Tolerância
Cristã
A Redação
Reformador (FEB) 1 Agosto 1929
Conta-se que Bezerra de Menezes de uma feita, em plena
sessão doutrinária, ao se manifestar um Espírito mal intencionado - e
turbulento, teve para com ele, diante da assistência estarrecida de surpresa,
esta frase enérgica.
- Espírito insolente e vagabundo! Chamem a polícia...
E o manifestante presto deixou em paz o médium e os
assistentes. Ato contínuo, outro Espírito arrogante se apresenta e com gesto de
capoeiragem fala:
- “Seu” velho atrevido e fanfarrão, mande chamar a polícia
que eu quero vê-la.
Fisionomia aberta,
radiante, o caroável Kardec brasileiro, todo humildade, responde:
- Meu amigo, eu sou médico e como médico trato cada
doente tem o seu remédio: aquele
precisava de pau, tu precisas de preces; portanto, vamos orar.
E com aquela unção e humildade com que orava e desarmava
as feras do espaço - no seu dizer - iniciou com êxito a conversão do insólito
visitante.
*
Esta lição magnífica do mais autorizado dos nossos
expoentes doutrinários, convida-nos a meditar sobre a tolerância cristã em seus
múltiplos aspectos, bem como no verdadeiro critério do seu emprego, porque, se
indubitável é que devemos tê-la em tudo e com todos, não se segue possamos com ela
e por ela calar erros, justificar ignomínias, obedecer em suma, a ditames de
ordem mundana, quais os de não ferir melindres e preconceitos individuais e
sociais. Se no seio de nossas famílias tantas e tantas vezes temos necessidade
de ser enérgicos e intolerantes com a ignorância e as más tendências de nossos
filhos, não vemos nem sabemos como, em relação à Sociedade - nossa família em
sentido mais lato - possamos adotar outra conduta. A intolerância como a tolerância
absolutas não se concebem no estado de evolução do nosso mundo, ao qual afluem
Espíritos os mais díspares e necessitados de experiência e conhecimento, que se
não improvisam nem adquirem de pronto, isoladamente, mas com tempo e de conjunto,
no cadinho da sociedade, ao estuar (ferver)
das provas emergentes de cada dia.
Justamente por ferir e afrontar interesses e preconceitos
correntes, ao seu e ao nosso tempo, é que O Divino Mestre subiu ao Calvário, e
a seguir martirizados foram os Apóstolos, como sacrificados têm sido os pioneiros
de ideias novas, os reformadores intrépidos, na ciência, na política, na religião.
E, se Ele disse ser O Caminho, A Verdade, e A Vida e que não
vinha reformar a lei porém dar-lhe cumprimento, em face da lei não cumprida, e
até postergada, é claro que o caminho não está desbravado e não há perlustrá-lo
(examinar) com verdade, nesta vida, tapizado
(estofado) de flores, sem lutas nem atritos.
Mais ainda: se com a investidura divina do amor, zurzindo
(espancando) a hipocrisia, condenando a
luxúria, profligando (destruindo) a
avareza não nos autorizou a fazê-lo em seu nome, então, logicamente, também poderemos
renunciar ao título de aspirantes do seu apostolado. Poder-se-á, em boa tese,
objetar que devemos antes combater esses vícios em nós mesmos, para não incidir
na pecha do argueiro e da trave em olho alheio? Certamente.
Mas isso não impede que a outrem digamos da necessidade, do
valor e das excelências desse combate, porque de outro modo praticaríamos
negativamente e com egoísmo, guardando para nós o benefício, quando a luz não
se dá para ficar debaixo do alqueire.
A estas razões que poderíamos dizer de ordem peculiar, adstritas
ao proselitismo “intramuros”, outras
se poderiam aditar, de caráter geral para o grande público leigo, que nos acompanha
com justificado interesse, e da doutrina só tem conhecimento de oitiva, pela
propaganda falada ou escrita, que dela fazemos.
A esse público precisamos habilita-lo a discernir para
escolher entre o mau e bom grão. Se não temos, de fato, nem pretendemos ter
autoridade moral para coibir abusos e fraudes praticados em nome e à sombra da doutrina,
direito nos assiste, e mais que direito - dever de os confrontar com a mesma
doutrina, sem com isto, absolutamente, legitimar ofensas e execrações, porque
estas não coincidem, jamais, com a Verdade.
Esta entidade social, que é a Federação Espírita
Brasileira, não granjearia o conceito que felizmente goza, se no curso de sua existência
de quase meio século houvesse, à qualquer tempo, procurado, por falsos princípios
de tolerância, calar ironias e aberrações, ao tempo relegando esclarecimentos
ou reprimendas oportunos. Em nossos anais pode ser citada, como ilustrativa, a
atitude desta revista com relação a Alberto Sarak, célebre - doutor- e ‘conde’
indiano, que aqui se apresentou de público como ‘faquir’, atribuindo-se faculdades
mediúnicas que não possuía, nem sequer conhecia.
Em desmascarar lhe a intrujice com veemência algo
aberrante das nossas normas de serenidade, muita gente nos averbou de impiedoso;
mas os benefícios da campanha memorável ficaram, como aviso e como exemplo salutar
aos incautos e entusiastas fáceis de todos os “iluminismos.”
A intolerância que reivindicamos aqui, única que se
legitima dentro do Evangelho é, porém, a das ideias e princípios, conjugados, prudentemente
às circunstâncias ocasionais, tendo nunca em vista as pessoas.
Em praticá-lo assim, claro é que não justificamos
excessos de linguagem capazes de fazer presumir o animus injuriandi, ainda porque os falseadores da doutrina são para
nós de duas categorias - ignorantes de boa, ou conscientes de má fé.
No primeiro caso, esclarecidos com benevolência, eles
poderão emendar-se; no segundo, de qualquer forma, toda a semente a eles
lançada será semente em pedregulho. A Jesus, por seus Guias, a bênção da iluminação
de suas consciências entenebrecidas.
Por outro lado, a tolerância incondicional ou simplesmente
comodista pode considerar-se contraproducente e até criminosa. Calar a censura
de um erro ou de abuso ao amigo que no-lo confessa, só por não o melindrar, é
um ato de covardia moral e mais de hipocrisia só legitimável à face do homem velho, nunca à face de Deus, que
tanto vale dizer do cristão novo.
Os que aberram (afastam-se) da verdade falseando-a, são réus públicos e confessos de seus erros e
não há, no estigmatizar esses erros, falta de caridade, quando e sempre que o
façamos em caráter corretivo e não punitivo.
O dinamismo das ideias ao tempo que vai transcorrendo não
comporta situações dúbias de meias claridades.
Também nos disse o Divino Modelo que a Verdade deveria ser
dita de cima dos telhados, e aqueles
que porventura se ofendem com a Verdade só revelam não serem dignos da Verdade.
Um provérbio popular – vox populi vox Dei - diz com profunda sabedoria que quem cala consente;
e a este poderíamos acrescentar que quem
consente pactua, senão explícita, ao menos implicitamente.
Os discípulos do Comte adotaram teoricamente o lema - viver às claras, e o Precursor também
pregava as virtudes da penitência pública, de sorte que os adeptos de uma seita
ateística aceitando, em teoria, a franqueza, a lealdade, confirmam, em tese, a ética
do que veio para dar testemunho da Verdade.
Inconcebível, portanto, que nós outros, espíritas-cristãos,
sob o só pretexto de um amor que não possuímos, contrariando a razão dos fatos,
os calássemos por conveniências de ordem secundária, quais as de não atingir a
indeterminadas pessoas, colocando-as, em última análise, acima da Lei.
Assim, pois, aos louros fictícios de uma tolerância
egoisticamente calculada, podemos e devemos preferir a intolerância racional e
até rude, mas sincera e espontaneamente radicada na lei.
Em suma: é preferível ser o que somos e nos mostrarmos quais
somos, do que parecermos o que não somos.
Que o maior mal deste nosso angustioso habitáculo não
está tanto no sermos maus, como no pretendermos parecer bons.
De resto, o critério único de todo o juízo está naquela sentença
- é pelo fruto que se conhece a árvore.
A autoridade e a eficiência da crítica não se aferem pela
forma, mas pelo fundo.
Antes de tudo, o que importa em boa e sã consciência evangélica
é colocar a causa impessoal acima de tudo, para apreciar delitos e não
delinquentes, mesmo porque estes, verdadeiros enfermos, só se curam com aquele amor
d'O Cristo- qui tollit peccata mundi.
De outro modo evidente se torna o paradoxo de uma tolerância
que não tolera a intolerância real ou presumida em seus irmãos.
E, pois que tudo tem sua razão de ser, deixemos ao tempo o
encargo da maturação dos frutos que revelam a árvore, para buscarmos em nós o
conhecimento de nós mesmos.
Nesta perquisição, sim, é que a nossa intolerância não
deve ter limites nem restrições, à face do mundo e à face de Deus.
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