sábado, 30 de abril de 2011

02/02 Sobre o Batismo



Ainda o Batismo
           
            Reformador (FEB) 15 de Dezembro de 1903

            Os conceitos que sobre este assunto emitimos em nossa edição de 15 de outubro passado mereceram alguns reparos do nosso prezado colega d ‘A Doutrina, do Paraná, a quem, antes de tudo nos confessamos gratos por nos proporcionar este ensejo de melhor esclarecer e completar o nosso pensamento ali imperfeitamente enunciado. Uma só coisa, entretanto, deploramos, e é que tão ligeiramente tivesse lido o nosso escrito, que começasse por considerá-lo ‘uma carta de respeitável confrade’ dirigida a esta redação, quando claramente assinalávamos que as apreciações que se iam ler, e a que conservávamos, como de razão, a forma epistolar, havia sido o assunto de uma carta por nós escrita, em resposta à consulta que em tal sentido nos fora feita por um confrade do interior.

            Foi ainda a atenção, indubitavelmente superficial com que nos leu, que o fez atribuir ao nosso pensamento uma elasticidade que os próprios termos em que foi expresso de forma alguma autorizavam.

            Restabeleçamos, com alguns esclarecimentos, a questão nos seus primitivos termos.

            Pediu-nos dedicado irmão em crença, na carta a que aludimos na resposta publicada, que lhe indicássemos uma fórmula para batizar crianças, ‘a fim de poder satisfazer os pedidos que em tal sentido lhe eram sucessivamente feitos, e aos quais, em sua boa fé, não via inconveniente em atender, porque – dizia ele – ‘parece que é tempo de seguirmos o Evangelho de Jesus.’

            O inconveniente, que ele não descobria, vimos nós na instituição solicitada, ‘fórmula’ que viria – ou virá, onde e quando quer que se lembrem de a estabelecer – a constituir nada mais nada menos que um sacramento, tal qual a igreja de Roma o adotou para o mesmo caso.

            Foi, pois, a esse grave precedente de se introduzir uma nova liturgia nas práticas espíritas, que opusemos os conceitos emitidos na carta aqui reproduzida. Salientamos então:

            1º que o batismo, a que se submetiam os primeiros cristãos, tinha para eles a significação simbólica, no ponto de vista da formalidade exterior, da livre adoção do novo credo, a que eles previamente começavam por se converter.

            2º que o faziam como homens, na plenitude, portanto, do seu livre arbítrio; e acentuamos em seguida a diferença entre esse costume e a prática, que a igreja de Roma nos legou, de se impor arbitrariamente a filiação religiosa às crianças em tenra idade, mediante a administração desse sacramento, com evidente violação da liberdade espiritual. Acrescentamos por fim que a esse procedimento, inspirado no orgulho humano, ‘em cujo nome os pais julgam poder dispor da consciência dos filhos’, devíamos opor o espírito de tolerância, tão pouco infelizmente introduzido nos nossos hábitos, e assim aguardar que os nossos filhos, chegados à idade da razão ‘adotem livremente a crença que melhor consulte as aspirações de sua própria alma’.

            Daí concluiu o colega – atribuindo ao nosso pensamento uma extensão que ele, de resto, não comporta, - que proscrevíamos todo ensino religioso às crianças, e depois de citar alguns trechos de artigos nesta folha publicados, a cerca da utilidade da educação espírita da infância, no intuito porventura de descobrir incoerência na nossa atitude atual, raciocina: ‘portanto não nos parece que o ‘Reformador’, revista que muito e muito nos merece, vinha agora dizer que é um crime que se pratica, ensinando às crianças desde os seus primeiros dias a doutrina que julgamos ser a melhor até hoje conhecida’.

            Ora, o colega, como se vê, confunde a administração do batismo, em virtude da qual fica a criança arbitrariamente vinculada a determinado credo – não importa qual seja: o fato é sempre o mesmo – com o ensino religioso, contra o qual não articulamos uma única sílaba. E não precisava rebuscar as nossas edições de 1891 para demonstrar que já proclamamos as excelências  desse ensino; bastava ler com um pouco de atenção, linhas abaixo, esse mesmo escrito ‘Sobre o batismo’ para verificar que reconhecemos ser esse o primeiro dever dos pais para com os filhos, assinalando que o batismo de que estes carecem ’é o preparo dos seus pequeninos corações, nos quais devem, o mais cedo possível, ser lançados os ensinos da obediência, da humildade, da paciência, da humildade, da paciência e da doçura como do amor, desde o que se reporta ao nosso Pai celestial, até a piedade pelos próprios animais’ etc.
            É a isto que o colega chama ‘ não ter o Reformador mais fé na doutrina que há vinte e um anos propaga? Nesse amor, que abrange desde o Criador até os mais ínfimos seres que nos rodeiam, não se encerram com efeito toda a lei e os profetas? E onde o hão de ir beber os pais, para transmitir a seus filhos, senão naquele código divino, que é o coroamento triunfal do Espiritismo? Não podia, pois, ser mais gratuita do que essa, a afirmação de que proscrevemos o ensino religioso à infância? E tudo por que? – Porque nos insurgimos contra a instituição do batismo, que se pretende transplantar, com o odioso característico apontado, para os hábitos da nossa doutrina!
                                                                       *
            Dirá o colega – o claramente o disse em seu artigo – que não é o batismo, como fórmula ou rito, que defende, porque, para o combater, onde quer que o pratiquem desse modo, tê-lo-emos solidariamente ao nosso lado; o que se defende é ‘a apresentação da criança |à proteção dos bons espíritos’ afim de pedir-lhes para que ela seja boa e dócil aos seus pais, que ela siga o caminho do bem’, acrescentando: ‘e que tudo isto se realize dentro de casa, no santuário da família, não nos parece que seja um rito,’ etc.

            Antes de tudo, quer nos parecer que essa apresentação, a que tomamos a liberdade de fazer alusão em nossa crítica – e daí a impugnação do colega – não seja uma cerimônia tão íntima e tão simples como o faz crer, nas linhas que acabamos de citar; porque nessa mesma edição de 1º de Dezembro, em que vêm os seus reparos à nossa  carta-editorial, deparamos com esta local em seu noticiário:

            ‘Apresentação – No dia 25 de Outubro passado, foi apresentada à proteção dos Bons Espíritos, no Centro Espírita, uma filhinha do nosso confrade Sr. José Ferrari, que no registro civil tomara o nome de Elisa. Que seja sempre guiada no caminho do Bem, são os nossos votos’.

            Vê-se, pois, que a ‘apresentação’ não tem lugar ‘no santuário da família’ mas é, algumas vezes pelo menos, efetuada com toda a solenidade nos centros espíritas, assim convertidos, similarmente aos da igreja, em templos para esse privativo mister.

            Em sua sincera boa fé, a que folgamos de render a mais espontânea justiça, mas que só a força do hábito e da educação religiosa justifica, o colega não descobre o mínimo perigo nesse ato, tão simples na aparência.

            O perigo, todavia, existe, não tanto no que se faz, e que parece realmente inócuo, mas no precedente que constitui e cujas conseqüências não são difíceis de prever. Nestas coisas, como em tudo, o embaraço está em começar. Principia-se por uma ‘apresentação’, invocando a proteção dos guias espirituais; depois a tendência para as pompas exteriores, inata na natureza humana, passará a achar a cerimônia demasiado simples; agradar-lhe-ia alguma coisa mais impressionante, que afetasse os sentidos por mais lisonjeira forma; introduzir-se-ão alguns aparatos para quebrar a monotonia do ato, e dentro em pouco teremos um cerimonial, ao começo limitado, e em seguida cada vez mais complexo e atraente,pelo mistério do simbolismo – quem sabe? – até que toda uma liturgia, invocando os precedentes, se tenha estabelecido, em detrimento da essência espiritual que, a nosso ver, tão exclusivamente deveria predominar, agora e sempre, nos ensinos e nas práticas espíritas.

            Dirá o colega que fantasiamos.  Mas aí estão, para nos edificar, as lições da história particularmente da história e da tradição eclesiásticas. Acredita o colega que o pomposo ritual com que a igreja deslumbra hoje os seus fiéis, foi por ela adotado de um só jato? Não. Ele se foi lentamente introduzindo, de concessão em concessão, através dos séculos, até chegar, como se vê, a substituir-se inteiramente aos ensinos primitivos.

            Ah! A força do tempo e dos precedentes uma vez admitidos! Tenhamos, pois, o cuidado de fugir sistematicamente a todo o formalismo, que não é senão um produto do nosso atraso e ignorância, como de nosso apego às coisas do passado.

            Ao demais, acredito realmente o colega que, para que os bons espíritos tomem a sério os santos encargos de direção e inspiração das criaturas da terra, será necessário que, ao vir uma dela ao mundo, lhes seja formalmente apresentada?  Que noção julga que possuem esses espíritos superiores acerca dos seus elevados deveres? É, em virtude dessa apresentação que eles assumem o compromisso de inspirar os seus guiados para o bem, ou é por força da missão que em tal sentido lhes outorga o Criador? Mas, então, para que serve essa formalidade?   

            De duas uma: ou é indispensável para essa proteção se torne efetiva, e nesse caso ai dos infelizes que não tenham sido ‘apresentados’ porque ficarão à míngua desse amparo, convindo, portanto, quanto antes, decretar a adoção forçosa e geral dessa formalidade; ou mesmo sem ela os guias deixarão de velar pelos seres confiados’ à sua proteção, e em tal caso é inútil, e deve-se por esse motivo suprimi-la, a menos que essa ‘apresentação’ tenha a significação de vincular o recém nascido à crença espírita.

            Incidimos, então, na monstruosidade, contra que nos insurgimos, de violar a liberdade de consciência, tão respeitável no adulto como na criança.. Não. Não nos assiste esse direito, que seria criminoso, por mais convencidos que estejamos de que o maior benefício que podemos dispensar aos nossos filhos é fazê-lo espíritas e sobretudo espíritas cristãos.

            Mas, neste caso, o procedimento que a própria consciência nos indica é inteiramente outro; e aproveitamos o ensejo para tornar bem claro o nosso pensamento, afim de que se não preste novamente a errôneas interpretações.

            Desde os mais tenros anos devem naturalmente os pais ir transmitindo aos filhos o que denominaremos lições práticas de Espiritismo, isto é, não perdendo ensejo de ensinar-lhes as noções elementares das grandes leis que regem a vida e o destino humanos, como a existência de Deus, com os seus infinitos atributos, a preexistência da alma e as vidas sucessivas e solidárias, sobre a base da imortalidade, a justiça divina a que  nenhuma das nossas ações pode escapar, e ao lado disso insinuando-lhes os sentimentos cristãos, de que lhes devem, em primeiro lugar, dar os exemplos, formando assim o caráter e emancipando o espírito dos filhos de todas as superstições e preconceitos, isso até aos 10 ou 11 anos. 
Porque só então começarão as crianças, segundo o seu desenvolvimento moral e intelectual, a estar verdadeiramente aptas para fazer um curso regular de Espiritismo, ainda assim elementar, sendo bem para lastimar que ainda não possuamos aqui no Brasil um trabalho didático apropriado a esse fim.

            Acompanhará, pois, a solicitude paterna a evolução do espírito de seu filho, até a idade propriamente da razão.

            Se, porém, chegado ai, e não obstante essa educação preparatória em cuja superioridade somos os primeiros a depositar a mais absoluta confiança, se mostrar ele refratário ao ensino dado, e descobrir que o seu espírito tem mais afinidade com outra qualquer crença, o que não é impossível – a natureza humana apresenta tão grandes singularidades! – que pensa o colega que devem fazer os pais? Respeitar, sem o menor ressentimento, a livre manifestação da consciência de seu filho, não é assim? Esse é, pelo menos, o seu dever de tolerância.
                                                                                   *

            Assim fica, portanto, completamente esclarecido o nosso pensamento. Insistirá o colega depois disso na necessidade de apresentação das crianças à proteção dos guias espirituais, sob o pretexto que, de resto, invocou em seu escrito, de que o Mestre incluiu em O Evangelho segundo o Espiritismo uma prece pelas crianças que acabam de nascer, o que – digamos de passagem – nenhum apoio oferece à sua argumentação?

            Isto, porém, é uma outra questão que bem merece um artigo à parte.
                                                                        

01/02 Sobre o Batismo


Sobre o Batismo
 Reformador (FEB) 15 Outubro  1903

            Uma tendência que, com desgosto, temos visto se estar generalizando entre os espíritas é a de introduzir nas práticas de nossa doutrina cerimônias que, todavia, de modo algum se compadecem com o seu caráter essencialmente espiritual, destituído, por conseguinte, de toda exterioridade formalística. Entre essas cerimônias figura o batismo de crianças, a que alguns procuram dar o dissimulado nome de ‘apresentação’, sem reparar em que, no fundo, é o mesmo erro dos católicos romanos que praticam.

            Julgamos por isso oportuno submeter à apreciação de tais confrades, cuja boa fé reconhecemos, mas a cuja perspicácia terá certamente escapado o perigoso desvio que há nesse procedimento, os seguintes conceitos que resumem o nosso modo de ver a tal propósito.

            Conservamos-lhes a forma epistolar em que foram calcados, por isso que se trata de resposta a uma carta em que dedicado irmão de crença nos consultava pelo modo indicado no começo dessa réplica, a que, ocultando nomes por dever de discrição, damos publicidade unicamente para tornar conhecida do maior número a nossa opinião.

            É possível que estejamos em erro. Apelamos, em tal caso, para o critério dos mais esclarecidos, e eles que digam se esse pronunciamento consulta ou não os ditames da razão e do bom senso.

            Eis a carta:

            ‘Saudações fraternas,
            Com resposta à vossa carta de 16 do corrente, na qual nos solicitais uma fórmula batismal, a fim de atenderdes aos pedidos que vos são feitos no sentido de batizardes crianças, e porque vos ‘parece que é tempo de seguirmos o Evangelho de Jesus’ permiti-me dizer-vos que, precisamente, por já ser tempo de seguirmos EM ESPÍRITO os seus divinos preceitos, é que nos devemos abster de todo formalismo.

            O batismo, tal como era praticado nos primeiros tempos do Cristianismo,e que consistia na ablução dos novos convertidos, segundo os usos daquela época, tinha para estes a significação simbólica da adoção do novo credo, no ponto de vista da formalidade exterior. Porque eles começavam por se converter ao Evangelho, vindo em seguida essa prática material, como mero simbolismo. Lembrai-vos, entretanto, de que eram homens e, na plenitude do discernimento, adotavam livremente a nova crença.

            Diferente, porém, é pegar de uma criança, que nenhuma noção tem ainda do mundo exterior, e dispor arbitrariamente da sua consciência impondo-lhe de antemão a crença religiosa a que, por essa flagrante violação da liberdade espiritual, ficará pertencendo na vida – sob pena de apostasia. Esse uso é um atestado do orgulho humano, em cujo nome os pais julgam poder dispor da consciência dos filhos, esquecendo-se de que o livre arbítrio, que o próprio Criador, que no-lo outorgou, jamais viola, deixando que dele usemos para o bem como para o mal, como o entendermos, é atributo contra cujo exercício nenhum de nós tem o direito de atender.

            E é esse o característico, por excelência condenável,  do batismo nas crianças, o qual, em tais condições, constitui um verdadeiro crime.

            Deixem os pais que seus filhos cresçam e que, quando chegarem à idade da razão, adotem livremente a crença que melhor consulte as aspirações de sua própria alma. Este é o princípio absoluto e inflexível.

            Quando particularmente a adotarmos os espíritas uma fórmula batismal, Deus nos livre de que tais preocupações materiais se introduzam em nossas práticas. Que valor podem ter aos nossos olhos as exterioridades, os símbolos, os ritualismos, quando os ensinos de Jesus todos se reportam aos atos morais, ao que se passa na intimidade dos corações e das consciências, sempre patentes aos seus olhos e aos olhos do nosso Criador?

            Aos que, por conseguinte, vos pedem que lhes batizeis os filhos, respondei-lhes que o batismo de que eles carecem é o dos seus exemplos de virtude, paciência e bondade; é o preparo dos seus pequeninos corações nos quais devem, o mais cedo possível, ser lançados os ensinos da obediência, da humildade, da paciência e da doçura, como do amor, desde o que se reporta ao nosso Pai celestial, até à piedade pelos próprios animais, contra os quais praticam as crianças tão frequentemente a crueldade.

            Esse é que é o batismo que todo pai deve dar a seu filho, certo de que, se assim o educar, dele fará mais tarde um verdadeiro discípulo do Divino Mestre.

            O Espiritismo não cogita de formalidades que, de resto, se tiveram sua razão de ser outrora (e por forma diferente do que se pretende hoje fazer, seguindo os perniciosos exemplos da igreja de Roma), nenhuma utilidade apresentam na nossa época e em relação aos ideais da nossa doutrina, que procura fazer homens novos, seguidores dos preceitos de Jesus, em espírito e verdade, e não imitadores de fórmulas vãs, que ele jamais insistiu.’


10 Escravidão e Espiritismo


Slave trader's business in Atlanta, Georgia, USA     1864


-X-
 ‘O Profeta da Abolição’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Outubro  1988

           
As grandes causas tem seus mártires e os mártires tem seus métodos ou sua maneira própria de agir na luta pelo ideal. Podem uns ser mais felizes que outros. John Brown, nos EUA, abandonou os meios pacíficos de luta e apelou para a violência, terminando seus dias na forca. A Guerra de Secessão ensanguentou o solo norte-americano e esse fato refletiu-se na demora com que no Brasil se implantou gradualmente, por leis sucessivas, a libertação dos escravos.
Entre os brasileiros, muitos Espíritos vieram encarnar para o fim especial de preparar o clima necessário a esse evento.
Assim foi que nasceu, na Fazenda Cabaceiras, a sete léguas de Curralinho (hoje Castro Alves), então Freguesia de Muritiba, Bahia, Antônio Frederico de Castro Alves, filho do médico Antônio José Alves e de D. Clélia Brasília da Silva Castro. Isso se deu a 14 de março de 1847. Iria desencarnar aos 24 anos de idade (1871), 17 anos antes da Lei Áurea.
Sua infância foi assistida pela dedicação da escrava Leopoldina.
Começou a poetar em plena adolescência como quem tivesse muita pressa de iniciar a tarefa por uma velada intuição de sua rápida estada conosco. E nessa curta passagem deixaria monumentos literários como ‘Vozes d’África’, ‘Navio Negreiro’, ‘Espumas Flutuantes’, ‘A Cachoeira de Paulo Afonso’ e, em prosa, ‘Gonzaga ou a Revolução de Minas’. Houve quem reconhecesse que, se Castro Alves houvesse escrito os seus magistrais poemas em língua de maior penetração, estaria colocado pela crítica mundial ao lado de Homero e de Virgílio, tais a pujança de sua palavra, a comoção despertada e a a harmonia do estro. Não se discuta nisso a excelência do idioma pátrio, mas o aspecto de sua popularização.  
Em ‘Grandes Vultos da Humanidade e o Espiritismo’, nosso saudoso Sylvio Brito Soares dedica-lhe precioso capítulo e traz a conhecer várias opiniões a seu respeito, como a do Professor Pedro Calmon, notável historiador patrício, que nele reconhece o gênio e o dom profético. “Reformador” (Nov. 55) publicou um trabalho de Ismael Gomes Braga intitulado ‘A profecia de Castro Alves’ Brito Soares acrescenta:

Sim, foi também o profeta da Abolição, porque ele via melhor que seus contemporâneos que a libertação dos escravos se daria, mais hoje mais amanhã, mas que o essencial consistia em não se esmorecer na luta, nessa luta a que ele deu o melhor de sua inteligência, de seu esforço, dedicação e coragem.’

Ainda com referência aos dons proféticos, deixou Castro Alves poesias que previam claramente vinte anos antes a deposição de D. Pedro II (‘Nas cãs deste velho/ verás fanados lauréis/...’)  e até mesmo a entrada das Américas, o Brasil inclusive, no conflito mundial de 14/18. Continuemos com Brito Soares:

Castro Alves tinha sua alma embalada pelo cântico harmonioso das verdades espíritas; em alguns de seus versos, aprecia-se perfeitamente essa influência, como, por exemplo, em ‘Pelas Sombras’ (segue-se no texto, o poema). Tanto assim que nosso confrade cita o biógrafo Eugênio Gomes, reconhecendo que ‘por entre estrepitosos clamores de profunda indignação predomina a idéia de que, em paga de todas as humilhações e sofrimentos terrenos, o escravo teria a cobiçada liberdade após a morte.’

E prosseguem na obra as citações textuais desse último autor, encontrando conexões entre a mensagem do gênio – o poeta da raça – e a teoria do Espiritismo, como aqui:

Eu não olho jamais para o mundo deste mundo / mas para o mundo invisível.”

Procurava o poeta, comenta aquele biógrafo, uma obra espírita que falasse de Poética do Espiritismo. Perdoe-nos aqui uma idéia muito pessoal. Acreditamos que houvessem chegado ao seu conhecimento as referências que se encontram em ‘Obras Póstumas’, da Allan Kardec, a respeito de Arte Espírita, as palavras de Rossini sobre música, de que alguém lhe houvesse falado sobre isso, pois é o que mais se aproxima do que fosse poética dentro das obras kardequianas. Todavia, de alguma forma, pensamos que a maior antologia poética relacionada com o Espiritismo sairia bem mais tarde e dela, por força, ele próprio, como Espírito, participaria. Referimo-nos com toda a tranquilidade, é lógico, ao ‘Parnaso de Além Túmulo’. Pois, olhando ele agora e não mais para o ‘mundo invisível’ (invisível para nós outros...), no velho estilo de ‘O Livro e a América’, exclama:

MARCHEMOS!

“Há mistérios peregrinos
No mistério dos destinos
Que nos mandam renascer:
..............................
É a dor que através dos anos,
Dos algozes, dos tiranos,
Anjos puríssimos faz,
Transmutando os Neros rudes
Em arautos de virtudes,
Em mensageiros de paz.”

Em outros momento,
o bardo desencarnado dá a palavra à deusa Morte,
 em longo poema em que, a certa altura, expõe:

.....................................
“Sou prisão ou liberdade,
Nova aurora ou nova cruz
.....................................
Conduzo seres aos Céus,
À luz da realidade;
Sou ave da Liberdade
Que ao lodo da escravidão
Venho arrancar os Espíritos,
Elevando-os às alturas:
Dou corpos às sepulturas,
Dou almas para a amplidão.”

Clóvis Ramos, estudando ‘Temas espíritas na poesia brasileira’, 
notável trabalho de pesquisa literária de valor, também, 
doutrinariamente falando, recorda vários poemas
 onde transparece a vivência espírita mais ou menos 
velada do vate condoreiro; 
recordemos ‘O Último Fantasma’ e, 
dele, estes fragmentos:

Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso
.....................................................
Baixas do céu num voo harmonioso
....................................................
Onde nos vimos nós? És de outra esfera?

Hoje é ele, Castro Alves, dotado do mesmo estro, 
que nos fala de outra esfera e que, 
ainda ligado à pátria que o serviu, apela:

-“Brasil de perenes brilhos,
Pela união de teus filhos
Deus te conserve em Jesus”.

(Encontro em Brasília, 1976)




09 Escravidão e Espiritismo






Slave market, Georgia, USA


-IX-
 ‘Escravidão na Literatura Espírita’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Setembro  1988

            Não seria fácil afirmar, a rigor, quantas obras espíritas, especialmente aquelas romanceadas, históricas ou de ficção. – romances de época – registram passagens relacionadas com vidas terrenas de personagens na condição de escravos ou de senhores. Quantos, na realidade, teriam sido escritas por inspiração mediúnica!... É por isso difícil fazer-se de pronto uma visão geral. Poderemos, todavia, em simples amostragem, focalizar algumas. Vejamo-lo.
            “Há 2000 anos”, autobiográfica, de Emmanuel, por F. C. Xavier, recorda o senador romano Publio Lentulos destacado para servir ao Império em Jerusalém.  Mais que indiferente, é hostil, de início, aos rogos de André Gioras em benefício do filho Saul, preso e condenado ao cativeiro. Quando, sensibilizado, se dispunha a interceder por ele, foi informado que fugira. Na verdade, o jovem fora vendido clandestinamente em Roma. Em “50 anos depois”, ressurge o autor espiritual na personalidade de Nestório, escravo de origem judia, já aí o contraste, como acerto de contas. Em virtude de guerras cicis, seus antepassados tinham-se mudado para Jônia havia alguns decênios. Em Terebinto fora feito escravo. Mas  a senhora recomendara às filhas a seu respeito.

            “Nunca humilheis a liberdade deste homem, que terá toda a independência para cumprir os seus deveres!...”

            Filho de Nestório, Ciro se fez também escravo e é libertado. Os dois irão encontrar-se em momentos supremos de doloroso testemunho, já agora cristãos.

            Paulo de Tarso, na biografia de Emmanuel (F. C. Xavier), é uma das joias de fino lavor de nossa literatura. A obra, como se sabe, é “Paulo e Estevão”. Nela aparece logo de início a figura de Jesiel, judeu nascido livre e escravizado pelos conquistadores romanos. Outro não é que o grande mártir Estevão. Após a visão surpreendente de Saulo na estrada de Damasco, vê-lo-emos como guia espiritual do próprio verdugo do passado, transformado em Apóstolo dos Gentios, com o nome cristão de Paulo.

            O Espírito escritor Conde de Rochester, por intermédio da Senhora Krijanowsky, é o romancista dos velhos tempos de Roma e do Egito e onde, por força disso, a presença de escravos em suas narrativas é uma constante, como a história de José do Egito em “O Chanceler de Ferro”, por exemplo. E não fica aí. Em “Herculanum”, Metela compra um menino de 12 anos, e Sempronius, muitos escravos para servi-lo em Roma. Mas o Egito dos faraós vai reviver em “O amor venceu”, de Lucius por Zilda Gaspareto (Edicel) quando Solimar, uma escrava, anjo bom de toda a narrativa, reconhecia:

            “- Podemos escravizar o corpo pela força bruta, mas nunca pelo Espírito. Existem escravos que são mais livres que os seus senhores. Muitos são os escravos dedicados e resignados que podem estar em paz com sua consciência, poucos os senhores que possam fazê-lo.”

             Passemos sem delongas a alguns casos pinçados ao momento brasileiro. Em “Nosso Lar”, de André Luiz, médium F. C. Xavier, Capítulo 34, encontramos um diálogo em que uma antiga escravagista desencarnada em grande sofrimento ainda exclama:

            “(...) Escravo é escravo. Se assim não fora, a religião nos ensinaria o contrário. Pois se havia cativos em casa de bispos, quanto mais em nossas fazendas? Quem haveria de plantar a terra, senão eles? (...) os escravos são seres perversos, filhos de Satã!”

Em “Instruções Psicofônicas”, através de F.C. Xavier, há um “Depoimento” dos mais dramáticos, de um senhor de escravos da cidade de Vassouras. Descobrira ideias preparatórias de próxima emancipação da parte de um servo culto e inteligente a quem se afeiçoara. Tomado de rancor, impôs-lhe castigos mortais. Este, porém, em plena agonia, beijou-lhe os pés; daí o remorso que o acompanhou pelo restante de seus dias terrenos. Desencarnado, reconheceu no ex escravo seu próprio pai de outra encarnação. A Providência Divina permitiu-lhe o reconforto de palavras dulcificadas no Evangelho. Quer então o reencontro com a sua vítima e para isso se prepara com vistas a nova encarnação. E exclama:

Louvo a liberdade que me permite agora pensar em receber o bem-aventurado cativeiro da prova, favorecendo-me por fim o galardão da cura!...”

Eis a Justiça Divina na sublimação do resgate.

Já a obra “Contos e Apólogos”, e com eles voltamos a Irmão X, no lápis de F. C. Xavier, no capítulo “Dívida e Resgate”, conta-nos a história de rica senhora de escravos do Vale do Paraíba, irritada com a mestiça que lhe dera netos com o Senhorzinho. Expulsa-a, mas de molde a que viesse a morrer tragada pelas águas. Cem anos depois está reencarnada e é esposa de um pobre operário. O casebre onde mora é violentamente tomado pela enxurrada que, finalmente, leva-lhe o corpo na caudal que se forma. É o resgate. Em “Ação e Reação” – André Luiz (F.C. Xavier) -, a trama insondável dos destinos faz de orgulhoso senhor de escravos a vítima de um crime passional. Os cúmplices tornam à escola do sofrimento e o pai, que fora assassinado, renasce filho adotivo que recebe a ternura e a proteção do próprio parricida do passado.
Curioso  o que narra Hilário Silva em “Almas em Desfile”. Certo comendador, fazendeiro da região havia 80 anos, fora um homem terrível. Possuía legiões de escravos e, entre eles, era conhecido por flagelo de todos. Valia-se de capatazes cruéis e às vezes chicoteava ele próprio os escravos até a morte. Sabendo disso, nossos confrade Jorge Sales, dirigente da Casa Espírita nos arredores da antiga fazenda, tinha imensa tarefa à sua frente: doutrinar inúmeros Espíritos ainda presas da revolta. E reconhecia:

Eu também pareço sofrer a influência dessa perigosa entidade (o antigo senhor)... As referências ao comendador desabam sobre mim como choques elétricos. Só em ouvir-lhe o nome, sinto-me mal.”

Indaga, um belo dia,  ao orientador dos trabalhos, se não seria mais justo evocar esse Espírito. O orientador informava-lhe que não, pois que o comendador encontrava-se em provas. Com a insistência de Jorge, inconformado, o orientador teve de revelar-lhe:

A evocação não deve ser feita, porque o ex comendador  (...) é você mesmo... reencarnado.”

Para quem quer que tenha dirigido reuniões mediúnicas, o fato não é de estranhar, mas citemos o que se encontra em “Missionários da Luz”, médium F. C. Xavier, autor espiritual ainda uma vez André Luiz, Capítulo 18, quando se descreve um caso de subjugação por terrível vingador. Dizia ele:

“- Por simples capricho, ela (a obsidiada, atualmente) vendeu minha esposa e meus filhos! (...) Será crível que Jesus, o Salvador por excelência, aplaudisse o cativeiro?”

Coube ao doutrinador explicar que o Mestre Sublime não aprovaria a escravidão, ao tempo que convidava o interlocutor a considerar, de sua parte, os próprios erros: o “credor exigente, em geral, é cego para com os próprios compromissos”. E afinal de contas, um erro jamais justifica outros tantos.

“Libertação”, também de André Luiz e ainda através de Chico, Capítulo 7, conta a história de uma pobre mulher em drama dos mais pungentes. Fora tirânica senhora de escravos e perseguira desditosa jovem e os filhos desta com o seu marido, em uma união anterior ao próprio casamento. Separada e vendida a jovem cativa, acusados e flagelados os dois filhos, tornaram-se os três terríveis vingadores. Voltaria ela à vida física e os verdugos de agora seriam reencarnados como filhos. É o acerto de contas a desdobrar-se sob as bênçãos do tempo.




08 Escravidão e Espiritimo


Bill of sale for the auction of the "Negro Boy Jacob" for "Eighty Dollars and a half" to satisfy a money judgment against the "property" of his owner, Prettyman Boyce. October 10, 1807. Fonte: Wikipedia.us


-VIII-
 ‘Somos todos Irmãos’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Julho  1988

            Como não poderia deixar de acontecer, a presença decisiva do negro na vida brasileira estabeleceu laços de profunda consanguinidade com a miscigenação racial, a fraternidade e a assimilação da cultura em nossa sociedade. Nas artes plásticas, na literatura, na linguagem coloquial, na toponímia, na culinária, em todos os domínios. No samba, no Carnaval, nos hábitos de vida diária da população. No folclore, enfim. Adaptados ritos fetichistas às práticas religiosas que lhes foram impostas pelos seus senhores e pelos sacerdotes, no esforço de cristianização, com a adaptação de dogmas e de rituais, realçando-se, espontânea, a presença de fenômenos anímico-mediúnicos, formou-se o conhecido sincretismo como uma força de religião nacional. Explica-nos muito bem esse processo o Prof. Deolindo Amorim em ‘Africanismo e Espiritismo’ e em ‘O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas’. Devemos respeitar o fato histórico, a cultura própria e a liberdade de crença e de manifestação desses nossos irmãos. Desconhecimento de causa tem feito muita gente englobar todas as práticas, porque mediúnicas, esquecendo-se de refletir nas bases filosóficas e na universalidade da fenomenologia. E não só isso acontece, como certas práticas até mesmo desavisadamente se confundem. Pois, nossos irmãos desencarnados que foram escravos no passado mais ou menos próximo não são proibidos de se manifestar em ambientes religiosos espíritas propriamente ditos. E é exatamente aqui que se estabelece a confusão. Quem foi índio ou negro em dada existência pode trazer-nos a sua experiência. Devemos mesmo aproveitar-lhes a humildade, não a nosso interesse pessoal ou egoístico, mas para que nos elevamos espiritualmente um e outro. É esse o pensamento que vimos em ‘Lázaro Redivivo’. Mas também em ‘Vozes do Grande Além’, sob o título ‘Eles, nossos irmãos’. Falamos o Espírito José Inácio Silveira da Mota, que foi Senador do Segundo Império. Recordando que os escravos tinham por salário o pelourinho, o flagelo e o chicote, esse pensador observa:

            “Entretanto, a redentora Lei de 13 de Maio de 1888, que lhes devolveu a liberdade, não lhes atingiu de todo a vida espiritual, porque, ainda hoje, abertas as portas do intercâmbio entre os dois mundos, ei-los, de novo, atraídos e engodados nas múltiplas linhas do fenômeno psíquico, para continuarem na posição de elemento servil.”

E então o Estadista do passado formula indeclinável apelo:

Espíritas do Brasil, pregoeiros da fé renovadora, quando em contato com os desencarnados, que ainda se ligam ao mundo africano, por força de estágio evolutivo, olvidai a paixão escravagista, deles aprendendo a abnegação e a humildade e ajudando-os, em troca, a subir para mais altas formas de educação.
Manter o cativeiro do corpo ou da alma é falta grave, pela qual responderemos, um dia, nos tribunais celestes.”

Em ‘Falando à Terra’ – este e os dois livros anteriormente citados recebidos pelo médium F.C. Xavier – é a vez de ouvirmos ‘Do Além’, na fala de Luís Gama (Espírito):

Antigamente, combatíamos o cativeiro e brandíamos o tacape da nossa indignação contra a megalomania escravagista. Usávamos a lâmina da palavra e fomentávamos o espírito revolucionário contra a displicência dos senhores rurais que mantenham na América o feudalismo da crueldade, pretendendo encontrar neles, com o nosso requinte de sarcasmo, os monstros infernais do chicote e da senzala, que a aristocracia do dinheiro e do poder metamofoseava em sorridentes barões.
(,,,) entretanto, se o nosso concurso valeu, indiscutivelmente, para libertar milhares de companheiros asfixiados no tronco da humilhação ou enclausurados no quilombo da angústia, livrando-os da perseguição sistemática de capatazes impiedosos, em despertamento além da morte reconhecendo-os na situação de misérrimos escravos de nossas próprias paixões.”

Mais adiante, não é possível deixar de transcrever um raciocínio do grande lidador:

Jesus, naturalmente, não encabeçou qualquer  movimento de extinção da escravocracia de seu tempo, não porque abonasse a indébita apropriação do trabalho de muitos por alguns, mas pela extrema compaixão, que muito mais a merecem dominadores do que servos.
(...) Os mais infelizes não se encontravam nos serviços pesados (...) mas na glória vazia dos titulares e dos libertos, impando de autoridade e de ouro, sem recursos, no entanto, para o desenvolvimento espiritual, encastelados na fortaleza da ilusão e da ignorância que a situação lhes impunha ou que os privilégios lhes outorgavam,”

Sim, diremos, mas a escola terrena inclui também a disciplina das experiências múltiplas e o soberbo passará por aquela da servidão... Afinal, somos todos irmãos. E, exatamente por isso, a seu tempo e ainda hoje, para muitos, a Doutrina do Cristo – falamos da sua verdadeira doutrina – seria considerada subversiva, como observa Emmanuel, por igualar os servos e os seus senhores.


07 Escravidão e Espiritismo



Ledger of sale of 118 slaves       Charleston, South Carolina, c. 1754


-VII-
 ‘O Grande Débito’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Junho  1988


            Em “Lázaro Redivivo”, o autor espiritual, através de F. C. Xavier, assina-se “Irmão X”, mas todos sabemos tratar-se de Humberto de Campo. A páginas 154 e seguintes o repórter do Além data de 1583, segundo Rio Branco, o primeiro contrato de introdução de escravos negros no Brasil. E escreve:

A contar de 1758, quando o corajoso sacerdote Manuel Ribeiro da Rocha ousou escrever contra a vergonha da escravidão, autorizadas vozes se levantaram, sob a Luz do Cruzeiro, contra o doloroso comércio de homens livres. Em 1789, a abolição já constituía um dos itens do programa político da Conjuração Mineira. Em 1810, o Príncipe D. João fez o possível por golpear o ignóbil movimento, sensibilizado com as injustiças que presenciava diariamente no Rio, efetivando providências para a extinção gradual do cativeiro, que culminaram com a ratificação do tratado comcluído em Viena, entre Portugal e Inglaterra, pelo qual a Nação Portuguesa se propunha a cessar todo o tráfico na costa africana. Mais tarde, D.Pedro I, na Convenção de Novembro de 1826, assinava novo acordo com a Grã-Bretanha, pelo qual se comprometia a proibir toda a espécie de comércio de escravos na Costa da África.”

Recordemos a força de expressão daquele hino que cantávamos nas escolas de antigamente e hoje meio esquecido:

É necessário libertar-nos, para que compreendamos a liberdade.”

Teremos, com todo o esforço bravamente realizado, considerado também a enormidade do débito que assumimos para com aquele povo e para com aqueles Espíritos?        Voltemos ao livro supracitado e anotemos o pensamento inserto na página 39:

Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país...”

Terá isso acontecido? Pois, mais adiante está escrito:

A ignorância estabelece o cativeiro (destaque do autor), mas a sabedoria oferece a liberdade.”

Tais reflexões fazem sentido com outras afirmações na mesma obra, páginas adiante, Capítulos XXXIII e XXXIV. No primeiro, o autor refere-se aos ‘indianismos’ e ‘africanismos’ de inúmeras manifestações da fenomenologia, e indaga se já pensamos maduramente na expressão moral desses acontecimentos. É claro, reporta-se ele à situação de subalternidade a que ficam relegados muitos Espíritos desejosos de trabalhar para progredir, mas que na realidade atendem ao chamado mediúnico – distante da orientação doutrinária espírita -, induzidos, de hábito, a manter o atraso espiritual em que se encontram, para, de melhor forma corresponderem a ridículos caprichos dos encarnados. Um círculo vicioso de ignorâncias... E o autor é bem claro aqui:

Supõe você que a Abolição terminou em 13 de Maio de 1888? A grande revolução  da princesa Admirável atingiu os ‘escravos físicos’, continuando-se aqui o serviço de libertação dos ‘cativos espirituais’. José do Patrocínio e Luís Gama, Antônio Bento e Castro Alves, André Rebouças e Joaquim Nabuco prosseguem na jornada redentora. A Princesa Isabel não considera o movimento terminado e continua, também, servindo à grande causa, desatando os grilhões da ignorância e acendendo novas luzes na esfera a que você chegará em futuro próximo.”

É na página 151 que Irmão X verbera:

Quem recebeu na terra farta de Santa Cruz, os europeus esgotados por lutas sangrentas, abrindo-lhes caminho novos à realização espiritual, transformando-se em escravo sofredor dos conquistadores inteligentes? Não foi, por acaso, o índio? (...) Desconhece o que fez Pizarro, o tirano espanhol, diante dos americanos ingênuos que mais confiaram? E os africanos? Quem os arrebatou da terra natal, arrebanhando-os como animais, a fim de aproveitar-lhes o braço forte nas construções do Mundo Novo? Quem os assassinou, devagarinho, em navios infectos, e vendeu os que resistiram à morte aos cruéis senhores do feudalismo rural? E é justamente você, meu amigo, leitor assíduo da História, quem admira, com falsa ingenuidade, as manifestações dos  nossos irmãos, ainda encarnados no rudimentalismo da forma? Entretanto, Pai Mateus e Mãe Ambrósia, a quem se refere com tanto sarcasmo, foram pajens carinhosos de seus bisavós, furtaram o leite dos próprios filhinhos para que os seus antepassados vivessem, e choraram, na senzala, em segredo, quando os seus recuados parentes  lhes prostituíram as filhas, vendendo-as, logo após, com frieza e ferocidade, aos tiranos do cativeiro.”

E, conclusivo:

Não considera, você, que todos nós, Espíritos de Inteligência requintada, mas de sentimento galvanizado no mal, somos devedores antigos dessas almas virtuosas e nobres, embora, muitas vezes, cristalizadas em velhos hábitos que lhes retardam o progresso intelectual? (...) Se encontramos numerosas Entidades de africanos e indígenas, em nossos ministério espiritual, é que nos serviram a todos, nestes últimos quatro séculos, na terra abençoada e farta do Brasil.”

E ainda um recado muito expressivo (Capítulo XXXIV):

Diga aos nossos companheiros do Espiritismo cristão no Brasil que eles receberam de Jesus um sagrado depósito, qual o de associar o Evangelho de Redenção às conquistas científicas, filosóficas e religiosas da Humanidade.”

Finalmente, a Espiritualidade pede-nos o concurso:

“- Que eles nos ajudem no benemérito serviço de educação e libertação daqueles a quem tanto devemos.”



06 Escravidão e Espiritismo




-VI-
 ‘Movimentos Libertários’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Maio  1988

            Estávamos no século XVIII quando a Inglaterra, por motivos de ordem econômica, se insurgiu contra a escravidão nas colônias da América. E viria a exercer pressões, segundo se sabe, nas demais colônias, de modo a que se ampliasse o seu comércio. Decisões de um congresso contra o tráfico escravagista, ocorrido em Viena, repercutiam a essa altura em todo o mundo. No Brasil-Colônia  os movimentos nativistas traziam no bojo a idéia de um povo realmente livre, de livres irmãos. Assim foi o movimento inconfidente de Minas Gerais, que culminou com a morte do herói da Nacionalidade, o Alferes Tiradentes. Fora de nossas fronteiras, com a revolta de 1848, a França delibera a extinção do cativeiro em seus territórios. Em 1861 foi a vez da Rússia czarista, com Alexandre II. De 1861 a 1865 o solo norte-americano foi sacudido coma Guerra de Secessão, que terminou pela vitória da liberdade. De nossa parte, liberto o nosso País do jugo português em 1822, o patriarca José Bonifácio de Andrade e Silva, que voltaria ao corpo físico com a personalidade de Rui Barbosa, foi então dos primeiros a tratar da escravatura com vistas a uma abolição gradual.  Considerava o Ministro que o trabalho escravo era essencialmente antieconômico. Esses mesmos argumentos inspiraram a Regência, durante a Minoridade do Augusto Imperador. Dessa forma, em 7-11-1831, a Lei determinava que todos os negros que a partir de então viessem ao império eram declarados livres no País. Mesmo assim, o tráfico, já agora ilegal, prosseguiria. D. Pedro II bem desejaria antecipar-se ao movimento abolicionista.
            Mas considerava, por outro lado, a fragilidade das instituições.  Guerra civil americana levava-nos ao temor de consequências desastrosas, sobretudo por havermos passado pelas lutas da Cisplatina e do Paraguai, enfraquecendo a economia da Nação. Veio então a Lei Eusébio de Queirós, de 4-9-1850, proibindo energicamente o tráfico negreiro. Embora, com isso, começasse o Sul a comprar escravos no Norte/Nordeste para as lavouras de café.
            Em 1866, os escravos que lutaram na Guerra do Paraguai foram declarados livres.
            Intensificava-se a campanha por volta de 1869 e nesse ano uma nova lei, muito pouco citada mas profundamente humana, proibia a venda de escravos em leilões públicos e a separação da família.  Não entendemos por que esse registro é tão pálido. É ainda por essa época que Adolfo Bezerra de Menezes publica um estudo intitulado “A Escravidão no Brasil e as medidas que convém tomar para extingui-la sem dano para a nação” (ver Zeus Wantuil, “Grandes Espíritas do Brasil”, ed. FEB). Preocupava-se  o grande homem público com os acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos da América. Em 1870, Pimenta Bueno, Presidente do Conselho de Ministros, volta a falar da abolição. Mas só em 28-9-71 o Ministro José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, consegue aprovar a chamada Lei do Ventre Livre. Estava sendo praticada um força gradual de libertação. Em 1879 volta o assunto à baila. Falam sobre ela Jerônimo Sodré e Joaquim Nabuco. Eis que então começa a surgir em todo o País o movimento popular que ganharia as ruas e os palácios. Fundam-se clube abolicionistas, com o apoio franco e decisivo da imprensa, clubes esses que viriam a ser, logo a seguir, também republicanos.
            Sim! O século XIX, século que viu Kardec, haveria de caracterizar-se por novas luzes em todo o mundo, nas áreas das Ciências, da Economia, da Indústria e da Filosofia, antecipando-se às conquistas do século atual. Assim, diz Emmanuel em “”A Caminho da Luz”, por intermédio de F. C. Xavier (página 203).

            “cumprindo as determinações do Divino Mestre, seus mensageiros do plano invisível laboram juntos aos gabinetes administrativos, de modo a facilitar a vitória da liberdade.”

São citadas no Rio, a antiga Capital Federal, André Rebouças, Gusmão Lobo, Joaquim Serra, João Clapp Ferreira de Menezes, Rui Barbosa e muitos outros, mas, destacando-se o Tigre da Abolição, José Carlos do Patrocínio.  Em São Paulo, o brilho do movimento ficou por conta de Luís Gama, de Antônio Bento, do poeta baiano Castro Alves, uma das mais altas expressões para poesia condoreira. Não só nas grandes cidades o movimento ganhou expressão. No Ceará, um humilde canoeiro negou-se a transportar escravos em sua embarcação. Esse gesto repercutiu como um grito e em breve a Província do Ceará, depois a do Amazonas extinguiam a escravidão em seus territórios. O mesmo ato glorificou alguns municípios gaúchos. Saía então a Lei dos sexagenários, em 28-9-85, projeto do Ministério Dantas, mas só efetivado na gestão do Conselheiro Sraiva. Apartir de 1887 o Exército imperial negava-se a capturar escravos fugidos. Chegaria ao auge o movimento quando, no Ministério João Alfredo, o Parlamento é, também ele, sacudido pelo movimento popular. Dessa forma, a 13 de maio de 1888 é promulgada a Lei Áurea. Estava em Portugal o Imperador D. Pedro II, em tratamento de saúde, e a Princesa Imperial Regente a sancionava com uma pena de ouro adquirida por subscrição popular. Sabe-se que Sua Alteza Imperial tinha plena consciência de seu ato. “- Vossa Alteza – ter-lhe-ia dito Cotegipe – ganhou a questão, mas perdeu a coroa.”  Referia-se à implantação da República, que se daria no ano seguinte. E essa sua plena consciência e, portanto, essa renúncia engrandecem extraordinariamente o gesto magnânimo que faz elevar o seu nome e a sua memória no reconhecimento do povo e não bênção de Deus.
            Nesse dia – descreve-nos o mesmo Espírito-repórter Humberto de Campos em “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”-

            “ao Rio de Janeiro afluem multidões de seres invisíveis, que se associam às grandes solenidades da Abolição. Junto do espírito magnânimo da Princesa, permanece Ismael com a bênção da sua generosa e tocante alegria. Foi por isso que Patrocínio, intuitivamente, no arrebatamento do seu júbilo, se arrastou de joelhos até aos pés da princesa piedosa e cristã (...) O marco divino da liberdade dos cativos erguia-se na estrada da civilização brasileira, sem a maré incendiária da metralha e do sangue (...) Jesus, com a sua misericórdia infinita, lhes outorgava a carta de alforria, incorporando-se, para sempre, ao organismo social da pátria generosa dos seus sublimes ensinamentos”.

O Escravo
                      por  Ciro Costa

Do taquaral à sombra, em solitária furna,
(para onde, com tristeza, o olhar curioso alongo),
sonha o negro, talvez, na escuridão noturna,
com os límpidos areais das solidões do Congo.

Ouve-lhe a noite a voz tristíssima e soturna,
num profundo suspiro, entrecortado e longo.
é o rouco, surdo som, zumbindo na cafurna,
é o urucungo a gemer na cadência do jongo.

Bendito sejas tu, a quem, certo, devemos,
a grandeza real de tudo quanto temos!
sonha em paz Sê feliz! E que eu fique de joelhos.

Sob o fúlgio céu a relembrar magoado.
que os frutos do café são glóbulos vermelhos,
do sangue que escorreu do negro escravizado.