Kardec e Roustaing
por M. Quintão
Reformador (FEB) Maio 1917
(Carta aberta ao estimável confrade Henrique Zamith)
Cego também sou e precatado daquele aviso contido em Mateus C 23 – vv. 23 e 24.
Coerente, assim, com os
ditames da consciência, não me forro ao dever primacial de estabelecer que a
crença, patrimônio intrínseco do espírito, paralela ao seu progresso no tempo e
no espaço, não pode formar-se de alheias, mas das próprias convicções.
Por outras palavras: se a Verdade Divina é integra e una,
no mundo contingente que habitamos, ou ainda na esfera de gravitação da sua
humanidade desencarnada, os prismas dessa Verdade variam ao infinito.
E de molde vem a asserção para os enquadrar-nos em recíproca
tolerância, quando e sempre que abordamos tão magnos problemas.
Não me sobram competência e tempo para minudenciar a tese
de vossa consulta, tese velha, de resto, que a muitos, excelentes confrades
menos precavidos tem feito, quiçá, perder um tempo precioso em divagações
eruditas, mas, por igual, inúteis e até irritantes.
Assim esflorado o meu modo de ver o assunto, não me será
permitido insistir que a opinião a ler-se é minha,
bem pessoalmente minha e como tal não
pode produzir regras nem cânones, colidindo com um regime de bem entendida
liberdade, que escalona as responsabilidades, méritos e deméritos.
Para mim, não há entre Kardec e Roustaing discrepâncias, que
os incompatibilizem virtuosamente no conceito dos estudiosos.
Ao contrário, eles se completam.
Completam-se vejamos bem, na parte revelada de suas
obras, que não em suas opiniões pessoais.
E assim, para sintetizar a resposta, eu proporia modificar
a pergunta deste modo:
- Haverá entre as obras de Kardec e a revelação de
Roustaing antagonismos capazes de invalidar o Espiritismo no que ele apresenta
de essencial à humanidade planetária?
Penso que não. O que há, considerado de um ponto de vista
mais elevado, menos particularista e, de resto, perfeitamente ilativo da
(inserido na) doutrina espírita, é a lei de Providência e Providência, que dá a
cada mundo e a cada geração a soma parcial de verdade, compatível com o seu
progresso moral, intelectual e cientifico.
O confrade, por justificar as suas dúvidas, bate na tecla
da encarnação afirmada como imprescindível no progresso do espírito na obra de
Kardec, e subordinada como acidente expiatório na de Roustaing.
Admitido que não há verdade absoluta senão em Deus (o que
em Kardec também se encontra) poderíamos concluir que o seu ensino completo em
relação à humanidade terrena, pode ser precário em relação à humanidade universal.
Esta conclusão que poderá parecer arbitrária, nada tem de
incongruente se considerarmos que, muitos problemas postos ao tempo de sua
tarefa não foram pelo Mestre definitivamente resolvidos, bastando para exemplo
o da evolução do princípio inteligente dos animais.
“Quanto às relações misteriosas existentes entre o homem
e os animais, é isto, repetimos, um segredo de Deus, como muitas outras coisas,
cujo conhecimento “atual” nada influiria em nosso adiantamento etc. (2)
(2) ‘O Livro dos Espíritos’, Parte 2 – Cap. XI págs. 248
Aqui temos como a Kardec não foi dito tudo, convindo a mais notar que, a ele mesmo lhe foi predita uma breve reencarnação para ampliar a sua obra.
Certo, há em Roustaing afirmativas que nos atordoam... Mas,
pergunto: temos o direito de recusar um ensinamento global como esse da
Revelação Evangélica só porque um que outro ponto nos escapa à inteligência
limitada?
Não será antes preferível, neste caso, decidir em consciência
e relegar a plano secundário as profissões de fé “ex-cathedra?”
Ora, a nós nos parece que, subordinar a finalidade do
espírito, ser inteligente só para a felicidade criado, a um sistema de
progressão singular amesquinhar a Inteligência Universal e quiçá convergir para
um materialismo panteísta, assim definível: - sem matéria, sem mundos, não
haveria espíritos perfeitos, porque não haveria meios de perfectibilidade.
Não vos parece, caro confrade, seja a concepção humaníssima,
presuntiva desse antropomorfismo que levou Haeckel a definir Deus - um
invertebrado gasoso - antropomorfismo já agora incompatível com a ideia do Criador
à luz da Revelação Espírita no seu conjunto?
Depois, há uma consideração que aporta maciça, fatal
nesta ordem de ideias, legitimando-as: é que, estudando Kardec sem “parti pris”
(opinião assumida preconcebidamente), pode a sua obra ser considerada uma tarefa preliminar
destinada ao grande público cético ou profano, e daí o seu cuidado evidente em chocar
certas teorias, sempre que as comentava pessoalmente.
Isto em nada diminui, antes avulta o seu valor moral de
missionário da primeira hora, que precisava não sacrificar o todo pelas partes.
Roustaing, ao contrário, preposto a uma tarefa complementar, viria tocar o
mundo religioso imanente, essencial de todos os tempos, tudo dizendo sem ambiguidade
nem restrições, e ferindo a fundo escolas, dogmas, preconceitos e consciências.
Mas, obtemperam: como puderam coetaneamente vir adstritos
à mesma tarefa, na revelação de uma só verdade dois missionários contraditórios?
Admitida a contradição, que para mim não existe no plano
geral da revelação, fora lícito perguntar aos dissidentes: como conciliar o
fato da coexistência na Terra num mesmo país, de João, o Precursor e de Jesus,
o próprio Espírito da Verdade?
Aliás, são questões estas que em nada nos graduam no
plano de ação lídima e eficiente, que o conhecimento da Doutrina impõe e a
humanidade reclama.
Crentes ou não da corporeidade fluídica d'O Cristo, o que
dele devemos reivindicar não é a natureza do corpo mas a sublimidade do
Espírito, que, superior ao farisaísmo meticuloso e ao saduceismo arrogante do
seu tempo, colocava o amor de Deus e do próximo acima de todas as coisas.
Quanto as outras perguntas, importa dizer: o estudo dos
Evangelhos integrais à luz da Revelação de Roustaing foram adotados na
Federação sem exclusividade do “Evangelho segundo o Espiritismo”, de Kardec, por
ocasião do centenário deste, conforme consta da Memória Histórica então
editada, comemorando o acontecimento.
Isto vale por dizer que a Federação não impõe mas procura
divulgar criteriosamente uma obra útil para o advento integral do Espiritismo,
no que ele tem de mais elevado - a moral cristã.
Essa iniciativa não foi fruto arbitrário, tendencioso,
humano - foi resultante da cooperação dos Bezerra, dos Sayão, dos Geminiano,
dos Bittencourt Sampaio, já como homens, no Grupo Ismael, já como espíritos
desencarnados, em confabulações persistentes com os dirigentes ostensivos daquela
Casa e nas quais colaborou o próprio espírito de Kardec.
Agora, se quisermos à luz do nosso critério humano julgar
da árvore pelo fruto, considerando a tarefa dessa instituição, a sua existência
impávida e coesa de 35, anos através de todas as vicissitudes e mercê das
fraquezas dos homens seus servidores, havemos de convir que a sua orientação
reflete algo de mais poderoso e menos efêmero que as nossas veleidade exegéticas.
Sobrara-nos
autoridade para aconselhar e aos que dúvidas e controvérsias tais suscitam, diríamos:
estudai, estudai sempre, mas lembrando-vos que sois espíritos encarnados, grilhetas de um mundo em que a luz
se coa através das malhas de uma inteligência limitada; em que a Verdade
Absoluta se dilata por etapas gradativas, não isentas de sombras e miragens
fantásticas; estudai, numa palavra, com humildade e com fé, mas, sobretudo amai,
amai a tudo e a todos, porque o amor é a escada única que dá para os plainos
alcantilados do Infinito, nos quais indefinida embora, não deixa de existir a
Verdade Absoluta -- Deus.
Fraternalmente vosso,
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