Com que
ouvido ouviremos?
por Boanerges da Rocha (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Setembro
1975
A irritação fomentava intrigas no ambiente da sinagoga de
Corinto. Há um ano e seis meses, Paulo de Tarso,
contando com o auxílio precioso de Tito Justo, disseminava a mensagem do
Cristo, já carregando em sua bagagem a Primeira Epístola aos Tessalonicenses.
Os judeus protestavam, iniciando um processo contra Paulo, repleto de acusações.
Forçado pelas circunstâncias, na posição ingrata de administrador e encarregado
de fazer se cumprissem os ditames legais, Júnio Gálio - o pro cônsul de Acaia
.- determinou a prisão do indiciado.
Não satisfeita, a sinagoga requisitou do irmão de Sêneca
permissão para conduzir o Convertido ao tribunal. A intransigência e o
fanatismo entraram em cena, e Paulo foi preso ainda na véspera, enquanto
pregava o Evangelho no núcleo cristão daquela agradável edificação de Júlio
César, chamada a joia da velha Acaia.
A assembleia entrou em pânico: tochas apagadas... gritos,
ditérios, vozes descontroladas... Em meio ao caos, a voz do ex rabino ganha
altura e ecoa paio recinto uma das mais belas indagações que se conhece na
história do cristianismo nascente:
“- Irmãos, acaso quereis o Cristo sem testemunho? “
Paulo estende os pulsos à violência da dogmática, e, como
a recordar a prisão do Rabi Galileu, enfrenta o obscurantismo:
“- Estou pronto!”
A superioridade provoca o despeito, e estala lhe sobre o
rosto o açoite. Repetia-se, naquele momento, um dos mais transcendentes
episódios dos que haviam marcado a vida de Jesus, numa simetria notável:
“- A quem buscais?”
“- A Jesus Nazareno.”
"- Eu o sou.”
Sob o impacto da vibração do Filho Unigênito, a
soldadesca rola pelo chão.
“- A quem buscais?”
“- A Jesus Nazareno.”
“- Já vos disse que sou eu...”
O Mestre diz a Pedro que embainhe a espada, pois que
aquele que ferir com a espada pela espada será ferido.
Paulo, por sua vez, asserena os ânimos, acalmando o
tumulto incipiente com a pergunta:
“- Irmãos, acaso quereis o Cristo sem testemunho?"
*
Jesus, vindo do território de Dalmanuta, onde não
prometera aos homens outros sinais que não os que lhes dera o profeta Jonas, na
cidade de Nínive, passara por Betânia, e trouxera Lázaro do túmulo para fora.
Pouco depois, era preso e conduzido à cruz.
Paulo, por sua vez: regressava de Atenas em estado de
profundo abatimento, e começava, intimamente, a preparar-se para o martírio de
Jerusalém. O discípulo palmilhava a mesma estrada do seu Mestre!
“- Irmãos, regozijemo-nos em Cristo-Jesus. Estejamos
tranquilos e jubilosos porque o Senhor nos julgou dignos...” é ainda a voz de
Paulo que se eleva.
Enquanto o Apóstolo dos Gentios era lançado a frio
cárcere, reinava a paz na igreja de Corinto. Atado à versão antiga do
pelourinho escravagista, trinta e nove vezes o chicote estalou sobre o corpo
denso daquele que fora arrebatado ao terceiro céu e vira coisas que os homens
não compreenderiam.
No
entanto, imensa já fosse a dor moral - a mais pungente lágrima que veríamos -
não se fez senhora a maceração física. Era o primeiro grande êxtase. Informa
Emmanuel que só pela madrugada Paulo despertou, com o sol a acariciar lhe as
feridas.
Depois do meio-dia, três soldados conduziram-no à
presença do pro cônsul. Inicia-se a oralidade do processo.
Júnio Gálio, diante da arrogância de Sóstenes -
representante da Sinagoga -, exige a presença de um porta-voz do núcleo de
Corinto, para a defesa do acusado. É Tito Justo quem se apresenta, sob os
aplausos frenéticos dos gregos.
Sóstanes deblatera, perante a curiosa atitude do pro cônsul
de Acaia, que, com o indicador, tapa um dos ouvidos. Ex1remamente incomodado, o
judeu requisita esclarecimento a fim de que a atitude não seja tomada como
desconsideração.
A resposta de Júnio Gálio é um primor de filosofia, um
encanto de bom senso, uma pérola de energia e uma grande lição de correção. Uma
daquelas frases que servem a iluminar nações e a marcar uma época:
“- Suponho não estar aqui para dar satisfação de meus
atos pessoais e sim para atender aos imperativos da justiça. Mas, em obediência
ao código da fraternidade humana. declaro que, a meu ver, todo administrador ou
juiz em causa alheia deverá reservar um ouvido para a acusação e o outro para a
defesa.”
*
Ainda não era chegado o momento de Paulo. A cegueira dos
judeus não remontara ao grau da que, há mais de meio século, então, transbordara,
com os acontecimentos da Betânia, o cálice de fel do farisaísmo, levando o
Nazareno ao suplício do Gólgota. Os ouvidos dos fariseus não puderam suportar
as harmonias que vibravam na palavra do Salvador, que partia para
que o Consolador pudesse vir-nos. Paulo, por sua vez, “-Viveria ainda entre a
raça de víboras que perseguira o Redentor.
Liberto, estabelece-se o tumulto. Os gregos agridem os
judeus. Tito Justo, aflito, pede a Júnio Gálio interfira e sane a desordem.
Este, profundo observador, conclui com acento de impassividade:
“- Não nos preocupemos. Os Judeus estão muito habituados
a esses tumultos. Se eu, como juiz, resguardei um ouvido, parece-me que Sóstenes
deveria resguardar o corpo inteiro na qualidade de acusador." (1)
(1) Deixai aos
mortos os cuidados de enterrar seus mortos.”
Profunda lição do Evangelho nos lábios do romano:
Quem julga pelas contingências da Terra pese sempre a
intenção, esquecendo a letra fria: reserve um ouvido para a acusação, o outro
para a defesa... e o coração para a verdade; e use a fala para, magnânimo,
exaltar as virtudes de prudência e sabedoria. Quem acusa, resguarde o corpo inteiro,
porque a acusação é a espada que fere, e quem fere por ela por ela será ferido.
Uma vez disparado o mecanismo, resta aguardar que a pressão retorne ao normal.
Novamente, eleva-se a voz de Paulo:
“- Irmãos, apaziguai-vos por amor ao Cristo!..
E tudo cessou.
*
Quase dois mil anos se passaram e permanecem as mesmas
interrogações a desafiar-nos o Espírito:
- Com que ouvidos ouviremos? Com que mãos trabalharemos?
Ouviremos com os ouvidos de ouvir? Trabalharemos com as mãos que deixam aos
mortos o cuidado de enterrar seus mortos, na caridade exemplificada pelo Rabi? Que
ouvido reservaremos à verdade? O de Sóstenes, escravo da má tendência? .. Ou o
de Júnio Gálio, resguardando-nos o corpo de acusação, reservando um ouvido para
a verdade e o coração para a implantação da Reino de Deus na Terra?..
Não mais perguntemos o que é a verdade, porque o Cristo
mostrou-nos a verdade, e nós já a possuímos. Até quando negar-lhe-emos força,
iludindo-nos na mentira?
A todos os momentos somos chamados a prestar ouvidos de
ouvir, precisamente fechando nossa audição às sugestões da maldade, e
reservando nosso verbo a serenar a turba alucinada ante as dificuldades.
Buscamos o Cristo sem bem sabermos como: Acaso o queremos sem testemunho?..
Novas circuncisões e novas notícias alarmantes virão tisnar-nos
a vida, já tão comprometida com a lavratura das atas da nossa incúria. Das modernas
Antioquia, Tessalônica, Psídia e Listra chegarão más notícias que nos levarão a
viver ainda mais a Boa Nova. Hoje, essas igrejas podem ser o nosso próprio lar.
Santifiquemo-las... doutrinamos nossos ouvidos, a fim de que, com o Cristo no
coração, deitemos pena sobre papel para escrever a nossos bem-amados irmãos de
raça, com quem nos identificamos nas mesmas condições de mendigos da esmola divina,
esta pobre humanidade que sofre por desejar sofrer... e que escrevamos a eles
sob o influxo dos nossos Estevãos queridos:
“- Nós, apóstolos
de Cristo-Jesus, por mandato de Deus, nosso Salvador, e de Cristo-Jesus, nossa
esperança, a vós, verdadeiros filhos nossos na fé. Graças, Misericórdia e Paz
da parte de Deus e de Cristo-Jesus. Senhor nosso.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário