sábado, 30 de abril de 2011

02/02 Sobre o Batismo



Ainda o Batismo
           
            Reformador (FEB) 15 de Dezembro de 1903

            Os conceitos que sobre este assunto emitimos em nossa edição de 15 de outubro passado mereceram alguns reparos do nosso prezado colega d ‘A Doutrina, do Paraná, a quem, antes de tudo nos confessamos gratos por nos proporcionar este ensejo de melhor esclarecer e completar o nosso pensamento ali imperfeitamente enunciado. Uma só coisa, entretanto, deploramos, e é que tão ligeiramente tivesse lido o nosso escrito, que começasse por considerá-lo ‘uma carta de respeitável confrade’ dirigida a esta redação, quando claramente assinalávamos que as apreciações que se iam ler, e a que conservávamos, como de razão, a forma epistolar, havia sido o assunto de uma carta por nós escrita, em resposta à consulta que em tal sentido nos fora feita por um confrade do interior.

            Foi ainda a atenção, indubitavelmente superficial com que nos leu, que o fez atribuir ao nosso pensamento uma elasticidade que os próprios termos em que foi expresso de forma alguma autorizavam.

            Restabeleçamos, com alguns esclarecimentos, a questão nos seus primitivos termos.

            Pediu-nos dedicado irmão em crença, na carta a que aludimos na resposta publicada, que lhe indicássemos uma fórmula para batizar crianças, ‘a fim de poder satisfazer os pedidos que em tal sentido lhe eram sucessivamente feitos, e aos quais, em sua boa fé, não via inconveniente em atender, porque – dizia ele – ‘parece que é tempo de seguirmos o Evangelho de Jesus.’

            O inconveniente, que ele não descobria, vimos nós na instituição solicitada, ‘fórmula’ que viria – ou virá, onde e quando quer que se lembrem de a estabelecer – a constituir nada mais nada menos que um sacramento, tal qual a igreja de Roma o adotou para o mesmo caso.

            Foi, pois, a esse grave precedente de se introduzir uma nova liturgia nas práticas espíritas, que opusemos os conceitos emitidos na carta aqui reproduzida. Salientamos então:

            1º que o batismo, a que se submetiam os primeiros cristãos, tinha para eles a significação simbólica, no ponto de vista da formalidade exterior, da livre adoção do novo credo, a que eles previamente começavam por se converter.

            2º que o faziam como homens, na plenitude, portanto, do seu livre arbítrio; e acentuamos em seguida a diferença entre esse costume e a prática, que a igreja de Roma nos legou, de se impor arbitrariamente a filiação religiosa às crianças em tenra idade, mediante a administração desse sacramento, com evidente violação da liberdade espiritual. Acrescentamos por fim que a esse procedimento, inspirado no orgulho humano, ‘em cujo nome os pais julgam poder dispor da consciência dos filhos’, devíamos opor o espírito de tolerância, tão pouco infelizmente introduzido nos nossos hábitos, e assim aguardar que os nossos filhos, chegados à idade da razão ‘adotem livremente a crença que melhor consulte as aspirações de sua própria alma’.

            Daí concluiu o colega – atribuindo ao nosso pensamento uma extensão que ele, de resto, não comporta, - que proscrevíamos todo ensino religioso às crianças, e depois de citar alguns trechos de artigos nesta folha publicados, a cerca da utilidade da educação espírita da infância, no intuito porventura de descobrir incoerência na nossa atitude atual, raciocina: ‘portanto não nos parece que o ‘Reformador’, revista que muito e muito nos merece, vinha agora dizer que é um crime que se pratica, ensinando às crianças desde os seus primeiros dias a doutrina que julgamos ser a melhor até hoje conhecida’.

            Ora, o colega, como se vê, confunde a administração do batismo, em virtude da qual fica a criança arbitrariamente vinculada a determinado credo – não importa qual seja: o fato é sempre o mesmo – com o ensino religioso, contra o qual não articulamos uma única sílaba. E não precisava rebuscar as nossas edições de 1891 para demonstrar que já proclamamos as excelências  desse ensino; bastava ler com um pouco de atenção, linhas abaixo, esse mesmo escrito ‘Sobre o batismo’ para verificar que reconhecemos ser esse o primeiro dever dos pais para com os filhos, assinalando que o batismo de que estes carecem ’é o preparo dos seus pequeninos corações, nos quais devem, o mais cedo possível, ser lançados os ensinos da obediência, da humildade, da paciência, da humildade, da paciência e da doçura como do amor, desde o que se reporta ao nosso Pai celestial, até a piedade pelos próprios animais’ etc.
            É a isto que o colega chama ‘ não ter o Reformador mais fé na doutrina que há vinte e um anos propaga? Nesse amor, que abrange desde o Criador até os mais ínfimos seres que nos rodeiam, não se encerram com efeito toda a lei e os profetas? E onde o hão de ir beber os pais, para transmitir a seus filhos, senão naquele código divino, que é o coroamento triunfal do Espiritismo? Não podia, pois, ser mais gratuita do que essa, a afirmação de que proscrevemos o ensino religioso à infância? E tudo por que? – Porque nos insurgimos contra a instituição do batismo, que se pretende transplantar, com o odioso característico apontado, para os hábitos da nossa doutrina!
                                                                       *
            Dirá o colega – o claramente o disse em seu artigo – que não é o batismo, como fórmula ou rito, que defende, porque, para o combater, onde quer que o pratiquem desse modo, tê-lo-emos solidariamente ao nosso lado; o que se defende é ‘a apresentação da criança |à proteção dos bons espíritos’ afim de pedir-lhes para que ela seja boa e dócil aos seus pais, que ela siga o caminho do bem’, acrescentando: ‘e que tudo isto se realize dentro de casa, no santuário da família, não nos parece que seja um rito,’ etc.

            Antes de tudo, quer nos parecer que essa apresentação, a que tomamos a liberdade de fazer alusão em nossa crítica – e daí a impugnação do colega – não seja uma cerimônia tão íntima e tão simples como o faz crer, nas linhas que acabamos de citar; porque nessa mesma edição de 1º de Dezembro, em que vêm os seus reparos à nossa  carta-editorial, deparamos com esta local em seu noticiário:

            ‘Apresentação – No dia 25 de Outubro passado, foi apresentada à proteção dos Bons Espíritos, no Centro Espírita, uma filhinha do nosso confrade Sr. José Ferrari, que no registro civil tomara o nome de Elisa. Que seja sempre guiada no caminho do Bem, são os nossos votos’.

            Vê-se, pois, que a ‘apresentação’ não tem lugar ‘no santuário da família’ mas é, algumas vezes pelo menos, efetuada com toda a solenidade nos centros espíritas, assim convertidos, similarmente aos da igreja, em templos para esse privativo mister.

            Em sua sincera boa fé, a que folgamos de render a mais espontânea justiça, mas que só a força do hábito e da educação religiosa justifica, o colega não descobre o mínimo perigo nesse ato, tão simples na aparência.

            O perigo, todavia, existe, não tanto no que se faz, e que parece realmente inócuo, mas no precedente que constitui e cujas conseqüências não são difíceis de prever. Nestas coisas, como em tudo, o embaraço está em começar. Principia-se por uma ‘apresentação’, invocando a proteção dos guias espirituais; depois a tendência para as pompas exteriores, inata na natureza humana, passará a achar a cerimônia demasiado simples; agradar-lhe-ia alguma coisa mais impressionante, que afetasse os sentidos por mais lisonjeira forma; introduzir-se-ão alguns aparatos para quebrar a monotonia do ato, e dentro em pouco teremos um cerimonial, ao começo limitado, e em seguida cada vez mais complexo e atraente,pelo mistério do simbolismo – quem sabe? – até que toda uma liturgia, invocando os precedentes, se tenha estabelecido, em detrimento da essência espiritual que, a nosso ver, tão exclusivamente deveria predominar, agora e sempre, nos ensinos e nas práticas espíritas.

            Dirá o colega que fantasiamos.  Mas aí estão, para nos edificar, as lições da história particularmente da história e da tradição eclesiásticas. Acredita o colega que o pomposo ritual com que a igreja deslumbra hoje os seus fiéis, foi por ela adotado de um só jato? Não. Ele se foi lentamente introduzindo, de concessão em concessão, através dos séculos, até chegar, como se vê, a substituir-se inteiramente aos ensinos primitivos.

            Ah! A força do tempo e dos precedentes uma vez admitidos! Tenhamos, pois, o cuidado de fugir sistematicamente a todo o formalismo, que não é senão um produto do nosso atraso e ignorância, como de nosso apego às coisas do passado.

            Ao demais, acredito realmente o colega que, para que os bons espíritos tomem a sério os santos encargos de direção e inspiração das criaturas da terra, será necessário que, ao vir uma dela ao mundo, lhes seja formalmente apresentada?  Que noção julga que possuem esses espíritos superiores acerca dos seus elevados deveres? É, em virtude dessa apresentação que eles assumem o compromisso de inspirar os seus guiados para o bem, ou é por força da missão que em tal sentido lhes outorga o Criador? Mas, então, para que serve essa formalidade?   

            De duas uma: ou é indispensável para essa proteção se torne efetiva, e nesse caso ai dos infelizes que não tenham sido ‘apresentados’ porque ficarão à míngua desse amparo, convindo, portanto, quanto antes, decretar a adoção forçosa e geral dessa formalidade; ou mesmo sem ela os guias deixarão de velar pelos seres confiados’ à sua proteção, e em tal caso é inútil, e deve-se por esse motivo suprimi-la, a menos que essa ‘apresentação’ tenha a significação de vincular o recém nascido à crença espírita.

            Incidimos, então, na monstruosidade, contra que nos insurgimos, de violar a liberdade de consciência, tão respeitável no adulto como na criança.. Não. Não nos assiste esse direito, que seria criminoso, por mais convencidos que estejamos de que o maior benefício que podemos dispensar aos nossos filhos é fazê-lo espíritas e sobretudo espíritas cristãos.

            Mas, neste caso, o procedimento que a própria consciência nos indica é inteiramente outro; e aproveitamos o ensejo para tornar bem claro o nosso pensamento, afim de que se não preste novamente a errôneas interpretações.

            Desde os mais tenros anos devem naturalmente os pais ir transmitindo aos filhos o que denominaremos lições práticas de Espiritismo, isto é, não perdendo ensejo de ensinar-lhes as noções elementares das grandes leis que regem a vida e o destino humanos, como a existência de Deus, com os seus infinitos atributos, a preexistência da alma e as vidas sucessivas e solidárias, sobre a base da imortalidade, a justiça divina a que  nenhuma das nossas ações pode escapar, e ao lado disso insinuando-lhes os sentimentos cristãos, de que lhes devem, em primeiro lugar, dar os exemplos, formando assim o caráter e emancipando o espírito dos filhos de todas as superstições e preconceitos, isso até aos 10 ou 11 anos. 
Porque só então começarão as crianças, segundo o seu desenvolvimento moral e intelectual, a estar verdadeiramente aptas para fazer um curso regular de Espiritismo, ainda assim elementar, sendo bem para lastimar que ainda não possuamos aqui no Brasil um trabalho didático apropriado a esse fim.

            Acompanhará, pois, a solicitude paterna a evolução do espírito de seu filho, até a idade propriamente da razão.

            Se, porém, chegado ai, e não obstante essa educação preparatória em cuja superioridade somos os primeiros a depositar a mais absoluta confiança, se mostrar ele refratário ao ensino dado, e descobrir que o seu espírito tem mais afinidade com outra qualquer crença, o que não é impossível – a natureza humana apresenta tão grandes singularidades! – que pensa o colega que devem fazer os pais? Respeitar, sem o menor ressentimento, a livre manifestação da consciência de seu filho, não é assim? Esse é, pelo menos, o seu dever de tolerância.
                                                                                   *

            Assim fica, portanto, completamente esclarecido o nosso pensamento. Insistirá o colega depois disso na necessidade de apresentação das crianças à proteção dos guias espirituais, sob o pretexto que, de resto, invocou em seu escrito, de que o Mestre incluiu em O Evangelho segundo o Espiritismo uma prece pelas crianças que acabam de nascer, o que – digamos de passagem – nenhum apoio oferece à sua argumentação?

            Isto, porém, é uma outra questão que bem merece um artigo à parte.
                                                                        

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