-IX-
‘Escravidão na Literatura Espírita’
por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB) Setembro 1988
Não seria fácil afirmar, a rigor, quantas obras espíritas, especialmente aquelas romanceadas, históricas ou de ficção. – romances de época – registram passagens relacionadas com vidas terrenas de personagens na condição de escravos ou de senhores. Quantos, na realidade, teriam sido escritas por inspiração mediúnica!... É por isso difícil fazer-se de pronto uma visão geral. Poderemos, todavia, em simples amostragem, focalizar algumas. Vejamo-lo.
“Há 2000 anos”, autobiográfica, de Emmanuel, por F. C. Xavier, recorda o senador romano Publio Lentulos destacado para servir ao Império em Jerusalém. Mais que indiferente, é hostil, de início, aos rogos de André Gioras em benefício do filho Saul, preso e condenado ao cativeiro. Quando, sensibilizado, se dispunha a interceder por ele, foi informado que fugira. Na verdade, o jovem fora vendido clandestinamente em Roma. Em “50 anos depois”, ressurge o autor espiritual na personalidade de Nestório, escravo de origem judia, já aí o contraste, como acerto de contas. Em virtude de guerras cicis, seus antepassados tinham-se mudado para Jônia havia alguns decênios. Em Terebinto fora feito escravo. Mas a senhora recomendara às filhas a seu respeito.
“Nunca humilheis a liberdade deste homem, que terá toda a independência para cumprir os seus deveres!...”
Filho de Nestório, Ciro se fez também escravo e é libertado. Os dois irão encontrar-se em momentos supremos de doloroso testemunho, já agora cristãos.
Paulo de Tarso, na biografia de Emmanuel (F. C. Xavier), é uma das joias de fino lavor de nossa literatura. A obra, como se sabe, é “Paulo e Estevão”. Nela aparece logo de início a figura de Jesiel, judeu nascido livre e escravizado pelos conquistadores romanos. Outro não é que o grande mártir Estevão. Após a visão surpreendente de Saulo na estrada de Damasco, vê-lo-emos como guia espiritual do próprio verdugo do passado, transformado em Apóstolo dos Gentios, com o nome cristão de Paulo.
O Espírito escritor Conde de Rochester, por intermédio da Senhora Krijanowsky, é o romancista dos velhos tempos de Roma e do Egito e onde, por força disso, a presença de escravos em suas narrativas é uma constante, como a história de José do Egito em “O Chanceler de Ferro”, por exemplo. E não fica aí. Em “Herculanum”, Metela compra um menino de 12 anos, e Sempronius, muitos escravos para servi-lo em Roma. Mas o Egito dos faraós vai reviver em “O amor venceu”, de Lucius por Zilda Gaspareto (Edicel) quando Solimar, uma escrava, anjo bom de toda a narrativa, reconhecia:
“- Podemos escravizar o corpo pela força bruta, mas nunca pelo Espírito. Existem escravos que são mais livres que os seus senhores. Muitos são os escravos dedicados e resignados que podem estar em paz com sua consciência, poucos os senhores que possam fazê-lo.”
Passemos sem delongas a alguns casos pinçados ao momento brasileiro. Em “Nosso Lar”, de André Luiz, médium F. C. Xavier, Capítulo 34, encontramos um diálogo em que uma antiga escravagista desencarnada em grande sofrimento ainda exclama:
“(...) Escravo é escravo. Se assim não fora, a religião nos ensinaria o contrário. Pois se havia cativos em casa de bispos, quanto mais em nossas fazendas? Quem haveria de plantar a terra, senão eles? (...) os escravos são seres perversos, filhos de Satã!”
Em “Instruções Psicofônicas”, através de F.C. Xavier, há um “Depoimento” dos mais dramáticos, de um senhor de escravos da cidade de Vassouras. Descobrira ideias preparatórias de próxima emancipação da parte de um servo culto e inteligente a quem se afeiçoara. Tomado de rancor, impôs-lhe castigos mortais. Este, porém, em plena agonia, beijou-lhe os pés; daí o remorso que o acompanhou pelo restante de seus dias terrenos. Desencarnado, reconheceu no ex escravo seu próprio pai de outra encarnação. A Providência Divina permitiu-lhe o reconforto de palavras dulcificadas no Evangelho. Quer então o reencontro com a sua vítima e para isso se prepara com vistas a nova encarnação. E exclama:
“Louvo a liberdade que me permite agora pensar em receber o bem-aventurado cativeiro da prova, favorecendo-me por fim o galardão da cura!...”
Eis a Justiça Divina na sublimação do resgate.
Já a obra “Contos e Apólogos”, e com eles voltamos a Irmão X, no lápis de F. C. Xavier, no capítulo “Dívida e Resgate”, conta-nos a história de rica senhora de escravos do Vale do Paraíba, irritada com a mestiça que lhe dera netos com o Senhorzinho. Expulsa-a, mas de molde a que viesse a morrer tragada pelas águas. Cem anos depois está reencarnada e é esposa de um pobre operário. O casebre onde mora é violentamente tomado pela enxurrada que, finalmente, leva-lhe o corpo na caudal que se forma. É o resgate. Em “Ação e Reação” – André Luiz (F.C. Xavier) -, a trama insondável dos destinos faz de orgulhoso senhor de escravos a vítima de um crime passional. Os cúmplices tornam à escola do sofrimento e o pai, que fora assassinado, renasce filho adotivo que recebe a ternura e a proteção do próprio parricida do passado.
Curioso o que narra Hilário Silva em “Almas em Desfile”. Certo comendador, fazendeiro da região havia 80 anos, fora um homem terrível. Possuía legiões de escravos e, entre eles, era conhecido por flagelo de todos. Valia-se de capatazes cruéis e às vezes chicoteava ele próprio os escravos até a morte. Sabendo disso, nossos confrade Jorge Sales, dirigente da Casa Espírita nos arredores da antiga fazenda, tinha imensa tarefa à sua frente: doutrinar inúmeros Espíritos ainda presas da revolta. E reconhecia:
“Eu também pareço sofrer a influência dessa perigosa entidade (o antigo senhor)... As referências ao comendador desabam sobre mim como choques elétricos. Só em ouvir-lhe o nome, sinto-me mal.”
Indaga, um belo dia, ao orientador dos trabalhos, se não seria mais justo evocar esse Espírito. O orientador informava-lhe que não, pois que o comendador encontrava-se em provas. Com a insistência de Jorge, inconformado, o orientador teve de revelar-lhe:
“A evocação não deve ser feita, porque o ex comendador (...) é você mesmo... reencarnado.”
Para quem quer que tenha dirigido reuniões mediúnicas, o fato não é de estranhar, mas citemos o que se encontra em “Missionários da Luz”, médium F. C. Xavier, autor espiritual ainda uma vez André Luiz, Capítulo 18, quando se descreve um caso de subjugação por terrível vingador. Dizia ele:
“- Por simples capricho, ela (a obsidiada, atualmente) vendeu minha esposa e meus filhos! (...) Será crível que Jesus, o Salvador por excelência, aplaudisse o cativeiro?”
Coube ao doutrinador explicar que o Mestre Sublime não aprovaria a escravidão, ao tempo que convidava o interlocutor a considerar, de sua parte, os próprios erros: o “credor exigente, em geral, é cego para com os próprios compromissos”. E afinal de contas, um erro jamais justifica outros tantos.
“Libertação”, também de André Luiz e ainda através de Chico, Capítulo 7, conta a história de uma pobre mulher em drama dos mais pungentes. Fora tirânica senhora de escravos e perseguira desditosa jovem e os filhos desta com o seu marido, em uma união anterior ao próprio casamento. Separada e vendida a jovem cativa, acusados e flagelados os dois filhos, tornaram-se os três terríveis vingadores. Voltaria ela à vida física e os verdugos de agora seriam reencarnados como filhos. É o acerto de contas a desdobrar-se sob as bênçãos do tempo.
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