para nós, que todos ressurgiremos num corpo perispirítico, após nossa morte corporal.

            Vemos, pois, que esta última maneira de explicar é incompleta, não só pelas razões acima referidas, como também por estar em desacordo com Paulo, que considera o Mestre sem princípio e sem fim de vida.

            Resta-nos, então - pelo menos provisoriamente -, admitir que o Senhor tivesse um corpo de natureza fluídica, e que, por isso mesmo, não estava sujeito à morte, como a conhecemos. Essa concepção se baseia em fatos inúmeros observados durante a peregrinação do Salvador pelo mundo e diante ainda da sua afirmação aos onze apóstolos, após a sua falada morte, quando lhes disse que ele era ele mesmo e não um espírito: “Vede as minhas mãos e os meus pés; pois um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho.”

            Assim raciocinando, concluímos que à Terra desceu Jesus o sumo-sacerdote divino, “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e feito mais sublime que os céus” - não, pois, em carne dos pecados, mas “em semelhança de carne de pecado”, diz-nos a Epístola aos Romanos.

            Não nos dilataremos nessas pobres reflexões, as quais - dizemos lealmente - de maneira alguma queremos dar aspecto inflexível, dogmático, mesmo porque o capítulo referente a Melquisedec pode comportar raciocínios outros. 


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