quinta-feira, 23 de abril de 2020

O Divórcio


O Divórcio
Redação 
Reformador (FEB) 1º Julho 1929

            Porém eu vos digo, que qualquer que deixar a sua mulher, salvo por adultério e com outra se casar, adultera: o que com a deixada se casar, também adultera. Mateus XIX v.9  

            Se é verdade que cada escola filosófica tem a sua lógica peculiar, a dentro da qual procura resolver os problemas humanos, concludente se faz que à mesma lógica se adstringe a conceitos e concepções de absoluta relatividade, ao tempo e para o tempo em que se afirma.

            A doutrina dos Espíritos, fundamentalmente decalcada no cristianismo puro e expungido da ganga de convencionalismo político religioso, que os séculos lhe incrustaram, desvirtuando-o, humanizando-o, por assim dizer, não permite colimar (ir de encontro a) certos problemas sociais, à revelia de conspecções (fecundações, gerações) mais alevantadas, mesmo porque, problema algum se forra (se liberta) ao ascendente divino da nossa origem, da nossa existência, dos nossos destinos.

            Ora, sobre a nossa origem, sabemos já não sermos criaturas efêmeras, votadas ao lampejo consciencial de um minuto no cômputo da Eternidade; sobre a nossa existência planetária, sabemos que ela não é única e se entrosa num determinismo universal, tanta quanto se afere, por suas vicissitudes, na incidência de uma lei divina, absoluta; e sobre os nossos destinos, aleatórios no tempo e no espaço, sabemo-los condicionados à conquista ininterrupta de maiores verdades, para maiores realizações e cooperações na ordem divina - semper ascendem. (sempre ascendendo)

            Se, como homens, temos de acompanhar a evolução do planeta, submetendo-nos às leis sociais, transitórias, tanto quanto nos submetemos às leis cosmológicas, podemos e devemos, contudo, desde já, examinar até que ponto nos convém legitima-las, sem fraudar a lei maior da própria consciência, na qual por misericórdia já se esbatem, por ventura, alvissareiras claridades de mais largos prismas, - aqueles que, em síntese, nos oferece a Terceira Revelação.

            Ponderando esta agora tão debatida questão do divórcio, convém ressalvar desde logo a outra que, visceralmente se prende a todas as atividades conscientes do planeta - a do livre arbítrio, para perguntar: existe, de fato, um livre arbítrio? Ninguém o contestará, conscienciosamente, dentro do quadro doutrinário, mas, força é convir, subordinado ao determinismo divino, ou seja um livre arbítrio limitado, graduado e ampliado, consoante as conquistas do conhecimento e da razão, por etapas iterativas e progressivas.

            É por força dessa lei que se modificam as legislações, agindo sobre os costumes e deles recebendo, por sua vez, as influências. Por isso, mandando dar a Cesar o que é de Cesar, o Divino Mestre se colocava perfeitamente ao justo dentro desses limites de relatividade, sem embargo dos quais a criatura pode e deve fazer as suas provas, realizar o seu progresso, resgatar as próprias faltas, sem transgredir as leis divinas, dando a Deus o que é de Deus.

            Seja o matrimônio encarado como instituição natural ou como instituição convencional; pretenda-se estimar a monogamia como regime de seleção espontânea, garantidora da espécie, ou nela se veja apenas o fruto de uma evolução social sempre passível de reformas e alterações, o grande caso é que, para nós, espíritas-cristãos, desde que o divórcio não tenha, como, de resto, não poderia ter, caráter obrigatório, a sua adoção legal não tem maior importância, não afetará de modo algum a conduta que nós devemos traçar, a menos que, contra todas as legítimas ilações doutrinárias, consideremos a família um fortuito agregado de vontades e urdiduras mera, rasteiramente humanas, sem projeções nem consequências na vida espiritual.

            Ora, um tal conceito e um tal critério não suportariam a mais ligeira análise à luz do Evangelho, porque Jesus disse: nem um fio de cabelo cairá sem que o Pai queira. Se, pois, tudo está regulado por lei, se os mínimos atos de nossa vida incidem nessa lei de causalidade, como admitir que a constituição da família humana, fator, premissa e cadeia da corrente de confraternidade espiritual-universal possa constituir-se e resolver-se arbitrária, caprichosa, egoística presunçosamente, sem consequências de maior gravidade, à revelia da mesma lei?

            Pode-se prever que noutros planos essa lei de atração, essa corrente de confraternidade, essa generalização de amor se processe de outra ou de outras maneiras; mas na Terra que habitamos, mundo inferior, cadinho de penas que consubstanciam ascendentes de egoísmo, ela só se auspicia, por enquanto, maiormente, na atração dos sexos.

            O lar constituído, o casal formado torna-se, assim, o núcleo de convergência de Espíritos outros cuja assistência e diretivas na vida de relação não é licito ilaquear ou frustrar. O homem comum, o ateu ou teísta menos esclarecido destas objetivações, pode constituir a sua família na Terra e mantê-la ou dissolve-la na Terra.

            O espírita de verdade sabe, porém, que a família não se constitui na Terra mas no espaço, obediente a leis providenciais com antecedentes e consequentes, e assim é que a família, mesmo mal constituída, não se dissolve jamais, nem na Terra nem no espaço.

            Para o verdadeiro espírita, mesmo admitindo as uniões desgraçadas como fruto de leviandade, de imprevidência ou ignorância, o vínculo não se dissolve, que a ninguém é lícito eximir-se incondicionalmente das próprias culpas.

            Mas, dir-se-á: - e é este o argumento forte dos divorcistas bem Intencionados - será lícito manter jungidos (unidos) dois espíritos que se odeiam, que se enganam, que se conspurcam com prejuízo evidente da prole que haure e curte nesses ambientes polutos, a seiva dos maus exemplos e a dor da própria desgraça?

            Nós não admitimos senão a hipótese para arrazoar, um lar espírita assim tenebrosamente constituído, mesmo porque, o crente sincero tem, desde logo, na própria crença; o remédio heroico para atenuar a prova, sabendo como se conciliam a justiça e a misericórdia divinas.

            Mas, verificada a hipótese, na falência de todos os recursos, falaria ainda o Evangelho na sentença lapidar: o escândalo é necessário, mas ai do mundo por causa dos escândalos. (Mateus XVIII v. 7).

            De resto, sabemo-lo à saciedade que esse escândalo não está nas aparências, está nos corações.

            O Cristo, Senhor e Mestre, autorizou, ou antes, confirmou a lei de Moisés, que autorizava o divórcio nos dois casos únicos: de esterilidade e adultério.

            Mas aos discípulos que lhe obtemperavam que no princípio não era assim, retrucou: isto foi pela dureza dos vossos corações. (Mateus XIX v. 8).

            Grandiosa, magnífica lição assacada à inteligência humana para o labor de vinte séculos!

            Chegaram os tempos da amolgadura (do ajustamento) dos corações. O conhecimento direto das leis do Espírito leis eternas e incoercíveis de amor, caridade e justiça, não nos consente já considerar o matrimônio simples junção de corpos para vida de corpos destinados à podridão do túmulo, sim aproximação de almas destinadas à depuração de estigmas e taras do passado, para a comunhão do Amor Divino, ou seja para integrar-se na fé universal.  

            Não separeis o que Deus juntou. (Mateus XIX v. 6). As criaturas aqui reunidas em provações multifárias, esclarecidas quanto à sorte que as aguarda, cônscias de que o seu livre arbítrio de hoje será o determinismo de amanhã, não irão pedir aos códigos humanos, aos Tribunais da Terra a senha da felicidade com a remoção de suas provas porque a felicidade neste planeta só se conquista nas aras (na vivência) do sofrimento para a extinção de todo o egoísmo.

            É como o “reino do céu”, que está dentro de nós mesmos.

            E assim, pois, para nós, a controvérsia é daquelas que mais se enquadram naquele mandamento - aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos. (Mateus VIII v. 22). 

            Aos homens do mundo, que vivem no mundo e para o mundo, razão lhes sobra para proverem da melhor ou da pior forma as suas angústias e fraquezas: a nós outros, que em sermos do mundo, pretendemos estar com o Cristo que do mundo não era, cumpre-nos antes considerar as coisas do céu.  

            Divórcio a vínculo, desquite ou abandono arbitrário, são recursos equivalentes para fugir às provas, e provas recusadas são provas agravadas, segundo a lei de reparação indefectível, porque escrito também foi que haveríamos de pagar até o último ceitil.

            Por fim, concordemos que muita gente há legalmente casada perante os homens e divorciada perante Deus.

            E daí a conclusão: de uma só lei não se pode prescindir, em espírito e verdade - a do amor a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos.

Do Blog: O divórcio foi instituído oficialmente com a emenda constitucional número 9, de 28 de junho de 1977, regulamentada pela lei 6515 de 26 de dezembro do mesmo ano.

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