terça-feira, 2 de março de 2021

Pôncio Pilatos

 


Pôncio Pilatos

por Luciano dos Anjos       Reformador (FEB) Junho 1963

             Durante a chamada Semana Santa alguns filmes de conteúdo bíblico foram, como de tradição, projetados nas telas nacionais. Este ano tivemos uma safra nova e variegada, se bem não faltasse a representação, nos célebres “poeirinhas”, das cópias tragicómicas de “O Mártir do Calvário", horrível produção francesa de meio século atrás. “O Rei dos Reis” por nós já comentado nestas mesmas páginas, infelizmente não foi exibido novamente.

            Apesar dos muitos equívocos e distrações que continha, foi sem dúvida o melhor trabalho até hoje produzido no gênero. Assim, não podendo bisá-lo, como era de nosso desejo, fomos assistir à película “Pôncio Pilatos” (Ponzio Pilato), em apresentação na linha de cinemas do circuito Vital Ramos de Castro.

            Jean Marais faz o difícil papel do Procurador da Judeia, destacando.se ainda as interpretações de John Drew Barrymore, como Judas e Jesus, e mais Jeanne Crain, Basil  Rathbone, Letícia Roman, Massimo Serato, Ricardo Garone, Lívio Lorenzon e Roger Tréville. Dirigiram o espetáculo o americano lrving Rapper e G. P. Calligari. Trata-se duma co-produção ítalo-francesa da Glomer Film-Lux-CCF, dublada para o inglês e distribuída pela Condor Filmes. Técnica e artisticamente o filme é péssimo, horroroso, como veremos no final deste comentário. Por ora, analisemos os ângulos que mais interessam a nós e que dizem respeito, obviamente, ao enredo em si, à luz da verdade histórica e da Doutrina Espirita.

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             A cena de abertura mostra-nos Pilatos diante de César, em Roma, para onde fora mandado por Vitélio, governador da Síria, a fim de explicar seus desmandos na Palestina. Observe-se desde logo a preferência do roteirista pela hipótese da conversão de Pilatos ao Cristianismo, constante num evangelho apócrifo, porém a que melhor fere a sensibilidade do público pagante. Enquanto é asperamente inquirido por César, Pilatos recorda intimamente, todos os célebres acontecimentos em que estivera envolvido e, em torno deles que se desenrola o filme, num longo período de quase três horas de projeção, que vai desde as perguntas-condenação do imperador até a resposta-conversão do procurador.

            A “performance” de Pôncio Pilatos não parece corresponder fielmente à realidade histórica. Ao que se sabe, Pilatos foi administrador duro e pouco probo. Dão noticia disso os historiadores Filon e Flávio Josefo, bem como os próprios evangelistas. Numa carta de Agripa I referida por Filon, narra-se que ele era de índole inflexível, severíssimo, cruel e soberbo; que condenava à morte sem julgamento, deixava-se corromper e praticava intoleráveis iniquidades. Isto, sem conter a leviandade de seu caráter, desnudado na sensualidade delituosa, cuja melhor descrição, sem dúvida, vamos encontrar nas páginas extraordinárias do romance de Emmanuel intitulado “Há dois mil anos”. Aliás, o filme chega a mostrar um rápido flerte do Procurador' com uma plebeia, confirmando assim, embora insuficiente e insatisfatoriamente, essa repugnante facies da sua personalidade maculada pela viciação contumaz. Dizemos insuficiente e insatisfatoriamente, porque no filme essa passagem revela muito mais ingenuidade de sentimentos que propriamente alta traição à sua vida conjugal com Cláudia Prócula. Somente lendo Emmanuel podemos sentir o quanto era asqueroso o celebérrimo Governador Pôncio Pilatos.

            Em relação a Jesus, de fato ele busca subtraí-lo à condenação infamante que lhe preparam, lançando mão, para isso, de quatro expedientes. Primeiro, manda-o à presença de Herodes; depois, autoriza a flagelação, como simples castigo, pensando em libertá-lo logo após: em seguida, permite à multidão escolher entre Jesus e Barrabás, na expectativa de que escolhessem o Mestre; e, finalmente, a tentativa de mover o povo à piedade, apresentando-lhe o Cristo desfigurado e exclamando: “Ecce Homo!”; (Eis o homem!). Durante o julgamento a fita repete rigorosamente o texto evangélico e nisso vai muito a contento. Pilatos, na verdade, empresta pouca ou quase nenhuma importância à acusação dos sacerdotes e dos fariseus, eis que reconhece a falsidade deles. Procura colocar-se à margem do assunto, enviando Jesus a Herodes (Jo. XVIII, 31-38 e Lucas XXIII, 6 e segs.). Entre Pilatos e Herodes havia certa animosidade decorrente dum fato que por sinal o filme registra. Herodes escrevera a Tibério, no ano 27, pedindo-lhe que mandasse retirar do Templo os escudos dourados que Pilatos ali mandara colocar. O Imperador aquiesceu e deu ordem de transferi-los para o templo dedicado a Augusto, em Cesaréia. Isto fez que Pilatos se declarasse inimigo de Herodes. Contudo, a deferência com a qual o romano enviou o Nazareno ao Rei da Galileia deu motivo à mais completa reconciliação entre os dois. Todavia, como é sabido, Herodes devolve o Cristo para o seu tribunal e os chefes judaicos insistem então na condenação. Não obstante afirmar por três vezes a inocência de Jesus, Pilatos não se atreve a pô-lo em liberdade, com receio de desagradar aos judeus. Por isso tenta os quatro expedientes de que falamos acima. Os chefes judaicos, entretanto, crescem em audácia à vista da indecisão do Procurador e chegam ao extremo custo de ameaçá-lo de não zelar a autoridade de César, caso se negue a castigar Jesus com a morte (Jo. XIX,12). Pilatos, obedecendo então a uma superstição, lava as mãos diante do povo, a julgar que assim se purificava do crime de derramar sangue inocente. Em seguida, entrega Jesus aos seus inimigos para que o crucifiquem (Mat, XXVII, 15 e segs. e Luc. XXIII, 15 e segs.). Desta forma agiu para mostrar não ser por sua vontade que se ia praticar o crime. Variam, porém, as opiniões sobre o impulso que moveu Pilatos. Acreditam uns que ele teria imitado o costume dos romanos e dos gregos que imaginavam apagar as manchas de seus crimes lavando as mãos e, às vezes, o corpo todo. Outros, no entanto, com Orígenes, querem que Pilatos tivesse em mente acompanhar o costume dos judeus, segundo se compreende do Deuteronômio, quando refere à expiação do homicídio oculto nos seguintes termos:

            “Todos os anciães desta cidade, mais próximos do morto, lavarão as mãos sobre a novinha desnucada no vali, e dirão: As nossas mãos não derramaram este sangue, e os nossos olhos o não viram derramar-se. Assim, eliminarás a culpa do sangue inocente do meio de ti." (Dt. XXI, 6, 7 e 9.) O filme, nesta cena, mostra na bandeja um matiz sanguinolento que, se por um lado impressiona o espectador, por outro é dum mau gosto indizível. Recurso provinciano, artisticamente intragável e só apreciado pelos que se alheiam à boa arte e aos espetáculos de alto gabarito.

            A penúltima cena do celuloide é exatamente aquela em que Pilatos escreve de próprio punho (teria sido?) a inscrição a ser encimada na cruz do Crucificado. Nesse gesto, Pilatos quer revelar toda a sua indignação e o seu desprezo pelos chefes judaicos, recusando-se a modificar o texto quando lhe é solicitado (Jo. XIX, 22). Mais tarde (esse episódio é omitido no filme) acede facilmente a que José de Arimatéia retire o corpo de Jesus, visto estar determinado na lei romana que os parentes e amigos pudessem dar sepultura aos cadáveres dos condenados. E quando os príncipes dos sacerdotes e os fariseus vão ter outra vez com ele para que mande reforçar a guarda do sepulcro, mostra-se sobremaneira aborrecido e despacha-os imediatamente, dizendo apenas: “Aí tendes uma escolta; ide e guardai o sepulcro como bem vos parecer.” (Mateus, XXVII, 65)

            Uma tradição que se conserva em Jerusalém conta que Pilatos, além da inscrição colocada sobre a cruz, redigira uma sentença, cuja transcrição ainda hoje se divulga com algumas variantes. É muito possível que o fato seja autêntico, porquanto os sacerdotes não levariam o Cristo à crucificação senão devidamente resguardados da sua responsabilidade mediante um documente qualquer. Não andam certos - pelo menos do ponto de vista lógico - aqueles que querem ter sido apenas verbal a sentença de Pilatos. O documento a que nos referimos estaria assim redigido: “Ao décimo sétimo ano do Império de Tibério César, e vigésimo quinto dia do mês da Março, na cidade de Jerusalém, sendo Anás e Caifás Sacerdotes e Sacrificadores do Povo de Deus, Pôncio Pilatos, Governador da Baixa Galileia, assentado a Sede Presidial do Pretório, condena Jesus de Nazaré a morrer numa cruz entre dois ladrões. Visto que as grandes e notáveis testemunhas do Povo dizem: 1º) que Jesus é sedutor; 2º) que é sedicioso; 3º) que é inimigo da Lei; 4º) que se diz falsamente que é Rei de Israel; 5º) que se diz falsamente Filho de Deus; 6º) que entrou no Templo, seguido duma multidão, trazendo palmas na mão. Ordena ao Primeiro Centurião Quinto Cornélio que o conduza ao lugar do suplício. Proíbem-se todas as pessoas, pobres ou ricas, que impeçam a morte de Jesus. As testemunhas que assinaram esta sentença contra Jesus são: 1º) Danile Robani, fariseu; 2º) Tomás Zorobatel; 3º) Rafael Robani; 4º) Capet, homem público. Jesus sairá da cidade de Jerusalém pela Porta “Struenes”.

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             O filme ainda mostra duas passagens importantes, quais sejam, a introdução em Jerusalém das águias de César e a construção do Aqueduto com dinheiro do Templo. Flávio Josefo narra que Pôncio Pilatos fez o que nenhum procurador, antes dele, se atrevera: introduziu em Jerusalém bandeiras e escudos militares com a imagem de César a fim de abolir as leis judaicas, ameaçando de morte os judeus discordantes. Por outro lado, gastou na construção do Aqueduto, dinheiro destinado ao Templo e, como o povo protestasse, mandou vestir soldados à maneira judaica e distribuí-los entre a multidão - detalhe que o filme omite – levando consigo, escondidos, fortes azorragues com os quais maltrataram, fustigaram e mataram muitos judeus.

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             Pôncio Pilatos governou a Judeia mais quatro anos após a crucificação de Jesus, mostrando-se um administrador cada vez mais inepto e mais inapto. Chegou afinal ao extremo de mandar dispersar e matar uma multidão de Samaritanos que subiam ao monte Ganizim. Os habitantes de Samaria queixaram-se a Vitélio, Governador da Síria, o qual determinou a sua imediata deposição, ordenando-lhe ainda que se apresentasse a Roma a  fim de justificar-se perante o Imperador pelo genocídio de que os judeus o acusavam. A narrativa fílmica quer fazer supor que tais fatos haviam decorrido imediatamente após a crucificação do Cristo e motivados precisamente por este crime. Todavia, conforme dissemos, a verdade é que Pilatos ainda governou a Judeia por quatro longos anos e só é deposto pela matança provocada no monte Ganizim. Quando chegou a Roma, já Tibério havia morrido. O historiador Eusébio conta que Pilatos, caído em desgraça, acabou por suicidar-se. Segundo outros autores, teria sido condenado à morte, mais tarde, por Nero. E há ainda o evangelho apócrifo, aqui antes mencionado, que o dá como convertido ao Cristianismo e condenado à morte, ainda ao tempo de Tibério. O filme preferiu a sua conversão. Nós ficamos com Emmanuel, que apenas cita o seu suicídio, embora não firme nem confirme o ato da conversão. O suicídio teria ocorrido em Viena, nas Gálias, pelo ano de 39, quando Pilatos se lançou ao Ródano. Caio ou Calígula o tê-lo-ia exilado para aquelas terras.

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            Há no celuloide ainda duas interpretações que merecem comentadas: a de Barrabás e a dum tal Aaron ec Mezir, agiota que especulava com dinheiro dos romanos. Quanto a este, não sabemos onde os produtores da fita o foram buscar. Não nos consta ter sequer existido tal personagem. Muito menos com a importância que lhe querem emprestar, isto é, encarnando, em última análise, o verdadeiro responsável pela morte de Jesus-Cristo, tendo em vista o prejuízo que este lhe vinha causando aos negócios escusos, especialmente depois da expulsão dos vendilhões do Templo, local onde seus sequazes mercadejavam com melhores lucros, à sombra da fé. Positivamente foi a primeira vez que ouvimos falar nessa versão “a Ia manière” de “Wall Street”...

            Quanto a expulsão dos vendilhões, foi feliz, até certo ponto, a sua encenação. Jesus aparece apenas com a chibata na mão, sem usa-la porém. De nossa parte, preferimos aceitar com Bittencourt Sampaio (“Jesus Perante a Cristandade”. págs. 73/74, 4ª edição da FEB, 1932) que o episódio não existiu, explicando-se os acontecimentos na seguinte linguagem: “Colocai nas mãos do Divino Mestre um látego de luz; imaginai-o, mostrando-se em toda a sua grandeza, diante dos profanadores do templo; figurai a turba dos mercadores, caindo por terra, atônita e confusa, perante a grande luz que se irradiava do Divino Nazareno, e assim tereis o azorrague de que se serviu Jesus.!” Contudo, poderia ter ocorrido também que Jesus houvesse casualmente segurado uma corda (quantas não haveria no local!), parecendo aos demais, esse seu gesto inocente e desintencional, que buscara um fim premeditado. Simples detalhe do acaso mal interpretado pelos evangelistas e por todos os presentes ali então. A verdade é que as Escrituras não falam no uso do chicote. Apenas registram: “Tendo feito um azorrague de cordas, expulsou a todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas, e disse aos que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas: não façais da casa de meu Pai casa de negócio.” (Jo. II, 15 e 16.) Anote-se ainda que, dos quatro evangelistas, apenas João fala desse azorrague. O filme, graças a Deus, também não mostra o Mestre fazendo uso dele, mas apenas empunhando-o. Ainda bem.

            Quanto a Barrabás, preferimos aceitar o que nos dizem dele, fortuitamente, Mateus, Marcos, Lucas e João, apresentando-o apenas como um preso famoso, participante dum motim e assassino dum homem. Falam também de sedição e não temos porque rejeitá-la, ainda que ocorrida em termos reduzidos e em proporções devidas. As hipóteses em torno do nome de Barrabás são várias. Há, por exemplo, os que admitem não ter ele sequer existido ao tempo de Jesus e que sua origem tem lugar apenas numa adaptação evangélica do Carabás dos soldados romanos sediados em Alexandria. Renan rejeitou inteiramente essa tese, pela considerar infundada. Outros, mais radicais, acham que Barrabás seria o próprio Jesus (!?). Por outro lado, seu tipo tem ganho diversos característicos segundo as obras mais conhecidas de Par Lagerkvist, de Lucien Descaves, de Emery Bekessy e de Sholem Asch. Orígenes diz que ele tinha o mesmo prenome do Mestre, isto é, Jesus Barrabás. "Salteador vulgar” é o termo empregado pelos evangelistas; possivelmente um dos muitos que participavam das constantes sedições contra o dominador romano. Daí, porém, à liderança política que o filme lhe reserva, vai uma distância quilométrica...

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             “Ponzio Pilato” não exibe - o que poderia ter feito bem, tratando-se de superprodução - a destruição da Torre de Siloé, acontecimento marcante, intimamente ligado à administração nefasta de Pilatos e referido por Lucas no capítulo XIII do seu Evangelho. Esconderam-se os judeus naquela torre depois de serem escorraçados do Templo, por ordem de Pilatos. Este, indignado com a resistência verificada, desesperou-se ao saber dessa teimosia, mandando derrubar a torre.

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             A figura de Caifás, na fita, ganha uma interpretação jamais imaginada por nenhum hermeneuta.

            De todo e drama ele se sai comodamente, transparecendo sempre ser um sacerdote magnânimo, munificente (generoso), ponderado, muito comedido e até interessado, paternalmente, em resguardar Jesus da morte. Mais ainda; surge melifluamente, como uma espécie de confidente do Mestre! Ora, que ele foi um hábil político, não duvidamos, pois soube manobrar com argúcia e maestria para arrancar de Pilatos a concatenação infamante. Suas boas intenções, narradas no filme, chegam a torná-lo ridículo, senão burlesco e caricato. Somente a preocupação de não desagradar ao Judaísmo de nossa época justifica tamanha distorção histórica.

            Caifás liderou a manobra sub-reptícia contra Jesus, submetendo-o a dois julgamentos; o primeiro, noturno (o filme aqui é autêntico), portanto, ilegal, contrário ao Direito judaico; o segundo, pela manhã do dia seguinte. Perante juízes venais e testemunhas compradas é que Jesus foi ignominiosamente condenado, aliás, conforme estava profetizado em Salmos, cap. XXVI, 9 e 10. Rui Barbosa, na sua “Coletânea Literária”, examinando o sumário de culpa de Jesus Cristo à luz do Direito, comenta que Caifás, interrogando o Nazareno acerca de seus discípulos e de sua doutrina, transgride “as regras jurídicas assim na competência como na maneira de inquirir”. As instituições hebraicas não admitiam tribunais singulares. “O acusado, - prossegue Rui – tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade dos depoimentos criminadores não podia haver condenação. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a ele os seus juízes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice. Sic respondes pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se no ponto de vista legal; se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que me bates?”  

        Um julgamento, portanto, nulo de direito mas tornado válido pela abominável pressão exercida diretamente por Caifás e seus asseclas.

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             Não deslembremos a figura de Judas Iscariotes. Na fita, sua posição histórica até que está razoável, em que pese à sua péssima encenação artística. Trata-se dum obcecado (sem dúvida, um obsidiado também), dum irresponsável, dum espiríto - como sabemos, através das lições de Roustaing - que ambicionou mais do que podia realmente alcançar. Curioso, entretanto, é não terem registrado o suborno a que acedeu pelas trinta moedas de prata. Assim também é demais. Judas não é aquele monstro satânico pintado pela Igreja e repulsivamente malhado todos os anos; porém, não vamos ver na sua personalidade nenhum “santo incompreendido”, incapaz daquela venalidade de que nos falam os evangelistas e os historiadores. Ao que parece, contudo, não foi outra a intenção do produtor cinematográfico, omitindo afinal uma passagem que é a única, talvez, capaz de justificar a importância da encarnação de Judas à época do Cristianismo primitivo. Negar seu suborno é o mesmo que negar a existência de Judas.

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             Quase no final da história fílmica, temos os trovões que se seguiram à rendição do Espírito de Jesus. Um rapidíssimo quadro, de no máximo três segundos e que terá passado despercebido a 99 por cento dos espectadores, mostra um eclipse do Sol, de permeio à revolta celeste. Vemos aqui uma vez mais a influência dos que não querem emprestar ao Cristo missão extra-humana. Assim, buscam explicar os fenômenos àquela época ocorridos, todos eles, como absolutamente normais e decorrentes, no caso da morte do Salvador dum simples eclipse solar. Allan Kardec, em “A Gênese”, pág. 326, 134ª edição da FEB, procura negar essa hipótese nos seguintes termos: “A duração de tal obscuridade teria sido a de um eclipse do Sol, mas os eclipses dessa espécie só se produzem na lua nova, e a morte de Jesus ocorreu na fase de lua cheia, a 14 de Nissan, dia da Páscoa dos judeus.” Kardec aventa rapidamente a possibilidade de terem sido os fenômenos provocados pelas manchas físicas que às vezes encobrem a superfície do Sol, sem entretanto aceita-la integralmente. Para ele, o eventual desprendimento dum fragmento de rochedo provocou agitação entre os discípulos ali postados ante a cruz, os quais teriam visto nesse fato “um prodígio e, ampliando-o, tenham dito que as pedras se fenderam" (“A Gênese”, pág. 321. ed. citada). É bem verdade que os fatos podem ser assim explicados; todavia, através de “Os Quatro Evangelhos” de J.B. Roustaing, inteiramo-nos de que todos aqueles fenômenos foram provocados por Espíritos encarregados das forças da Natureza. Os mesmos que antes fizeram parar a tempestade sobre o mar por ordem do Mestre. Aliás, Allan Kardec em “O Livro dos Espíritos”, pág. 281, 28ª ed. da FEB, refere esses Espíritos, dizendo: “Outros, finalmente, presidem aos fenômenos da Natureza, de que se  fazem os agentes diretos.”

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            Analisemos agora, para arrematar, alguns aspectos puramente técnicos e artísticos da película, conforme prometêramos no início deste artigo. Jean Marais é talvez o único que se salva, embora não seja bastante convincente quanto ao seu arrependimento. Sua figura porém foi bem escolhida e ele se desincumbe satisfatoriamente do difícil papel que lhe foi dado. Os demais vão muito mal. John Drew Barrymore, como Judas, está grotesco e exageradíssimo, principalmente nas cenas em que se põe a ouvir a voz de Jesus acusando-o por antecipação do crime que vai cometer. Seus gestos dramáticos fazem lembrar melhor as encenações de Hamlet a monologar com a caveira na mão. As batalhas foram filmadas todas em primeiro plano, possibilitando aos espectadores verificar que tanto judeus como romanos são interpretados pelos mesmos “extras”. Faltou gente para encher a tela, não obstante tratar-se duma superprodução... O tecnirama e o tecnicolor colaboraram para suavizar as imperfeições generalizadas. Como último parágrafo consignemos o mau gosto dos diretores, permitindo que John Drew Barrymore interpretasse os papéis de Judas e de Jesus ao mesmo tempo. 



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