sexta-feira, 27 de março de 2020

E assim nasceu a Esperança...



E assim nasceu a Esperança...
por José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Junho 1947

            A vida corria mansamente na verdejante planície de Ben-Nazam. As ovelhas pastavam, tranquilas, e os pastores iam trauteando (cantarolando) alegres melodias, fruindo a doce paz daquele ambiente bucólico. Todos os dias, ao cair da tarde, o pastor Isael tangia os anhos (filhote de ovelha) e o aIfeire (rebanho), rumo ao aprisco, e demandava o lar feliz, onde Lucânia, sua esposa, e Aydala, o enlevo de sua alma, o recebiam alegremente. Nunca o sorriso de Aydala deixava de florir no pitoresco colmado (pequena casa coberta de colmo (palha comprida)) de Isael.

*

            Um dia, porém, quando estava para levar as ovelhas ao redil (curral), o pastor sentiu inexplicável amargura no coração. Olhou para a planície demoradamente, passeou, os olhos pela silhueta esbatida (de tom pálido) do monte Hermon e tornou ao lar querido. Dessa vez Isael não voltara cantarolando. Caminhou silenciosamente, sem compreender porque se operara tão súbita metamorfose no seu espírito folgazão. E, ao beijar a filha, notou que a tristeza pusera lhe na face o palor (palidez) do sofrimento. Sobressaltado, Isael fitou-a e ela não pôde resistir ao olhar indagador do pai, pois duas pérolas, traindo-lhe o segredo, se evadiram de seus lindos olhos, já avermelhados pelo pranto.

*

            No descuidoso encanto de seus dezoito anos, Aydala amara a um jovem, que, a princípio, parecera corresponder à sinceridade de seu afeto, tanto que conquistara também a amizade de Isael e Lucânia, os quais abençoavam a pureza daquele amor inocente. Mas a Desventura, como o lobo que ronda o aprisco, à cata de uma ovelha desprevenida, vive sempre, espreitante e maldosa, rodeando a Felicidade, pronta a dilacerá-la no primeiro ensejo. Foi o que sucedeu. O jovem, que era cheio de solicitude, passou a demonstrar algente (gélida) indiferença, como se houvera sorvido enfeitiçado filtro ou cedido a sortilégios (magias) impuros de espíritos trevosos. Mentindo a si mesmo, foi rareando suas visitas, até fugir dos olhos belos de Aydala, deixando um vazio imenso no coraçãozinho dela. Antes que o Desespero lhe batesse à porta, Lucânia, com a intuição que Deus conferiu ao espírito feminino, decidiu levar a filhinha à presença do velho Matias, cuja experiência era um fanal (‘farol’) de consolação para os que sentiam a alma farpeada (ferida com farpas) pela dor.

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            Ao chegarem, o ancião escutava com paciência um doutor em leis e rico mercador de tapetes de Istambul. Dizia o mercador: - “O que tem de ser, será. Sou fatalista, creio na força inexorável e trágica do destino, à qual ninguém escapa, por que o destino de todos já está traçado antecipadamente, Não adianta gritar, correr, lutar, porque o que tem de ser, será.” Matias esboçou um sorriso benevolente e, voltando-se para Lucânia, perguntou-lhe:

*

            - “Você está de acordo com isso, minha filha?”

            A mãe de Aydala abriu mais os olhos lúcidos e ponderou com humildade:

            - “Eu e minha filha, bom amigo, cremos na existência de uma força oculta e poderosa. Sentimo-la dentro de nós, mas não sabemos defini-la.”

            Matias fez um gesto de quase imperceptível assentimento e murmurou:

            - “Sim.., sim... porque Deus é indefinível... “

            E perguntou ao doutor em leis, homem culto, viajado, transudando (transbordando) sabedoria que opinião formulava a respeito.

            - “Eu não creio em fatalismo e muito menos em forças ocultas. Nada há no homem senão a realidade física. Os fenômenos da chamada vida espiritual são meras formas de atividade da matéria, porque, meu caro Matias, tudo é matéria. O resto é loucura.”

            Largo sorriso de complacência iluminou o rosto do ancião, que, dirigindo-se de preferência a Aydala, começou a falar pausadamente:

            - “O fatalismo entorpece o espírito; é uma ilusão nociva, porque perverte a alma e endurece o coração. A sabedoria e a justiça de Deus permitem que nós mesmos construamos o nosso futuro, reparando, no presente, os erros do passado. O materialismo é um veneno terrível, Corrompe o espírito e dá aos homens falsa noção da vida. Se viemos do nada e para ele voltamos, que somos: finalmente, senão... nada? Mas não é assim. Caso contrário, que adiantaria cultivarmos as virtudes morais, como o amor, a caridade, a tolerância, se tudo se reduziria a nada? Que valeria o esforço, o progresso do homem nas ciências e nas artes, se tudo teria de terminar, irremissivelmente, no volutabro (lamaçal) a que nos condena a concepção materialista? Não, o Espírito é tudo. Ele “é a força oculta que governa e dirige a matéria e lhe dá a vida.” Não depreciemos o valor da matéria mas exalcemos (exaltemos) a função superior do Espírito, porque ele recebeu de Deus o toque da imortalidade. O fatalista é um derrotado, antes mesmo de entrar em luta; o materialista, um cego que caminha à borda do despenhadeiro. Apesar disso, o Espírito imortal que vive neles se iluminará um dia, mostrando-se despido do orgulho e dos preconceitos herdados de processos educativos defeituosos.”

*

            Matias puxou para perto de si a jovem Aydala e segredou-lhe ao pé do ouvido:
- “Menina: carrego nas costas mais de noventa invernos rigorosos. Conheço um pouco os homens e a vida. Sofreste um desengano que te parece irremediável. É natural, porque, na tua idade, as coisas se mostram às vezes com aspectos exagerados, Tens a impressão de que o mundo se abriu diante de teus pés, tragando-te a felicidade. É por isso que tu‘alma vibra de intensa dor. Todavia, Aydala, nada está perdido. Lembra-te de que não há acaso, pois tudo tem sua razão de ser, ainda que não compreendamos os sábios desígnios d' Aquele que tudo vê e tudo sabe. Às vezes, Aydala, o que supomos um grande mal, revela-se, com o correr do tempo, um grande bem: Se Jesus nos aconselhou a amarmos até aos nossos inimigos, porque não amarmos a nós mesmos, perdoando àqueles que ofendem a pureza do nosso afeto? Conforta-me o saber que não faltaste ao teu compromisso moral, porque, como disse Paulo em sua Epístola aos Romanos, “o amor é o cumprimento da lei”. Entretanto, tens o dever de continuar fiel a ti mesma, exercendo o suave direito do perdão. Perdoar a quem nos faz mal, fazendo-lhe todo o bem, é concorrer para a regeneração do Espírito que se desvia do bom caminho. Amor é renúncia, é altruísmo, é sacrifício. Portanto, Aydala, perdoa. Perdoa sempre e sentirás o coração reconfortado e cicatrizada a chaga aberta pela ingratidão. Ninguém sofreu mais do que Jesus, que foi todo amor c bondade. E já na cruz, ouvindo as imprecações (xingamentos) e as torpes injúrias da populaça imbecil, ainda pediu a Deus por seus algozes, porque compreendeu que eles não sabiam o que estavam fazendo. Esquece a afronta e volta o teu Espírito para o bem, sem olvidares no entanto, que “o perdão não exclui a necessidade da vigilância, como o amor não prescinde da verdade. A paz é um patrimônio que cada coração está obrigado a defender para bem trabalhar no serviço divino que lhe foi confiado.” Assim, Aydala, defende a tua paz, minha filha...

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            A meiga donzela soluçava baixinho, temendo perturbar a palavra de Matias, que, depois de olhá-la com paternal ternura, prosseguiu:

            - “Coragem! Quando Deus fez a Terra, há muitos milênios, chegou ao céu o vago ruído, provocado pelo pranto de uma criaturinha como tu, que também havia perdido o seu primeiro amor. Nunca se verificara semelhante ocorrência neste planeta. O Pai determinou que seus arcanjos reunissem um raio de sol, algo do opalescente (do que possui reflexos matizados, tal como a opala) fulgor da Lua, o brilho diamantino das estrelas, muito Amor e muita Caridade. E essa mistura foi espalhada por todos os recantos da Terra, para que os corações humanos a absorvessem. E desse modo, Aydala, nasceu a Esperança.”

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            O velho silenciou alguns instantes, afagando a jovem. Em seguida, acrescentou: - “Vai para casa. Leva a Esperança contigo. Coloca-a no melhor lugar do teu coraçãozinho bem formado e procura recobrar o sorriso que alumia a vida de teus pais. Esquece o passado sem guardar ressentimento e olha confiante, para o ridente futuro que te aguarda. Aproveita a dor, porque estás tendo a primeira grande experiência da vida, e aprende que não se vive sem sofrimento e sem luta. Assim é para o nosso próprio benefício. Glorifica o teu amor com o culto sincero da Caridade, que é a mãe do Perdão. Retém em tua lembrança estas palavras do Apóstolo Paulo: "A Caridade é longânima, é benigna; a Caridade não é invejosa, não se jacta, não se ensoberbece, não se porta inconvenientemente, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal. não se regozija com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. Tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.”

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            Vai, Aydala, na santa paz ele Deus! Não te apartes jamais da Esperança. Abraça-te a ela. Ora e confia; confia e espera..”

*

            E quando, no dia imediato, o céu se apresentou novamente límpido, todo vestido de azul puríssimo, Isael foi visto na planície de Ben-Nazam, trauteando outra vez alegres melodias pastoris...

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