O
Espiritismo Ilegal –
Parte 1
por Canuto Abreu
Reformador
(FEB) 1ª quinzena Maio 1929
Não somos criminalista; desde os bancos da Academia
sentimos aversão pelo problema dos crimes e das penas. Por isso, quando há três
meses lemos o PROJETO DO CÓDIGO PENAL, que por ordem do Sr. Ministro da Justiça
o “Diário Oficial” de 23 de Dezembro de 1928 publicou, nenhuma anotação escrita
fizemos ao trabalho do eminente Desembargador Virgílio de Sá Pereira. A leitura
visava, exclusivamente a nossa instrução pessoal e não nos passava pela mente a
ideia de escrever a respeito de qualquer de seus artigos. Limitamo-nos, no que
concerne ao Espiritismo, a verificar a grande modificação que não quisemos
indagar se era boa ou má, por não nos competir esse mister. Por essa modificação,
o espiritismo desonesto que é atualmente por força do Código Penal em vigor um crime contra a saúde pública, punível
com multa de 100 a 500 mil reis e prisão de 1 a 5 meses (art. 157) será, se o
Projeto for convertido em lei, uma simples contravenção, admoestável somente
com multa, menos na reincidência, em que além de multa haverá detenção até
vinte dias.
O novo conceito da infração e o
abrandamento da pena, dignos de registro, não nos perturbam a serenidade por
duplo motivo. Primeiro, porque nos habituamos, graças aos ensinamentos
espíritas, a receber todos os fatos de ordem jurídica e judicial como desígnios
de Deus, cuja absoluta e insofismável Justiça dá aos homens o que os homens merecem.
Um legislador penal é sempre um instrumento humano de uma força espírita.
Nenhuma lei restritiva da liberdade natural que é lei divina, pode existir sem
determinação da Providência. Por outro lado não estava em jogo, como nunca esteve em nosso país, o
Espiritismo Puro, único que nos preocupa e defendemos e cuja prática, lei
alguma poderá interditar, salvo pisando a Constituição Política do Brasil.
Cumpria-nos, pois, o dever de
verificar em silêncio e conformidade o novo ponto de vista da importante
reforma, e deixar aos especialistas e doutos o dever de julgá-la e comentá-la.
*
Mas alguns confrades puderam ver no Projeto perigos e
desfavores para o Espiritismo Puro, e o REFORMADOR de 16 de Fevereiro último,
sob a influência desses companheiros zelosos, inseriu um protesto contra o
antiliberalismo da reforma, prometendo voltar oportunamente ao assunto e
debater a ameaça do Projeto. Esta incursão espírita no campo onde lavramos o
pão de cada dia, isto é, no terreno jurídico, teve o poder de provocar de nossa
parte um modesto comentário, que fizemos camarariamente (em sessão privada) ao caro diretor da revista. (Vide REFORMADOR,
1º do corrente, pag. 223). O comentário, porém, foi à nota do REFORMADOR, que
achávamos injustas, não ao Projeto; o mais fogoso prélio não nos faria jamais
espontaneamente sair jamais da obscuridade para estadear (mostrar com alarde) competência que não temos. Todavia, nossa
intromissão discreta e amistosa proporcionou inesperado anseio ao prezado confrade,
que dirige o órgão da Federação, de nos fazer um pedido que, sobre ser honroso,
é uma ordem indiscutível nas circunstâncias em que o recebemos.
Eis porque, sem preparo especial na matéria nem talento
de crítico, e sem a menor vontade de tratar dum assunto que nunca nos foi grato,
aqui nos encontramos a ocupar espaço e a tomar tempo. Esta explicação
preliminar, se não dirime, ao menos atenuará o nosso crime de furtar ao REFORMADOR
e ao assinante coisas preciosas, mesmo porque, neste caso, a pena mais cruel
não é para o rabiscador delinquente, mas para quem tiver a infidelidade de ler.
*
Todos sabem que a prática do Espiritismo, quando
honesta, nada tem a ver com o Código Penal. O Código procura coibir a má fé e a
intenção criminal e, assim, havia de prevenir a hipótese da prática desonesta da ciência espírita. A
proibição tem em mira esse número colossal de exploradores da credulidade
alheia, que se acobertam com os títulos e brasões da doutrina. A lei se
insurge, não contra os bem-intencionados, que fazem o comércio leal com os
Espíritos, mas contra os “médiuns” e ocultistas de todos os calibres e ambos os
sexos, avessos ao trabalho nobilitante da propaganda, que apregoam pelos jornais
e locação de suas faculdades psíquicas geralmente falsas e traficam, em consultórios
esconsos (enviesados), em tudo quanto lhe permita auferir lucro
e regular-se à custa da superstição.
Em que pese a seus adversários e
detratores, a doutrina espírita não é responsável pelos delitos cometidos à
sombra de seu venerando nome, nem fica por causa deles debaixo de sanção penal.
Como filosofia, ou, se quiserem, ciência filosófica, é uma crença, e as
crenças, em nossa terra, são respeitadas e livres desde 1824, não tendo havido
jamais, depois da independência, um só caso de perseguição judicial por motivo
de fé. Honra para a história criminal, que não consigna, em toda a extensão do Brasil
e em mais de um século de vida independente e em sessenta e oito anos de união
com o Catolicismo, qualquer ato atentatório do direito humano de crer ou não
crer, exceção talvez de pequenas arbitrariedades caipiras, nos sertões, onde a
Constituição era e é ainda o trabuco, ao serviço da intolerância ignorante.
Mas uso não é abuso. Sentir não é
iludir.
Reprimindo prática abusiva e ilusiva
(ilusória) do Espiritismo, o Código não quebrou
a tradição liberal da nossa pátria. A liberdade de crença é um direito
adquirido no limiar de nossa nacionalidade, mas, como todas as liberdades teve
e deve ter limites na sua manifestação.
*
No Império, “perseguir
por motivo de religião ao que respeitar a do Estado e não ofender a moral pública” (1) era um delito reprovado pela própria
Igreja Católica, que pleiteara e obtivera tão somente a exclusividade de culto externo (2) e
a integridade dos dois princípios fundamentais da religião: A existência de Deus e a imortalidade da
alma
(3), liberando de acordo com o Estado
tudo o mais. Estas restrições à liberdade de crença, que só se aboliram em 1890 (4), não afetaram, nem afetariam hoje se
perdurassem, o desenvolvimento da crença espírita. A doutrina dos Espíritos,
sendo embora revelação nova, não tem culto externo, nem pretende destruir o da
revelação antiga, sim esclarece-lo e mesmo justifica-lo. Tais peias (entraves) foram, ao contrário, excelente
serviço prestado pela Lei ao verdadeiro conceito do Espiritismo, pois sem ela e
com a tendência mística deste povo simples e crédulo, teria descambado talvez
para seita religiosa com culto externos, sacramentos de batismo, matrimônio etc.,
tal carne o Mormonismo de José Smith, na América do Norte, ou melhor no Lago
Salgado (Salt Lake).
A liberdade de cultos católicos nunca foi cerceada
quando internos, domésticos, em casas
licenciadas (5) e quem “zombasse ou abusasse de
qualquer culto “ era punido com prisão até seis meses (6).
E a tríplice manifestação da consciência
- fé, esperança e caridade - era perfeitamente lícita quando não prejudicava
pelo abuso
(7), nem encerrava calúnia (8) ou injúria (9) e se limitava, nos debates, a fazer
“análises razoáveis dos princípios e
credos religiosos.”
(10)
(1)
Cod. Crim., art. 191.
(2)
Id. art. 276.
(3)
ld. art, 278.
(4)
Dec. do Governo provisório, de 7 de janeiro de 1890.
5)
Cod. Crirn. art. 282, Reg. de 31 Janeiro de 1842, art. 130 e Lei de 6 de junho de
1831, art. 2.
(6)
Cod. Crim. art. 277.
(7) ?
(8)
Id.229.
(9)
Id. art. 236.
(10)
Id. art. 9, parag. 2.
O Estado Imperial e a Igreja Católica, em estreita
ligação, sempre respeitaram todos os credos e todos os cultos no Brasil
independente; exigiam apenas a justa reciprocidade, o público respeito à sua
religião, impedindo que se fizesse publicamente
outro culto que o católico, por ser o abuso acinte o à crença oficial e
popular. Se o Espiritismo fosse uma religião e estivesse arvorada em religião
do Estado não poderia ter outro procedimento.
A República, estabelecendo a Igreja livre no Estado
livre, e franqueando e manifestação de todos os cultos. (11), aboliu o privilégio católico só na aparência,
porque no fundo, o garantiu mais que os outros, ao exigir veneração pública aos
símbolos da religião católica - cruz, hóstia, rosário, alfaias, etc. (12), ao seu ministro (13), às suas procissões, ritos externos
(14) e sobretudo a proibir, por vilipêndio (indignidade) ao catolicismo, qualquer imitação externa de suas cerimônias
(15).
Em suma, o direito de exercer pública
e livremente o seu culto
(16) implica deveres (17) e tem limite (18).
(11)
Dec. de 9 de Janeiro de 1890 e Constituição art. 72 Parágrafo 3.
(12)
Cód. Penal art. 185
(13)
Id. art. 187
(14)
Id. art. 186
(15)
Id. art. 188
(16)
Const. art. 72 Parágrafo 3
(17)
Id. 72, parte final dos parágrafos 3,5,8 e 12.
(18) ?
*
Combatendo a má fé, o dolo, o ilícito, a culpa criminal,
a preterintencionalidade
(resultado
agravado),
e estabelecendo normas
de boa conduta ao cidadão, tanto o legislador criminal de 1830, como o
legislador penal de 1890, se inspiraram no conceito contemporâneo da mais ampla
liberalidade. Nenhuma queixa o Espiritismo Puro tem a formular contra um ou
outro. A ambos deve inestimáveis favores. O primeiro preparou-lhe o solo onde,
semeado desde 1855
(19) pode germinar livremente; o segundo,
criando-lhe restrições amparou-lhe o crescimento na idade em que mais corria
perigo de ser torcido, inclinado e enxertado pelos aproveita dores da
credulidade, pois o Estado acabava de divorciar-se da Igreja. Os dois liberalíssimos,
embora diferentes de origem, foram providenciais. E, como diferem do liberalismo
atual, que serve ao Projeto, bom será analisa-los.
Há cem anos, os espíritos fortes seguiam o critério jurídico
de Mello Freire (20), Montesquieu (21), Rousseau (22) e Beccaria (23) e temiam a crítica irreverente e impiedosa
da escola francesa chamada filosófica
por excelente demolidora na crítica, da qual era pontífice máximo e genial
Voltaire e chefes notáveis d'Alembert, d'Holbach, Diderot, Boulanger e ilustres
companheiros. Sob o influxo dessa filosofia, do Código Penal Francês de 1810 e
do Código Penal Bavaro de 1813, os ilustres PEREIRAS (24) do nosso primeiro código
consideraram indignos de figurar nele dispositivos sobre a feitiçaria, nome genérico
das práticas espíritas antes da codificação kardeciana, e preferiram acabar com
o capitulo 3° do Livro 5° das famigeradas Ordenações Manoelinas, que, com
pequenas modificações, vigorava então (25).
(19)
Data de uma dedicatória do Livro dos Espíritos, que se encontra na Biblioteca
Nacional.
(20)
“lnstitutionum Juris Criminalis Lusitani” - 1794 e Cod. do Dir. Crim. de Portugal.”
(21)
“0 Espírito das Leis” -1748.
(22)
“O Contrato Social”.
(23)
“Dei Delitti e delle Pene”-1764.
(24)
É notável a circunstância de serem autores do Código Criminal: Bernardo Pereira de Vasconcellos e José Clemente
Pereira (cujos projetos foram aproveitados) e do Código Penal de 1890 Baptista
Pereira e, finalmente, do Projeto atual Desembargador Sá Pereira.
(25)
A lei de 20 outubro 1823 tornou obrigatórias as leis anteriormente promulgadas
no Brasil e em Portugal, inclusive! o Livro
V
das Ordenações Filipinas, com as modificações que tiveram.
Nisso ia talvez homenagem a Voltaire e seus dignos acólitos,
que frequentavam as sessões espíritas do médium Cagliostro, acreditavam
piamente nos médiuns sonâmbulos de Mesmer, buscavam os médiuns interpretadores
de sonhos, usavam talismãs, faziam a cartomancia e outros processos maravilhosos
de investigação do futuro, temiam a morte e bebiam cheios de fé o elixir de
longa vida, que a gentil Mme. Cagliostro lhes vendia a 10 luíses o frasco e, graças
ao qual seu respeitável marido vivia desde o tempo de Pôncio Pilatos...
*
A corrente liberal de 1890 tinha como grande afluente o
Positivismo.
A filosofia científica de Comte é essencialmente
contraria à filosofia científica de Kardec. Uma tem raízes nos efeitos, outra nas causas.
Ambas afirmam que os mortos governam os vivos mas, enquanto a primeira sustenta
que só podem ser “subjetivados”, a segunda prova que podem ser evocados”. Como
não há argumento contra fato, esta vai pouco a pouco enterrando aquela.
O liberalismo positivista atuou na confecção do art.
157 do Código Penal e, por isso, como todo o fruto do Positivismo - que defende
o absurdo de viver as claras sem Deus - esse
artigo é um tanto obscuro. Foi preciso que os doutores o esclarecessem e o usos
fori;
(o uso
do foro)
lhe desse o sentido.
Escrevendo para uma revista leiga em
Direito, pensamos não ser ocioso
transcreve-lo,
explica-lo e, afinal, compara-lo como dispositivo do Projeto Sá Pereira.
Diz o Código Penal que é crime contra a saúde pública:
Art. 157 -
Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e
cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de
moléstias curáveis ou incuráveis, para, enfim, fascinar e subjugar a
credulidade alheia.
A inteligência do texto é a
seguinte: É crime contra a saúde pública:
1º - Praticar o espiritismo para: a)
despertar sentimentos de ódio ou amor (carnal); b) inculcar cura de moléstias
curáveis ou incuráveis; c) para, enfim, fascinar (criar fanáticos) e subjugar a
credulidade alheia;
2º - Praticar a magia e seus
sortilégios, para os mesmos fins da alínea 1°;
3° - Usar talismã ou cartomancias
(aqui no sentido de vários processos de indagar do destino e futuro) para os
mesmos fins da alínea 1ª.
Fácil é concluir que o Espiritismo
Puro, praticado na Federação Espírita Brasileira e sociedades adesas, passa tão
longe do Código Penal como a lua da Terra. Seu uso é um direito natural tão
legitimo quanto divino -a liberdade de consciência que jamais foi interditada.
Não cabem, portanto, as confusões criadas
pelas seitas e filosofias adversas, que se julgam erradamente prejudicadas pelo
Espiritismo. O Espiritismo Puro, que praticamos e defendemos e é protegido, não
é o espiritismo africano, que medra nas camadas inferiores do país, informe,
incordenado, sem leis morais nem métodos científicos, primitivo, selvagem,
bruto, não raro sanguinário e quase sempre doentio por isso tudo, perigoso,
merecedor da repressão penal.
O espiritismo africano difere do espiritismo
kardecista como astrologia judicial da Astronomia. Enquanto o primeiro procura
as baixas satisfações da natureza material e sensual sacrificando o espírito no
altar da Carne e outro busca as elevadas satisfações da natureza espiritual e
mental, sacrificando a carne no altar do Espirito.
O Espiritismo Ilegal – Parte 2
por Canuto Abreu
Reformador
(FEB) 2ª quinzena Maio 1929
Os praticantes do espiritismo ilegal - desse
espiritismo que é, na expressão feliz do saudoso Ministro Viveiros de Castro
(26) “causa eficiente de um delito quer
contra a personalidade, quer contra a propriedade” - não podem evocar em
seu favor a declaração constitucional que protege a Federação e os espíritas
bem-intencionados. A Lei Magna, é certo, não impede ninguém de crer no
espiritismo africano. O Código, porém, não age inconstitucionalmente perseguindo
a crença criminosa, pois a liberdade
de consciência é para ser usada, não abusada. Os exploradores tão pouco não
podem apelar para a liberdade
profissional, porque a profissão de feiticeiro e mágico é imoral e ilícita.
Ela apresenta um constante perigo para a saúde, visto como em regra, é pelo
sofrimento moral ou físico, pela descrença na teologia e na medicina oficiais,
pela esperança na intervenção dum poder misterioso, que a vítima é abatida nas
mãos do charlatão. Este, em vez de aliviar a dor, alivia o bolso do desgraçado,
à custa de cuja infelicidade se locupleta.
A lei penal exerce, nesses casos,
justa e necessária vigilância. O “ofício” de curandeiro, a “profissão” de
feiticeiro, bruxo, mágico, cartomante”, 'médium ou coisa que o valha, sendo
modalidades do estelionato, são expressamente interditadas (27). Nem mesmo o médico, diplomado por
escola oficial, pode exerce-los sob pretexto algum, direta ou indiretamente”.(28)
(26)
Decisão do Juiz Viveiros de Castro em 21-5-1896.
(27)
Cód. Penal art. 158.
(28)
ld. art. l57 parágrafo 2.
Esse é o pensamento liberal de 1890.
*
O Projeto Sá Pereira traz modificações sensíveis ao
critério vigente. Não considera os atos enunciados no artigo 157 do Código
Penal, acima estudados como crimes “stricto sensu”, nem como prática do espiritismo “latu sensu”. Dum
só golpe desclassifica o delito e extingue a confusão, que o liberalismo positivista
imprimiu ao dispositivo atual.
Os atos do curandeiro, feiticeiro,
bruxo, mágico, ou médium, quaisquer que sejam, dignos ou indignos, não são atos
criminosos. Embora praticados “como
profissão ou meio de vida, ou para fazer jus a recompensa” e com o fito público
e notório de iludir a credulidade alheia, não são um mal em si mesmos, mas o
são apenas porque a lei nova, no art. 527, os proíbe: “Malum quia prohibitur” (errado por ser
proibido).
Tais atos, sem fito de lucro direto ou indireto, são
para o Projeto formas talvez retrógradas e grosseiras de comércio com os
Espíritos, denunciadores de atraso moral de seus autores, mas, enfim, formas
respeitáveis e tão legítimas da liberdade de consciência quanto as do
Espiritismo Puro. Não é a legitimidade que desaparece, dando lugar à
contravenção quando o fito do ganho é evidente: é a desobediência ao preceito. Então, haverá uma pena correspondente ao alcance
da desobediência. Se esta tem caráter pecuniário, a pena será somente pecuniária:
multa. Se constituir “perigo comum para a propriedade e a vida”, a pena será
mais forte: multa e detenção até três meses (29).
Se produzir a morte, e o réu for primário, a pena será mais rigorosa: prisão
até cinco anos (30). Na reincidência, em qualquer dos
casos, agravar-se-á a pena, pois a sua brandura inicial vem da esperança na
regeneração do contraventor.
(29)
PROJETO DE CÓDIGO CIVIL, art. 533.
(30)
ld. art. 186, homicídio culposo.
Eis o dispositivo do Projeto, cuja clareza, após o que
explanamos, dispensa maiores comentários:
Art. 527 - Aquele que como profissão, meio de vida, ou
para fazer justo à recompensa, explorar a credulidade alheia:
1. com sortilégios, feitiços,
bruxarias e práticas da chamada magia negra; 2. com filtros ou elixires
misteriosos; 3. com a revelação do passado, a predição do futuro, a explicação dos sonhos, a localização de tesouros
ocultos, ou evocando espíritos ou tirando cartas; será punido com multa, e, na
reincidência, com detenção até vinte dias e multa.
Nas mesmas penas estará incurso
aquele que publicamente se oferecer a, mediante paga, direta ou indireta,
prestar-se a tais práticas.
*
É incontestável que, em conceito de crime e de pena,
evoluímos bastante num século de vida independente.
Era bem diverso o critério de há
precisamente cem anos, 1829. Se o espírito liberal da Constituição de 1824,
dada ao povo pelo Imperador e a Igreja, já pairava sobre a mentalidade criminológica,
abolindo as penas cruéis (31) e ordenando a confecção de outras segundo
o princípio da “justiça e equidade” (32),
ainda não vigorava o Código Criminal de 1830. Em vigor estava “um acervo de
leis desconexas, ditadas em tempos remotos, sem conhecimento dos verdadeiros princípios
e influídas pela superstição e por grosseiros prejuízos, igualando as de Dracon
em barbaridade, e exercendo-a na qualificação absurda dos crimes, irrogando (atribuindo)
penas a fatos de que a razão nega a existência e a outro que está fora do
limite do poder social” (33)
(31)
Constituição do Império, art. 179.
(32)
ld. id. XVIII.
(33) Exposição de motivos apresentada pela Comissão da
Câmara dos Deputados no projeto afinal convertido em Código Criminal de 1830.
Eis, a título de curiosidade, a lei dos feiticeiros:
“E
o que for achado que da feitiçaria usou, tratando por ela morte, ou desonra, ou
algum outro dano d'alguma pessoa, ou seu estado, e fazenda, mandamos que moira
porem (?). E lançando algumas varas ou
sortes para buscar ouro ou prata, ou algum outro haver, tal como mandamos, que
por a primeira vez que isto fizer, se for pessoa vil, seja preso e açoitado publicamente
polla Villa (?), onde isto acontecer;
e se for vassalo, ou de major condiçom,
polla (?) primeira vez seja degradado por três anos para Cepta.” (34)
Exceção dos casos de feitiçaria imediatamente
punidos com a morte) os demais sortilégios, na reincidência, davam também lugar
à pena capital. Não havia condescendências em matéria de feitiçaria, embora,
naquele tempo, - a lei fosse uma para o
Pobre e outra para o Rico:
“E dissemos que
Fidalgos de Solar, Cavalheiros esporas douradas, Doutor e Vereador não podem
ser metidos a tormentos, sendo-lhes, a arbítrio do Bom Juiz, dada outra pena, exceto
crimes de lesa majestade, feitiçaria, cárcere privado e falsidades. (35)
O Código Criminal de 1830 alijou de si
como bárbaras, grosseiras, supersticiosas, absurdas, essas ordenações medievais,
não obstante haver fechado os olhos e o coração ao que se referia aos escravos:
O Código Penal da República reconsiderou a amplitude liberal do primeiro,
restabelecendo o crime, como vimos no art. 157. O Projeto, sem rejeitar por
inteiro a velha prevenção dos códigos manoelinos, filipinos e afonsinos, que
pouco diferiam na matéria em estudo, negou, entretanto, a tais atos o caráter
do crime “stricto sensu” ou mal (“malum
quia malum”) (mal porque é mal) e suavizou lhes a pena.
Consideremos, pois, esses dois
pontos da reforma projetada: alteração do
critério criminal, no caso particular do Espiritismo, e alteração do critério penal, nos casos
gerais.
(34)
Ord. Phil. Livro V, Título XLII, ns. 3 e 4.
(35)
Id. Id. Título 87 nº 6.
*
O primeiro - alteração do critério criminal em relação
ao Espiritismo - importa em exprimir o ponto de vista espirita, e o fazemos
dando a palavra a quem dela pode usar com autoridade indiscutível: Allan
Kardec.
O inigualável interprete da
revelação, que sobe diariamente na estima e gratidão da humanidade, descobriu
desde a primeira hora o mais rico filão da ciência espírita e dele extraiu, em
quinze anos de esfalfante ministério, todo o ouro que possui a doutrina. Sua
pena genial, prevendo os acontecimentos que pudessem perturbar um dia a
doutrina espírita, escreveu vários artigos que colecionamos e dentre os quais
destacamos o “Espiritismo e a Magistratura”, cujo seguinte trecho coloca a
questão nos seus verdadeiros limiares:
“Num país como a
França, onde as opiniões e as religiões são livres por lei, seria monstruosidade
perseguir um indivíduo por que crê nos Espíritos e nas suas manifestações.
Portanto, se um espírita fosse entregue á justiça não seria por causa da
crença, como aconteceria outrora, mas porque teria perpetrado uma infração da
lei; a falta é que se perseguiria, não a crença e, se ele fosse culpado seria
acertadamente entregue à seção da lei. Para incriminar a doutrina seria preciso
verificar se ela encerra qualquer princípio ou máxima que autorize ou
justifique a falta; se, ao contrário, nela se encontra uma reprovação dessa falta
e instruções diametralmente opostas, não poderia a doutrina ser responsável
pelos que não a compreendem ou não a praticam.
Pois escrutem a
doutrina espírita com imparcialidade e desafiamos se encontre uma só palavra
sobre a qual possa alguém apoiar-se para cometer qualquer ato repreensível diante
da moral ou em relação ao próximo, ou que possa mesmo ser mal interpretado,
pois tudo nela é claro e inequívoco.
Ninguém
que se conforme com os preceitos da doutrina poderia sofrer processos judiciais
a menos que se lhe perseguisse a própria crença, o que entraria nas
perseguições contra a fé.
Não
temos ainda conhecimento de perseguições dessa natureza, na França, nem mesmo
no estrangeiro, salvo a condenação, seguida do auto-de-fé, em Barcelona (37) e,
ainda nesse caso, foi uma sentença do bispo e não do tribunal civil, e só se
queimaram livros.
A
que título, com efeito, se perseguiria uma pessoa que não prega senão a ordem,
a tranquilidade, o respeito às leis; que pratica a caridade não só para com confrades,
como acontece nas seitas exclusivistas, mas para com todos; cujo fim principal é
a reforma e progresso moral do próprio espírito, e que não tem para com os
inimigos nenhum sentimento de ódio e de vingança?
Homens
que professam tais princípios não podem ser perturbadores da sociedade; não
serão eles por certo que lhe trarão incômodos e esta certeza foi o que levou um
comissário de polícia a dizer que, se todos os seus jurisdicionados fossem
espíritas, poderia fechar o posto.
A
maior parte dos processos, em tal caso, tem por objeto o exercício ilegal da
medicina ou acusação de charlatanismo, prestidigitação ou exploração por via da
mediunidade. Diremos primeiramente que o Espiritismo pode ser tão responsável
por indivíduos que tomam indebitamente a qualidade de médiuns, quanto a ciência
verdadeira o é pelos escamoteadores, que se dizem físicos. Um charlatão pode,
pois, dizer que opera no meio dos Espíritos, como um prestidigitador diz que
opera por meio da física; é um meio como outro qualquer de iludir o próximo.
Tanto pior para o que se deixar empolgar! Em segundo lugar, o Espiritismo
condena a exploração da mediunidade como contraria aos princípios da doutrina
sob o ponto de vista moral e demonstra, além disso, que ela não deve nem pode ser
um ofício ou profissão. Portanto, o médium que não tira de sua faculdade nenhum
proveito DIRETO ou INDIRETO, OSTENSIVO 0U DISSIMULADO, afasta, por isto mesmo,
a suspeita de exploração ou charlatanismo. Não sendo solicitado por nenhum
interesse material, a exploração seria sem objetivo. O médium que compreende o
que há de grave e de santo num dom dessa natureza, por certo há de crer que o
profana, fazendo uso dele em cousas mundanas, ou empregando-o como objeto de
divertimento ou curiosidade. O bom médium respeitará os Espíritos como quereria
o respeitassem a ele próprio. Quando for Espírito e, assim, não os exporá ao
ridículo. Sabe a mais que a mediunidade não pode ser meio de adivinhação, não
pode fazer alguém descobrir tesouros e heranças, nem facilitar êxito em riscos aleatórios.
Não se fará jamais leitor da boa aventura, nem por dinheiro nem por coisa
nenhuma. Portanto, nunca terá pendências com a justiça.
(37) KARDEC,
"La queue du Moyen Age" Revue Spirite, vol. 4 pag. 321, ano 1861.
“Quanto à mediunidade
curadora, de fato ela existe, mas é subordinada a condições restritivas que
excluem a possibilidade de ter consultório aberto, o que é charlatanismo. A
mediunidade curadora é obra de devotamente e sacrifício, não de especulação.
Exercida com desinteresse, prudência e discernimento, dentro dos limites
traçados pela doutrina, não pode cair sob o guante da lei.
Em
resumo, o médium, segundo as vistas da Providência e do Espiritismo, seja operário
ou príncipe (porque os há nos palácios e nas choupanas) recebeu um mandato, que
deve desempenhar religiosamente, com dignidade, vendo na sua faculdade um meio
de glorificar a Deus e servir o próximo e não um instrumento ao serviço de seus
interesses ou de sua vaidade. Far-se-á estimar pela simplicidade, modéstia e
abnegação, enfim, pelas qualidades que não existem nos que procuram fazer da
mediunidade um estribo para montar sobre os bens terrenos.
A
justiça, perseguindo rigorosamente os médiuns exploradores, quer os que fazem mau
uso duma faculdade real, quer os que simulam uma faculdade que não possuem, não
fere a doutrina, mas o abuso.
O
Espiritismo verdadeiro e sério, que não vive de abusos, só tem a lucrar com
isso.
O
Espiritismo não poderia tomar sob a sua proteção os que desejam somente
transviar a opinião pública à custa da doutrina. Amparando-os, assumiria a
responsabilidade de atos que, se forem praticados por médiuns, nunca o seriam
por verdadeiros espiritistas.” (38)
(38) Id.,Id., vol.9 pág. 76,
março de 1866
O segundo ponto - alteração do critério penal - foge
inteiramente à alçada do Espiritismo Puro. A doutrina prega o amor, a caridade
e a misericórdia, e proíbe o julgamento ou a condenação. Não discute a
necessidade da pena, aceita-a como fato consumado.
Nem Allan Kardec, nem qualquer outro luminar do Espiritismo,
defenderam este ou reprovaram aquele critério penal. Mestres e discípulos
reconhecemos malvadez e improficuidade em certos sistemas penitenciários mas
deixamos a iniciativa da reforma aos que foram indicados para ela. Os que
estiverem investidos dessa terrível missão que a desempenhem honestamente,
legislando com inteiro conhecimento de causa, pautando suas ideias pelos
ditames da consciência, que será
inspirada, e pelo estudo da doutrina espírita, se quiserem um farol... A
nós outros cumpre temer e obedecer à lei, tendo sempre em vista que nossa lei é
a melhor para nós, seja embora a pior para os outros povos.
O
Espiritismo Ilegal –
Conclusão
por Canuto Abreu
Reformador
(FEB) Junho 1929
O fundador do Espiritismo, nas memoráveis sessões da
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, onde colheu o material de sua vastíssima
obra (exceto a do ‘Livro dos Espíritos’), teve ensejo de evocar criminosos
celebres ou vulgares e ouvir-lhes a impressão das penas capitais, ou não, que
sofreram na Terra. Comentou essas declarações interessantes na REVUE SPIRITE, e
não tirou nenhuma teoria penal. Por outro lado sentiu vezes sem conta a comoção
caritativa de saber que sentenciados temíveis, mergulhados nos calabouços
europeus e aí tratados como feras indomáveis, se regeneraram pela simples leitura
de seus livros. Comentou a influência da doutrina na modificação do caráter, e
não concluiu por nenhum novo regime penitenciário. Seus guias espirituais, em
muitas ocasiões, lhe explicaram as causas dos grandes crimes entre nós. Ao
nosso planeta, penitenciária e escola, aportam a todos os instantes,
procedentes de astros inferiores, inumeráveis espíritos, ainda sem
desenvolvimento moral ou com o gérmen moral em estado latente. São falanges e
legiões à cata dum pouco de progresso, que rondam a Terra e peregrinam por
entre nós dando-nos os celerados e inconscientes de todos os graus, inferiores
ao nível dos cristãos verdadeiros, repelidos por instinto de conservação ou
antipatia, mas que devemos amar e educar. São os hóspedes dos nossos cárceres, correições
e galés. Desprovidos ainda de caridade, fé e esperança, nascem em regra nas
selvas e regiões bárbaras, não postas ainda sob a bandeira de Jesus, e onde os
castigos corporais são necessariamente cruéis; mas de quando em quando, para que
se cumpram os desígnios de Deus, também nascem no meio civilizado. Os comentários
de Kardec a esta revelação, profundamente elucidativas de nossa conduta social,
não o levaram a qualquer programa de pena.
Parece, portanto, que devemos imitá-lo.
*
À margem do tema é licito, entretanto, apontar alguns
fatos e tirar certas conclusões. O ex-chefe de polícia da Rússia soviética, há
alguns anos falecido, que contava no seu passivo um milhão e meio de homicídios
e presenciara grande maioria dessas execuções, e que para demonstrar a sua
perfeita insensibilidade para o exercício do cargo cruel, matou friamente, sem
nenhum motivo, sua própria progenitora, não parece um exemplo de espírito que
vem ao nosso planeta pela primeira vez? De certo ele vivera num mundo onde a
lei de destruição era menos fiscalizada do que entre nós e, chegando ao nosso
com a sensibilidade completamente embotada foi aproveitado por Deus como
instrumento da sua Justiça. Dizem que nos últimos instantes de sua vida estava
tão cru e calmo como nos primeiros. Seus funerais foram custeados pelo Estado.
Seus crimes, que arrepiam, não foram punidos na Terra. Mas todo trabalhador é
digno de seu salário. O monstro prestou à Justiça Absoluta um serviço notável e
Deus, não deixará de pagar-lhe com magnanimidade. Se já lhe não deu, não tardará a dar-lhe uma
oportunidade especial para adquirir, ou em repetidas e terríveis existências,
ou numa só, o grão de sensibilidade e consciência necessárias para ingressar no
rebanho de Jesus que é de cordeiros, não de lobos. E ele poderá atingir esse
objetivo primeiro que muitos “águas mornas”, que se entregam vegetativamente
aos prazeres do mundo pensando que já fazem parte do rebanho porque estão batizados,
mas que apenas têm a pele da ovelha. Ele mereceu,
pelo muito mal aparente que fez, o bem que Deus lhe está dando, bem que as
religiões chamam castigo, expiação dolorosa mas que é verdadeira misericórdia.
Podemos nós, espíritas, julgar e
condenar esse flagelo de Deus? O mais rigoroso código penal do mundo teria
poder para sequer abalar-lhe o horrível temperamento? No entanto sabemos que esse
chacal, por misericórdia divina, se transformará pouco a pouco em cordeiro e
fará um dia comunhão no Reino de Cristo.
*
Outro fato se oferece ao nosso tema: Enquanto a tendência
do Direito Penal é para suprimir as penas aflitivas, capitais, cruéis,
moralmente injustas, a propensão geral da Autoridade é para empregar meios
severos, violentos, bárbaros de repressão, contrários à conquista do Direito e
da Moral. Como explicar esse contraste? Já estaremos em começo do julgamento? A foice que decepa o joio já
se encontra na seara? Talvez. Só então se compreenderia a arbitrariedade para o
bem da colheita próxima. Isto nos acode à mente a propósito da ltália.
A
“Nuova Scuola”, a “Terza Scuola”, assim como a Escola Clássica, todas de influência
universal, são romanas de origem. Roma, que espalha sobre o mundo há dezenas de
séculos a luz do Direito, da Arte, da Ciência e da Religião; que ensina para
todos os tempos os melhores métodos de Direito Penal; mãe de Beccaria e
Carrara, de Lombroso, Ferri e Garofalo e tantos outros filhos geniais em criminologia;
possuidora do melhor código penal do mundo, só tem, nesta fase preparatória por
que passa, uma lei-potência: a vontade dinâmica do maior estadista dos tempos
nossos, o estupendo missionário cujo nome, respeitável na Itália e no mundo,
faz vibrar no mundo e na Itália milhões de almas, principalmente as generosas
como a de Ferri.
Porventura, influindo no direito
italiano que vai doravante regular a pena, o fascismo não influirá breve no sistema
penal de nossa terra, pátria segunda de todos os povos, visada particularmente
pelos italianos? Não seria prudente aguardar a próxima consolidação do regime
para que o Código Penal Brasileiro não renascesse retrógrado, como aconteceu em
1890 com o que está em vigor?
*
E já que falamos de influência, consideremos também a
que o Espiritismo Puro possa exercer na legislação penal.
Digamos desde logo que todas as
teorias penais suscitadas após o advento da doutrina espírita, partiram de
pessoas que a estudaram. Lornbroso, Ferri, Garofalo, Puglia, Turatí, Marro -
italianos; Brouardel, Lacassagne - franceses; Taladriz, espanhol, Julio de
Matos, português, etc., Se não passaram dum pulo do conceito antigo para o espírita,
muito modificaram aquele, deixando o terreno preparado para este, quando a hora
espírita soar. A natureza não dá saltos.
A filosofia espírita é a que melhor esclarece a
debatida questão do livre-arbítrio e determinismo, importante para o criminalista,
porque diz respeito com a responsabilidade criminal. Antes do Espiritismo, a
responsabilidade criminal pairava nos estremos de duas escolas antagônicas: era
moral ou subjetiva para a livre-arbitrista e social ou objetiva para a
determinista. A teoria espírita deu a chave do angustioso problema,
estabelecendo a escola trial, que não deve ser confundida com a “Terza Scuola”
nem com outra qualquer teoria eclesiástica preparada, em desespero de causa, para
conciliar as duas correntes. O trialismo, que promana do conjunto da revelação
espírita, admite o pré-determinismo, o livre-arbítrio e o determinismo como fases diversas da ação
humana, que se manifestam em planos delimitados: autônomos, embora todos em
estreita sucessão e perfeita relação de causalidade por serem componentes dum
mesmo ciclo. O predeterminismo, que
também se chama “destino” ou “carma”, produz as circunstâncias que são os
desígnios de Deus. As circunstâncias provocam o livre-arbítrio e de acordo com
este criam as ações, ou desígnios do homem. As ações obedecem ao determinismo ambiente, que por sua vez é
responsável por nova intervenção do predeterminismo.
Por palavras menos complicadas e
pedantes (como é difícil a arte de escrever claro!), o Espírito encarnado goza
de livre arbítrio somente no recesso
da consciência ou foro íntimo, no curto
instante da prova. Aí, na hora da prova, ante o desígnio predeterminado de
Deus, pode livremente escolher, de
acordo com a luz da consciência, porque Deus não dá nozes a quem não tem
dentes. Escolher quê? Um dos dois caminhos que lhe são oferecidos: o caminho do
Espírito (a porta estreita do Evangelho) ou o caminho da Matéria (a porta
larga). Um é o do sacrifício da natureza física (revestimento provisório e efêmero)
para mérito do Espírito; outro é o do holocausto do Espírito. (ser definitivo e
eterno) para vitória da Carne. Feita a escolha, o determinismo surge imediatamente para dirigir o resto (as consequências), agindo para isso de
acordo com as leis do caminho preferido, contra as quais nenhuma vontade pode mais agir. O ciclo da prova
fecha-se, a hora passa, o Espírito sofre
as consequências fatais da escolha, em expiação.
Novo ciclo abre-se, nova hora advém, novo exercício do “libertas concilli” e
“libertas judicii” por predeterminação e não por “liberum arbitrium
indifferentiae”, como supunha a escola antiga, nem por “libertas non est
volendi sed que volumos fasciendi”, como querem os deterministas. (39)
(39) Aforisma de Hobbes, muito citado
pelos deterministas: Temos liberdade não
de querer mas de fazer o que queremos.
Mas, onde estamos? Que digressão horrível!
Até parece um arrazoado de Swedenborg...
*
Voltando ao assunto, vejamos Outro
ponto em que o Espiritismo poderá influir: a causa dos crimes e das penas neste
mundo.
Antes da teoria espírita, o criminoso
era considerado um danado pela escola
clássica, uma fera pela escola
positiva, uma fera danada pela escola mista. Para a primeira, uma alma
irremediavelmente perdida; para a Terra e para o Céu, merecedora do castigo
aqui e no Além repelida por Deus e pelos homens e que, por isso, o Diabo não
tinha outro remédio senão ficar com ela. Para a segunda, um indivíduo de
organização psicológica perigosa, erro da natureza que assim o tarou,
precisando de ser punido para domesticar-se, se corrigível, ou expulso do convívio
social dos libertos, se incorrigível. Para a terceira, um fermento humano do
mal, um elemento podre ou degenerado, que se deve extirpar do seio da sociedade
como medida de higiene, internando-o em correições, que são casas semelhantes a
hospitais de isolamento, ou devolvendo-o a Nosso Senhor como indesejável ao
planeta. Enfim, diante do criminoso, qualquer que fosse a escola adotada,
nenhum movimento de piedade era compreensível. A piedade parecia indigna para
os criminosos e toda ira era santa e justa.
Debalde os filósofos perguntavam em
que direito natural o homem se baseava para punir o semelhante. As respostas
tinham todas, no âmago, o mesmo ponto de partida: a vingança. Desde Sêneca, que
dizia: “Nemo prudens punit quia peccatum
est sed ne peccetur” (40) até o Espiritismo, os criminalistas se dividiam
entre os que puniam “quia peccatum est” (porque é pecado), os que puniam “ut ne peccetur” (para que não peque) e os que
puniam “quia peccatum est et ne peccetur”
(porque é pecado e para que não peque).
(40) Sêneca “De Ira” “Ninguém
prudente pune porque é pecado, mas para não pecar.”
A doutrina espírita ensinou, porém,
que a pena corporal não atinge nenhum desses fins. Para a pena ter algum
proveito precisa de ser acompanhada de uma educação moral apropriada ao crime e
ao caráter do delinquente. A pena que somente alcança a natureza, não seguida
de doutrinação do espírito culpado, é contraproducente, quase sempre inútil,
muitas vezes perigosa. Todo o homem imputável perante a lei é susceptível de
ser moralizado e deve sê-lo. A pena corporal exclusiva não moraliza; sendo
modalidade da vingança, excita o rancor animal, desperta a revolta, a vindita,
a desforra. Vingança contra vingança.
Os maus instintos e os sentimentos grosseiros criam uma inteligência criminal,
refinando a astúcia. O criminoso temerá a lei, se a temer, mas continuará
criminoso. O tigre deixará de morder o domador pela frente, mas não deixará de ser
tigre, nem de ter dentes, e vontade de morder.
Portanto, o Estado que quiser
desempenhar espiritamente o seu papel de condutor de homens, não de feras, deve
ter em vista a salvação do criminoso, não a sua condenação.
Em vez de
inutilizar um homem para benefício da coletividade, tornará útil esse homem à
coletividade, ensinando-lhe o dever, que o infeliz não cumpria por ignorância.
Antes de exercer o direito de punir, praticará o dever de corrigir não só,
preventivamente, o meio social, como a título de cura, o individual. É
simplesmente horroroso meter entre grades, inutilizar socialmente um desgraçado
que, por ter fome e ser atrasado, rouba um pão. O Estado que permite haja um
homem com fome e ignorância capazes de determinar o furto dum pão, não tem
moral para punir o culpado. O Estado que persegue Jean Valjean sem lhe
consentir à plena luz o ensejo de regenerar-se, não tem dignidade para dirigir
cristãos. Será condutor de horda, guia de manadas e cáfilas. não será o pastor
dedicado e bom, que corre em busca da ovelha desgarrada para a salvar.
É evidente que, para assim proceder,
o Estado precisará de homens impolutos, instruídos, bondosos, modelares, que
queiram dedicar-se ao nobre serviço da reforma psíquica dos criminosos, e que o
façam por amor e caridade e não por interesse, qualquer que ele seja, direto ou
indireto, porque essa incumbência não poderá jamais ser retribuída senão pela
caridade pública, se o mentor do criminoso houver renunciado aos bens terrenos
para melhor seguir a Jesus.
Esses missionários estão sendo
preparados pelo Espiritismo Puro. Surgirão por encanto na hora que Deus marcou
no quadrante de Sua Providência para a mudança do nosso bárbaro costume penal.
Deus pode, manda e impera. O
legislador, mero instrumento, segue a Vontade de Deus.
Aceitamos o Projeto do Código Penal
Brasileiro como bom. É o que por enquanto merecemos.
Deus o quer assim e assim será!
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