quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

As duas rãs


As duas rãs

por José Brígido (Indalício Mendes)     Reformador (FEB) Julho 1947

 

            Nada há pior para o caráter do homem do que o pessimismo. Ele denigre tudo, corrompe as boas ações, ofende a virtude, destrói a tranquilidade, mata a esperança e cultiva a desilusão. O pessimismo é como o mocho: foge à luz e ama as trevas.

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             Na velha cidade de Bagdá, há muitos anos, existiu um filósofo original, que ensinava aos seus discípulos que a vida foi dada ao homem para encurtar sua peregrinação para a imortalidade, desde que cada qual saiba aproveitar as reencarnações de seu Espírito, realizando o bem, encaminhando os transviados, corrigindo os que erram, sempre com tolerância e amor, sem se esquecer da energia que, bem empregada, representa também caridade.

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            Se o homem desvirtua e envilece a vida - ensinava Hassein-Hassam, tal era o nome do filósofo - terá de recomeçar a jornada tantas vezes quantas se façam necessárias ao seu apuramento moral. Falando mais claro: se o Espirito encarnado não dignifica sua passagem pela Terra, terá de aceitar o jugo da carne em novas existências, até que se liberte de vícios e imperfeições. Para Hassem-Hassam, o pessimismo era, não apenas um vício, mas o pior dos vícios, porque enxovalha, amortece e anula todas as boas qualidades do ser humano.

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             Uma tarde, quando atravessava calmamente certa rua de Bagdá, o velho filósofo foi insistentemente chamado pelo jovem Ali-Benhadaz, filho de riquíssimo mercador de tapetes. O rapaz tivera profunda desilusão e perdera toda a alegria de viver. Até o sorriso das crianças o irritava e o suave bailar das flores, que a brisa da tarde embalava, lhe parecia uma afronta ao seu infortúnio. Desgraçado Ali-Benhadaz!

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             Depois de ouvir seus queixumes, o filósofa abraçou-o com paternal carinho e lhe disse: “ - Rapaz, olha bem para mim. Contempla estas barbas brancas que quase me ocultam a face e medita sobre a origem das fundas rugas que me vincam o rosto tostado pelo Sol. Também fui jovem, também amei, também sofri. Hoje, bendigo o nome de Alá (1), porque foi o sofrimento que me ensinou a viver e a compreender e interpretar o sentido superior da vida. Nós somente sofremos, meu filho, porque cometemos erros...

 (1) Alá (Deus)

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Ali Benhadaz abriu mais os olhos avermelhados, demonstrando seu espanto e sua admiração. E o filósofo continuou, sorrindo docemente:

            - “Sofri e sofro ainda... Aprendi, porém, a perdoar, mas sei como é difícil adquirir-se o hábito do perdão sincero. Mesmo assim, sofro. E sofro menos pelo que ainda me fazem do que pelos males que os homens causam a si mesmos, por não quererem ser bons. Abandona o pessimismo. Sufoca teu pranto, domina teu sofrimento e aprende que ninguém sofre em vão, que a dor tem uma causa, que a dor tem um efeito também... Começa perdoando e logo verás como tudo se modificará. Conheces a história das duas rãs? Não? Então vou contá-la para que reflitas bem sobre ela.”

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             Hassein-Hassam cofiou a barba espessa, olhou ternamente para o jovem e iniciou o seguinte apólogo:

            “- Era uma vez duas rãs: uma, otimista; outra, pessimista. Um dia, elas tanto pularam que foram cair dentro dum boião (recipiente de boca larga) de creme de leite. A pessimista logo se desesperou. Pôs-se a chorar e gritar: “ - Ah! Coitadinha de mim! Desta não escaparei! Sinto-me sem ar, sem forças! Estou perdida! Não poderei sair daqui! Vou-me afogar! Ai, que me afogo! Ai!.. “ E se afogou mesmo.

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             A rã otimista, sentindo embora a morte da companheira, não perdeu a esperança e continuou lutando bravamente pela vida. Seu otimismo lhe dava confiança e a confiança lhe fazia redobrar a energia. “ - Só desistirei quando todos os meus esforços forem de todo inúteis” - pensava ela. E continuava: - “Mamãe sempre me diz que “enquanto há vida, há esperança”. Continuarei lutando!”

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             Na verdade, ela não ficou imóvel, nem se deixou arrebatar pela desorientação. Nadava energicamente, de um para outro lado, movendo sem cessar suas patinhas. Já a rã pessimista jazia no fundo do boião, quando a rã otimista percebeu que as coisas estavam melhorando. Que se teria passado?

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             Talvez alguém aludisse à realização dum milagre, mas o fato é que não houve milagre algum, porque não há milagres. De tanto a rãzinha se debater para salvar-se, o creme de leite foi-se condensando e não tardou que ela sentisse achar-se sobre corpo relativamente sólido, pois o creme se transformara em manteiga. Alcançando a boca do boião, a rã estava ofegante, esgotada, porém alegre e feliz.

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             Terminado o apólogo, o filósofo voltou-se para Ali-Benhadaz, os olhos iluminados por um contentamento discreto, mas contagioso:

             “- Ouviu, meu filho? Essa lição da rã otimista prova que sempre é melhor fazer-se alguma coisa do que cruzar os braços e não fazer nada nas horas graves... O desespero não constrói: destrói, as lágrimas não mostram o caminho da salvação, mas representam o itinerário do desespero... É nos momentos críticos da vida que o homem deve mostrar o que vale. Estás também num boião de creme de leite. Reflete e age. Não desesperes. Nem tomes qualquer decisão sem refletir. Faze o máximo para saíres bem da situação em que te encontras e verás, depois, que é bem melhor viver nas claridades do otimismo do que chafurdar-se no pântano escuro e mortal do pessimismo. Eu te ajudarei a sair do boião, Ali-Benhadaz...”

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            E Ali-Benhadaz, com a fisionomia aliviada, mostrava certo desafogo na alma. Suspirou e, num impulso de gratidão, beijou as mãos encarquilhadas do filósofo. Desde aquele dia, nunca mais houve em Bagdá um coração mais cheio de esperanças do que o dele.


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