segunda-feira, 6 de abril de 2020

Tolerância Cristã



Tolerância Cristã
A Redação
Reformador (FEB) 1 Agosto 1929

            Conta-se que Bezerra de Menezes de uma feita, em plena sessão doutrinária, ao se manifestar um Espírito mal intencionado - e turbulento, teve para com ele, diante da assistência estarrecida de surpresa, esta frase enérgica.

            - Espírito insolente e vagabundo! Chamem a polícia...

            E o manifestante presto deixou em paz o médium e os assistentes. Ato contínuo, outro Espírito arrogante se apresenta e com gesto de capoeiragem fala:

            - “Seu” velho atrevido e fanfarrão, mande chamar a polícia que eu quero vê-la.
Fisionomia aberta, radiante, o caroável Kardec brasileiro, todo humildade, responde:

            - Meu amigo, eu sou médico e como médico trato cada doente tem o seu remédio: aquele precisava de pau, tu precisas de preces; portanto, vamos orar.

            E com aquela unção e humildade com que orava e desarmava as feras do espaço - no seu dizer - iniciou com êxito a conversão do insólito visitante.

*

            Esta lição magnífica do mais autorizado dos nossos expoentes doutrinários, convida-nos a meditar sobre a tolerância cristã em seus múltiplos aspectos, bem como no verdadeiro critério do seu emprego, porque, se indubitável é que devemos tê-la em tudo e com todos, não se segue possamos com ela e por ela calar erros, justificar ignomínias, obedecer em suma, a ditames de ordem mundana, quais os de não ferir melindres e preconceitos individuais e sociais. Se no seio de nossas famílias tantas e tantas vezes temos necessidade de ser enérgicos e intolerantes com a ignorância e as más tendências de nossos filhos, não vemos nem sabemos como, em relação à Sociedade - nossa família em sentido mais lato - possamos adotar outra conduta. A intolerância como a tolerância absolutas não se concebem no estado de evolução do nosso mundo, ao qual afluem Espíritos os mais díspares e necessitados de experiência e conhecimento, que se não improvisam nem adquirem de pronto, isoladamente, mas com tempo e de conjunto, no cadinho da sociedade, ao estuar (ferver) das provas emergentes de cada dia.

            Justamente por ferir e afrontar interesses e preconceitos correntes, ao seu e ao nosso tempo, é que O Divino Mestre subiu ao Calvário, e a seguir martirizados foram os Apóstolos, como sacrificados têm sido os pioneiros de ideias novas, os reformadores intrépidos, na ciência, na política, na religião.

            E, se Ele disse ser O Caminho, A Verdade, e A Vida e que não vinha reformar a lei porém dar-lhe cumprimento, em face da lei não cumprida, e até postergada, é claro que o caminho não está desbravado e não há perlustrá-lo (examinar) com verdade, nesta vida, tapizado (estofado) de flores, sem lutas nem atritos.

            Mais ainda: se com a investidura divina do amor, zurzindo (espancando) a hipocrisia, condenando a luxúria, profligando (destruindo) a avareza não nos autorizou a fazê-lo em seu nome, então, logicamente, também poderemos renunciar ao título de aspirantes do seu apostolado. Poder-se-á, em boa tese, objetar que devemos antes combater esses vícios em nós mesmos, para não incidir na pecha do argueiro e da trave em olho alheio? Certamente.

            Mas isso não impede que a outrem digamos da necessidade, do valor e das excelências desse combate, porque de outro modo praticaríamos negativamente e com egoísmo, guardando para nós o benefício, quando a luz não se dá para ficar debaixo do alqueire.            

            A estas razões que poderíamos dizer de ordem peculiar, adstritas ao proselitismo “intramuros”, outras se poderiam aditar, de caráter geral para o grande público leigo, que nos acompanha com justificado interesse, e da doutrina só tem conhecimento de oitiva, pela propaganda falada ou escrita, que dela fazemos.

            A esse público precisamos habilita-lo a discernir para escolher entre o mau e bom grão. Se não temos, de fato, nem pretendemos ter autoridade moral para coibir abusos e fraudes praticados em nome e à sombra da doutrina, direito nos assiste, e mais que direito - dever de os confrontar com a mesma doutrina, sem com isto, absolutamente, legitimar ofensas e execrações, porque estas não coincidem, jamais, com a Verdade.

            Esta entidade social, que é a Federação Espírita Brasileira, não granjearia o conceito que felizmente goza, se no curso de sua existência de quase meio século houvesse, à qualquer tempo, procurado, por falsos princípios de tolerância, calar ironias e aberrações, ao tempo relegando esclarecimentos ou reprimendas oportunos. Em nossos anais pode ser citada, como ilustrativa, a atitude desta revista com relação a Alberto Sarak, célebre - doutor- e ‘conde’ indiano, que aqui se apresentou de público como ‘faquir’, atribuindo-se faculdades mediúnicas que não possuía, nem sequer conhecia.

            Em desmascarar lhe a intrujice com veemência algo aberrante das nossas normas de serenidade, muita gente nos averbou de impiedoso; mas os benefícios da campanha memorável ficaram, como aviso e como exemplo salutar aos incautos e entusiastas fáceis de todos os “iluminismos.”

            A intolerância que reivindicamos aqui, única que se legitima dentro do Evangelho é, porém, a das ideias e princípios, conjugados, prudentemente às circunstâncias ocasionais, tendo nunca em vista as pessoas.

            Em praticá-lo assim, claro é que não justificamos excessos de linguagem capazes de fazer presumir o animus injuriandi, ainda porque os falseadores da doutrina são para nós de duas categorias - ignorantes de boa, ou conscientes de má fé.

            No primeiro caso, esclarecidos com benevolência, eles poderão emendar-se; no segundo, de qualquer forma, toda a semente a eles lançada será semente em pedregulho. A Jesus, por seus Guias, a bênção da iluminação de suas consciências entenebrecidas.

            Por outro lado, a tolerância incondicional ou simplesmente comodista pode considerar-se contraproducente e até criminosa. Calar a censura de um erro ou de abuso ao amigo que no-lo confessa, só por não o melindrar, é um ato de covardia moral e mais de hipocrisia só legitimável à face do homem velho, nunca à face de Deus, que tanto vale dizer do cristão novo.

            Os que aberram (afastam-se) da verdade falseando-a, são réus públicos e confessos de seus erros e não há, no estigmatizar esses erros, falta de caridade, quando e sempre que o façamos em caráter corretivo e não punitivo.

            O dinamismo das ideias ao tempo que vai transcorrendo não comporta situações dúbias de meias claridades.

            Também nos disse o Divino Modelo que a Verdade deveria ser dita de cima dos telhados, e aqueles que porventura se ofendem com a Verdade só revelam não serem dignos da Verdade.

            Um provérbio popular – vox populi vox Dei - diz com profunda sabedoria que quem cala consente; e a este poderíamos acrescentar que quem consente pactua, senão explícita, ao menos implicitamente.

            Os discípulos do Comte adotaram teoricamente o lema - viver às claras, e o Precursor também pregava as virtudes da penitência pública, de sorte que os adeptos de uma seita ateística aceitando, em teoria, a franqueza, a lealdade, confirmam, em tese, a ética do que veio para dar testemunho da Verdade.

            Inconcebível, portanto, que nós outros, espíritas-cristãos, sob o só pretexto de um amor que não possuímos, contrariando a razão dos fatos, os calássemos por conveniências de ordem secundária, quais as de não atingir a indeterminadas pessoas, colocando-as, em última análise, acima da Lei.       

            Assim, pois, aos louros fictícios de uma tolerância egoisticamente calculada, podemos e devemos preferir a intolerância racional e até rude, mas sincera e espontaneamente radicada na lei.

            Em suma: é preferível ser o que somos e nos mostrarmos quais somos, do que parecermos o que não somos.

            Que o maior mal deste nosso angustioso habitáculo não está tanto no sermos maus, como no pretendermos parecer bons.

            De resto, o critério único de todo o juízo está naquela sentença - é pelo fruto que se conhece a árvore.

            A autoridade e a eficiência da crítica não se aferem pela forma, mas pelo fundo.

            Antes de tudo, o que importa em boa e sã consciência evangélica é colocar a causa impessoal acima de tudo, para apreciar delitos e não delinquentes, mesmo porque estes, verdadeiros enfermos, só se curam com aquele amor d'O Cristo- qui tollit peccata mundi.

            De outro modo evidente se torna o paradoxo de uma tolerância que não tolera a intolerância real ou presumida em seus irmãos.

            E, pois que tudo tem sua razão de ser, deixemos ao tempo o encargo da maturação dos frutos que revelam a árvore, para buscarmos em nós o conhecimento de nós mesmos.

            Nesta perquisição, sim, é que a nossa intolerância não deve ter limites nem restrições, à face do mundo e à face de Deus.

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