Os dois
cegos
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Dezembro 1963
Vários transeuntes se achavam em redor do pobre músico,
ouvindo-lhe as melodias que os dedos ágeis faziam nascer das cordas tensas do
instrumento. Feliz, Medeiros parou, sorridente, só para olhar. E, depois de
ouvir por alguns momentos os sons mágicos do violino, ele, voltando-se para um
rapaz que se achava a seu lado, disse-lhe:
- Bem, Isto está muito agradável, mas tenho bastante que
fazer...
Foi nesse instante
que o cego, interrompendo, falou:
- Perdoe-me, amigo. Não se vá agora. Espere que eu acabe
o que estou tocando...
- Não, não posso, tenho pressa - retrucou Medeiros. -
Você está sempre por aqui, não está?
- Sim, respondeu o cego, acrescentando:
- Não é pelo dinheiro, é ...
- Qualquer dia pararei por aqui para lhe falar. Até
logo...
- Sim, senhor. Mas não se demore. É para o seu próprio
bem.
E Medeiros partiu sem deixar sequer uma insignificante
moeda para o infeliz.
Vários dias se passaram, até que, numa tarde fria,
passava o Medeiros pelo mesmo local, quando avistou o cego. Tocava ele, por
admirável coincidência, a mesmíssima melodia que Medeiros ouvira pouco antes de
se retirar, da outra vez.
Parou e se dirigiu
ao violinista, que estava só, arroxeado de frio.
- Como vai você? Sou aquela pessoa a quem você pediu que
voltasse. Como disse que é para o meu próprio bem, aqui estou. Não me assustei.
Tenho saúde, dinheiro, sou feliz nos amores, gozo de prestígio e popularidade
no meu ambiente. Que me falta, então?
- A visão... - respondeu o cego.
- O que, a visão? - respondeu, perguntando, o Medeiros,
com uma gargalhada. - Você se esquece de que o cego é você e não eu? Essa é
boa!
- Se o senhor tivesse alguns minutos a perder comigo,
para que pudéssemos conversar sossegadamente, compreenderia porque digo isso...
- retrucou enigmaticamente o cego.
- Está bem, embora não me interesse muito por assuntos
misteriosos. Se é dinheiro que você quer, posso dar-lhe algum. O meu tempo vale
mais.
- Guarde o seu dinheiro. Não preciso dele. Preciso do seu
tempo para melhor lhe abrir os olhos, porque o senhor é mais cego do que eu...
Medeiros, orgulhoso, quis retirar-se logo, mas, por
curiosidade, resolveu continuar, pois o cego lhe aumentara a curiosidade.
Levou-o ao seu escritório que ficava a poucos metros de distância.
Lá, depois de sentados, a conversa recomeçou.
- Como se chama o senhor?
- Norberto de Medeiros. E você?
- Isaias Machado. Não sou cego de nascença. Sofri um
desastre e fiquei cego, há cerca de quinze anos.
- Que infelicidade! - exclamou Medeiros.
- Nem tanto, Sr. Medeiros. Pensando bem, que felicidade!
Eu era assim como o senhor confesso; feliz e despreocupado, pensando só em mim
e fazendo do resto do mundo um trampolim para a realização das minhas ambições.
Tive dinheiro, tive tudo que um homem normal pode ter na vida, até que
sobreveio a cegueira.
- Mas você me fez traze-lo aqui para me contar a sua história?
Saiba que ela não me interessa de maneira nenhuma - retrucou com aspereza
Medeiros.
- Perdoe-me, Sr. Medeiros. Suporte a minha enfadonha
história, que é muito curta. Apesar disto, procurarei reduzi-la ainda mais.
Ouça-me com paciência. Um amigo, quando viu que eu não conseguia curar-me e já
havia gasto tudo quanto possuía com especialistas famosos, convidou-me para ir
falar com certo conhecido. Fui...
- ... e continuou cego - atalhou sarcasticamente
Medeiros.
- ... e continuei cego apenas dos olhos físicos, porque
adquiri a vista espiritual que me tem sido de imensa utilidade até hoje. Mas isso
demorou. Quando me foi dito lá que eu jamais poderia recobrar a visão, não me
surpreendi, porque antes não me havia Iludido com uma esperança impossível.
Entretanto, passei a frequentar um Centro espírita, até que comecei a notar coisas
que me davam perfeitamente a impressão de não ter, em determinados instantes, cegueira
alguma. Era uma mediunidade latente que brotava, vitoriosa, Eu era médium
vidente...
- Olhe - interrompeu Medeiros -, não sou espírita, não
tenho religião nenhuma, não gosto de macumbeiros e tenho mais o que fazer. Vou
levá-lo ao ponto em que o apanhei e não m aborreça mais com isso, ouviu? -
foram as palavras duras, grosseiras e cruéis que proferiu.
O cego empalidecera. Ouviu tudo isso sem se perturbar.
Humildemente. Em seguida, com a voz serena e persuasiva, ponderou;
- O senhor concordara em me ouvir, Tenha paciência. Não
me demorarei mais do que uns quinze minutos. Quaisquer que sejam as minhas
palavras, porém, não se irrite. Quando eu acabar, então tome a sua decisão. Acatá-la-ei,
seja qual for.
- Então, vá! - tornou Medeiros, mal-humorado.
- Acredite ou não
no que já lhe disse e no que ainda lhe vou dizer, Sr. Medeiros, a verdade é que
o senhor é mais cego do que eu. O senhor não enxerga as coisas espirituais, eu
não vejo as coisas materiais...
- Vivo num mundo material. Interessa—me, portanto,
exclusivamente, o que diz respeito à vida deste mundo. O resto, o que vocês
prometem para depois, não interessa. Sou homem prático, objetivo, ouviu?
- Sim, senhor. Quando o senhor parou, naquele dia, para
me ouvir tocar, percebi a seu lado uma entidade estranha, com vibrações
escuras, inferiores. Compreendi que o senhor não estava bem acompanhado e me
preocupei. Da segunda vez eram duas entidades a seu lado, como agora as vejo
nitidamente com os olhos espirituais...
- Qual! Você está louco. Não acredito nisso. Continue, continue.
- Esses companheiros não lhe permitem ver o lado certo da
vida. O senhor está ficando obcecado pelo dinheiro e pelos prazeres dos
sentidos. Mude de rumo, para seu bem, do contrário, quando menos o esperar, sua
vida ficará modificada para pior. Abandone a cegueira em que se encontra.
Reflita, exercite a caridade, faça alguma coisa pelos que sofrem, pelos que não
têm nem o que comer... Pense em si mesmo, pensando nos outros.
- Esses são os bons conselhos? Então, você quer que eu
trabalhe e produza, que use a minha inteligência e a minha energia em favor
daqueles que não tem a mesma capacidade que eu e por isto não podem progredir
como eu progrido? Isso é ideia que se apresente? Era o que faltava, eu me matar
pelos outros, quando ninguém se mata por mim... Não gosto de sermões.
- Agora. - atalhou -, se o senhor me permite, vou sair.
Não tenho mais nada a fazer aqui. Tomara que o senhor não seja um dia obrigado
a compreender tarde demais a razão dos que dizem que “o pior cego é o que não
quer ver”. Deus lhe ajude!
Gracejando com ar de superioridade, o Medeiros bateu no
ombro de Isaias, soltando-lhe a piada irreverente:
- Bem dito: você que tem prestígio com Ele, vê se me dá
uma mãozinha... Tenho um negócio difícil a decidir. Se Deus me ajudar, você
ganhará parte da comissão que a ele couber...
O cego permaneceu sério e silencioso. Tateando, procurou
a porta. Medeiros, segurando-lhe o braço, deixou-o na rua e voltou ao escritório.
Pouco depois, o telefone tilintava e ele era chamado a um encontro galante.
Medeiros sofreu várias operações cirúrgicas. Após quatro
meses de internamento, pode sair e voltar ao Rio. Estava outro homem. Uma perna
defeituosa não lhe permitia caminhar direito. Além disso, enorme cicatriz lhe
marcava a face direita. Toda a beleza física, de que tanto se orgulhava,
desaparecera. A própria voz não tinha o tom agradável de antigamente. Ficara um
pouco fanhosa, em consequência do ferimento que lhe atingira o nariz.
Os sofrimentos haviam influído profundamente no seu caráter.
Ele, tão materialista, tão sarcástico e irreverente, agora se punha a pensar na
possibilidade de haver algo imponderável e inteligente por detrás do panorama físico
da vida. Mas, que seria? No isolamento do seu quarto de hotel, Medeiros
refletia, às vezes mal-humorado, contra a má sorte, assim dizia, que o
acometera quando tudo lhe sorria e tudo lhe era favorável. Diversas vezes
chegou a ter acessos de fúria, inconformado com as circunstâncias que lhe
haviam alterado o curso da vida e marcado o seu corpo de deformações e
cicatrizes. Foi durante uma dessas crises que se lembrou do cego Isaías.
- Que fim terá levado aquele homem? Teria feito um “despacho”
para mim?
Trêmulo, tocou a campainha, chamando um serviçal. Quando
este chegou, Medeiros pediu-lhe com empenho:
- Antônio: preciso muito que você vá à rua do Crescente,
aqui perto...
- Sei onde é, Sr. Medeiros - atalhou o empregado.
- ... e procure um cego que costumava fazer “ponto” ali.
Se o encontrar, traga-o aqui, rapaz. Tenho muita necessidade de falar com ele.
Você não perderá o seu tempo. Olhe, tome já, de saída, este dinheiro.
- Ora, Sr. Medeiros, não é preciso. Vou falar com o
gerente e não demoro. Já que o senhor insiste... obrigado!
E embolsou o dinheiro, retirando-se.
- Como vai o senhor? Sente-se melhor? - indagou Isaías.
- Não sei.. Não sei se vou bem ou se vou mal. Você fez
algum “serviço” contra mim? Sinto--me perdido na vida. Tão cedo não poderei
trabalhar e ignoro se, do jeito em que fiquei, me será possível conduzir meus
negócios como anteriormente. Você foi tão franco comigo, da outra vez, que,
agora, me sinto à vontade para perguntar-lhe: que deverei fazer?
- Se o senhor pede minha opinião, dá-me o direito de
externá-la com sinceridade, qualquer que seja o efeito que tiver, não é assim?
- Certamente. Quase estou começando a acreditar nas suas
bruxarias...
- Não faço bruxarias, não sou de macumbas, Sr. Medeiros.
Tenho, graças a Deus, uma noção perfeita da vida terrena. Sei que somos
sujeitos a leis sábias, mas inflexíveis, que nos impelem para o bem, embora, não
raro, não as compreendamos e mudemos de roteiro, na persuasão de que o
verdadeiro caminho é o que querem os nossos interesses imediatos. O senhor
continua cercado de entidades sombrias: elas, porém, já não se mostram tão seguras
quanto da última vez que estivemos juntos. Dependerá do senhor, exclusivamente,
livrar-se delas e encarreirar-se por uma senda melhor. Vejo coisas que não lhe
posso revelar... por enquanto.
- Como pode ver, se é cego? E eu, que tenho vista, porque
não vejo nada?
- Porque, como já lhe disse certa vez, o senhor é mais
cego do que eu. Todavia, como a sua cegueira é espiritual, poderá curar-se. A
minha, cegueira física irremediável, não tem mais jeito. Nem me importo com
isso. Talvez eu, se enxergasse com os olhos materiais, não me sentisse tão
feliz quanto me sinto vendo apenas espiritualmente...
- Está muito bem. Mas, que devo fazer? Quero experimentar.
- Sentir, como suas, as dores alheias. Comover-se com os
padecimentos dos seus semelhantes, interessar-se pelo bem de alguma pessoa,
esquecer-se, involuntariamente, de si. Ser um pouco menos
seu, compreende? Nada é
mais difícil de erradicar do que o egoísmo, Sr. Medeiros. E o senhor ainda é
muito egoísta. No fundo, o senhor não pretende senão desabafar-se por haver
perdido a boa aparência física, por não ter mais aquela voz sonora, que lhe
permitia dar boas gargalhadas, ainda quando fosse inoportuno rir estrepitosamente...
- Ora, você está se excedendo - disse Medeiros, um tanto
agastado.
- Não, senhor:
estou na justa medida. O senhor poderá vir a ser muito mais feliz do que antes de
se acidentar. Terá, entretanto, que impor a si mesmo uma disciplina férrea, a
começar por não mais repisar as aflições que as consequências do desastre lhe
trouxeram. Lembre-se de que há no mundo muita gente que, tendo mais merecimento
do que o senhor, está sofrendo muito mais...
- Que deverei fazer? Sem compromisso, sem compromisso...
Uma experiência apenas.
- Voltarei aqui com aquele amigo meu, de que já lhe falei,
dirigente de um humilde Centro espírita. Virá conversar um pouco, trocar ideias
e, se necessário, dizer-lhe algo que lhe venha a ser útil.
- Está bem. Quanto
mais cedo melhor mas não quero rezas...
- Está certo. Fique em paz.
Depois que Isaías se retirou, Medeiros, só, no quarto
silencioso, sentiu pela primeira vez, vontade de chorar. Esforçou-se para
evitar isso, mas não pode sopitar as lágrimas. Havia anos que não se recordava
dos pais, desencarnados há muito tempo. Nesse instante, porém, como se a visse,
exclamou: “Minha mãe! Ah, se ela estivesse aqui, eu não sofreria como estou
sofrendo!”
E se pôs a rememorar a infância, os tempos de rapaz, as
preocupações que criava para o pai e a mãe desvelada. Aquele coração, seco a frio,
palpitava, enfim. Angustiado, Medeiros suspirou algumas vezes. Assim ficou até
a hora do jantar. Nada quis, a não ser uma xícara de chá. Acomodou-se no leito
e custou a dormir. Entrementes, pensava. Sim, pensava em Isaías, nos pais, nas
relações que fizera nos dias longos de leviandade. Lembrou-se, então, que, de
tantos amigos que possuía, poucos eram os que o visitavam. Assim mesmo essas visitas
pareciam mais uma obrigação para sustentar a possibilidade de alguns futuros
negócios. Somando as relações que possuía, o saldo era tristemente negativo.
Chorou novamente. Por entre soluços, já tarde da noite, ocultou
o rosto no travesseiro, deixando escapar esta frase amarga, porém portadora de
uma esperança:
- Se há um Deus, que ele me perdoe!
Dias após, Isaías reapareceu no hotel, acompanhado no
amigo.
Logo ao abrir a porta do quarto, o cego sentiu que alguma
coisa de bom havia acontecido, porque, na sua visão espiritual, percebia
acharem-se mais afastadas as entidades sombrias que o perseguiam. Estavam como
que tomadas de medo. Medeiros, por sua vez, se sentia melhor. A fisionomia mais
tranquila revelava progresso.
Depois das apresentações habituais, o amigo de Isaías, que
se chamava Ismael, conversou longamente com Medeiros. Deu-lhe brilhante aula
doutrinária, depois do que se retirou, não sem, antes, haver submetido o
comerciante a passes precedidos e seguidos de enternecedoras preces.
O cego via mediunicamente o ambiente modificar-se. As
entidades inferiores tremiam, apavoradas, convencidas de que se formava, em torno
de Medeiros, uma cerca fluídica que os impedia de avançar. Durante uns dois
meses Medeiros foi visitado por Ismael, até que este, sorridente, lhe disse:
- Agora... amigo, tudo vai depender exclusivamente do
senhor. Compareça, se quiser, ao nosso Centro. Lá, os recursos são maiores e
tudo andará mais depressa.
Certa vez, tarde da noite, bateram-lhe à porta, porque
ele morava numa casinha modesta, perto do Centro. Madeiros surpreendeu-se ao
ver o cego Isaías, cujos olhos, antes apagados, agora lhe apareciam cheios de
vida, brilhantes, magnificamente brilhantes.
- Ó caro amigo Isaías, entre!
O cego, entretanto, sem dizer-lhe palavra, apenas
sorrindo, abraçou-o com entusiasmo. Medeiros retribuiu-lhe o abraço,
surpreendido, pois nunca o vira assim, tão afetivo. Mas, no justo momento em que
o abraçava, sentiu os braços vazios. Isaías desaparecera! Já ciente dos
fenômenos espíritas, Medeiros não se assustou, embora denotasse ligeiro espanto
pelo inesperado acontecimento. Horas depois, Ismael chegava para lhe comunicar
a desencarnação do cego.
***
Quem frequentar, ainda hoje, o Centro a que pertencera Isaias, verá um homem idoso, com larga cicatriz na face, coxo duma perna, que dirige os trabalhos. Querido e respeitado por sua bondade, é como um anjo guardião de todos os necessitados da carne e do espírito.
Não lhe conhecem o passado. Sabem, porém, que o seu
presente é radioso e rendem graças a Deus por haver na Terra uma criatura capaz
de seguir tão de perto os passos do Cristo. Chegam a dizer: “Seu Medeiros é um
santo!”
Muita razão assistia ao cego Isaías. Aquele antigo
Medeiros, que, tendo olhos sãos, era espiritualmente cego, se redimira. Pode-se
até dizer que fizera das imperfeições da sua alma a escada para alcançar a
glória de uma redenção merecida.
E é ele que, doutrinando, esclarecendo almas impuras,
adverte sempre com bondade e firmeza:
- Cuidado, irmão: o pior cego é o que não quer ver.
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