João Marcus (Hermínio Miranda)
Reformador (FEB) Julho 1977
A doutrina
reformista da predestinação, decorrente de uma interpretação inadequada da teologia
de Paulo, não passa de uma aplicação dogmática do conceito do determinismo.
Segundo essa escola de pensamento, a criatura humana nasce – supostamente para
viver uma existência na carne – já predestinada por Deus a slvar-se ou a ser
condenada às penas eternas, sem nenhum apelo, qualquer que seja o seu
procedimento. As contradiçõe que esta exdrúxula doutrina criou n contexto do
pensamento teológico são insuperáveis, por mais que se apliquem os eruditos teólogos para explicá-las.
O extraordinário, contudo, é que tantos desses brilhantes pensadore não tenham
ainda percebido que o problema da responsabilidade pessoal não se resolve, de
maneira simplist, com a elaboração de uns poucos dogmas ou frases engenhosas.
Não se apercebem, esses autore, de que é precisamente o dogma que está
obstruindo a visão mais ampla, que os levaria à essência do problema.
Não queremos,
com isso, dizer que o Espiritismo é o dono da verdade, como ninguém é dono do
ar que respira, ou da luz solar, que ilumina e aquece a todos por igual. É
certo, porém, que a aceitação das verdades contidas no Espiritismo um dia há de
fecundar todo o pensamento humano, nos aspectos mais vastos que pudermos
conceber: ciência, filosofia, teologia, ética. Como também é certo que os formuladores
da Doutrina Espírita não inventaram conceitos novos nem fantasiaram o que ainda
não era oportuno revelar. Ao contrário, sempre nos advertiram a cerca do
caráter gradualístico da revelação, que se desdobra por etapas no curso dos séculos,
apoiada sempre em alguns conceitos básicos intemporais que vão sendo dosados
segundo a capacidade de apreensão dos homens, o que vale dizer, conforme sua
posição evolutiva. Antes que ele esteja pronto, o ensina de verdade superior
seria prematuro e até pejudicial, o que
se evidencia agora mais do que nunca, quando presenciamos o descalabro em que
mergulharam as comunidades humanas em virtude da posse de conhecimento
avançados totalmente inoportunos ante a generalizada imaturidade moral.
No
entanto, jamais faltou a advertência amiga e o severo chamado à
responsabilidade pessoal. A despeito de tudo, o homem sempre achou que podia
burlar ou ignorar a li inescrita de Deus ou negociar com o Pai uma cordo,
mediante propiciações mais ou menos infantis, com as quais tenta-se “comprar” a
boa-vontade do Senhor e o seu perdão. É claro que o perdão está implícito na
natureza divina, pois é da própria essencia do amor, mas é preciso também
entender que o perdão não nos exime da reparação do erro cometido. Daí o lamentável equívoco
que se incorporou ao “sacramento da penitência” dos nossos irmão católicos, que
se julgam limpos de seus pecados depois de confessá-los ao sacerdote e proceder
a um pequeno ritual apropriado. Não é assim, pois a responsabilidade pelo erro
continuará ali, viva e atuante. Resultado de uma falha na utilização do
livre-arbítrio relativo, que as leis divinas nos conferem, o erro cria para
todos nós, indistintamente, quaisquer que sejam as nossas crenças ou
descrenças, o determinismo intransferível do resgate, e quanto mais erramos
mais se aperta o círculo de ferro em torno de nós, até que a própria lei
interfere em favor do pobre transviado para que não se prejudique ainda e
indefinidamente. Mecanismo sete, aliás, etremamente sutil, que trás em sai uma
aparente contradição, mas que nada tem de contraditório: a lei suspende
temporariamente o exercício do livre-arbítrio precisamente para preservar na
criatura o seu direito a ele. De fato, se a persistência no erro não reduzisse
progressivamente nossa faixa de livre escolha, é fácil imaginar, por projeção,
que chegaríamos a um ponto em que toda a nossa liberdde estaria extinta,
cassada por nós mesmos. É disso que nos protege a lei.
Tudo
isso, porém, são exrecícios teóricos da faculdade de cogitar que é própria do
homem. “Cogito, ergo sum”, dizia Descartes e esta foi a sua primeira
certeza. Muitos são, porém, aqueles que não possuem nem o gosto nem o preparo
para esse tipo de especulação, mesmo porque o Cristo nos ensinou que a Verdade
se revela com mais facilidade ao simples do que ao erudito, certamente porque
este se perde no labirinto das suas especulações e como que se deixa fascinar
pela música das suas próprias palavras.
A erudição
balofa e complexa inexiste no pensamento de Jesus. Sua mensagem é pura,
simples, clar, concisa e se coloca ao alcance de todas as inteligências e culturas,
em toos os tempos, sob todas as condições. Quantas vezes, aqui e no passado
distante, temos ouvido essas verdades elementares? Quantas vezes nós mesmos as ensinamos,
nem sempre convictos da sua autenticidade? Pois, agora, informados pela
Doutrina Espírita, é mais que tempo de as entendermos em toda a sua
profundidade e significado, dado que vamos encontrar, no mesmo Evangelho que
estudamos e pregamos durante quase dois milênios, em tantas e tantas vidas, o foco
irradiante da luz que ilumina as estruturas do Espiritismo. Em outras palavras:
levantando os fios luminosos com os quais foi tecida a Doutrina dos Espíritos
veremos que eles vão dar todos, lá naquele núcleo abençoado de pensamento
criador no Mestre Nazareno.
Tomemos um
só exemplo: a parábola do rico e de Lázaro.
Não
faltavam ao rico: boas roupas, mesa farta, amigos, vida livre e, segundo os
padrões humanos, extrema felicidade. Enquanto isso, Lázaro, um mendigo coberto de
chagas e andrajos, ansiava pelas migalhas que sobravam da mesa rica. Com a
morte, Lásaro libertou-se de suas aflições e partiu para o seio de Abraão,
enquanto o rico ficou a penar no umbral. Foi daí que ele teve a visão de Lásaro
junto de Abraão e gritou:
- Pai
Abraão, tem pena de mim e manda Lásaro, para que molhe em água a ponta de seu
dedo, a fim de me refrescar a língua, pois estou atormentado nestas chamas.
- Filho –
respondeu Abraão, com firmeza – lembra-te de que recebeste teus bens em vida,
enquanto Lázaro, somente males; por isso, ele agora é consolado e tu
atormentado. Além de tudo, há entre nósum grande abismo, de modo que nem os
daqui podem ir a ti, nem tu podes vir a nós.
Rogo-te,
contudo pai Abraão – insistiu o rico – que o envies à casa de meu pai, pois
tenho cinco irmãos, para que os avise, a fim de que não venham eles também para
este lugar de tormento.
- Eles tem
lá Moisés e os profetas. Que os ouçam! -retrucou Abraão, inflexível.
Não, pai
Abraão – ainda falou o rico -, se for a eles algum dos mortos, eles se arrependerão.
- Se
não ouviram a Moisés e aos profetas – disse afinal Abraão, para encerrar -,
tampouco se convencerão, ainda que um morto ressuscite.
Entre Lázaro
redimido na dor e o rico que ainda estava no caminho de ida, nos seus desenganos,
há um abismo de tempo a vencer. Encontram-se em níveis espirituais que os
separam, não por força de um privilégio, mas em decorr~encia de um dispositivo
automático que classifica as criaturas segundo seu peso específico que, por sua
vez, está na dependência de suas conquistas espiriuais, de seu trabalho de purificação,
de renúncia, de sabedoria, de fraternidade. O abismo de que fala Abraão nada te
de físico; ele é moral, é uma questão de gradação numa vastíssima escala de
valores. Um dia o rico também estará redimido, junto de Lázaro, sob as vistas de
Abraão, mas é preiso que ele realize em si mesmo a tarefa indelegável do reajuste
perante as leis desrespeitadas pelo seu livre-arbítrio.
Há mais,
porém, a observar com relação à parábola. É na sua aplicação a nós mesmos, à
nossa condição tual. Ela nos convoca a um reexame contínuo de posições. Não
estaremos mergulhados na inconsciencia do rico a malbaratar bens materiais,
espirituais e culturais? Não estaremos esquecidos do dever de servir, onde
estivermos, àqueles que a misericórdia divina colocou junto à nossa mesa farta?
Não estaremos a insistir que nos enviem mais testemunhos quando já temos diante
de nós o exemplo dos que trilharam antes os caminhos que ora percorremos? Não
estaremos a pedir a constante presença dos “mortos”, com as suas exortações, quando
contamos, de há muito, com os claros postulados da Doutrina?
A
misericórdia do Senhor cedeu-nos o campo, a ferramenta e a semente. Faz o sol
aquecer a terra e envia a chuva a regá-la. A nós apenas competem as tarefas de
arar e semear. O que estamos esperando? A agonia e o remorso, a impotência e o
desespero da dor ante o abismo que nos separa daqueles que já se encontram no “seio
de Abraão”?
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