Com
Kardec e com Roustaing
José
Brígido (Indalício
Mendes)
Reformador
(FEB) Agosto 1947
A grita que pequena minoria de
aceitantes do Espiritismo faz contra “Os Quatro Evangelhos”, não poupando
sequer a memória do nobre J. B. Roustaing, nem sempre é fruto de sincera incompreensão.
Pela natureza de certos comentários, percebe-se quão afastados se encontram, muitas
vezes, da ética espiritista, os mais empenhados em contestar a “Revelação da
Revelação”-, Entretanto, “Os Quatro Evangelhos” não impõem restrição alguma a
Doutrina codificada por Allan Kardec, antes a completam de modo perfeitamente
racional e, digamos assim, doutrinariamente lógico. Aliás, tratando “Dos Cismas”
Kardec não se furtou à feliz oportunidade de afirmar que muitas divergências
têm desaparecido, “À MEDIDA QUE A DOUTRINA SE VAI COMPLETANDO PELA OBSERVAÇÃO E
PELO RACIONALISMO" acrescentando que "as últimas divergências se dissiparão
com a completa elucidação de TODAS as partes da doutrina”. E o mesmo Kardec
avança que “haverá sempre os dissidentes por sistema, interessados por esta ou
aquela causa”.
A verdade é que Roustaing continua
cada vez mais firme. Em seu caso especial, é preciso levar em conta a superior
orientação espiritual que tem recebido a Federação Espírita Brasileira, em mais
de seis decênios de trabalho silencioso, profícuo e persistente, preservando a
Doutrina de Kardec de errôneas interpretações e de deturpações numerosas.
Ninguém pode, sem se alhear da verdade, desmerecer o gigantesco esforço que ela
desenvolve na defesa e manutenção dos princípios básicos da Doutrina. Negá-lo
não seria somente cometer grave injustiça, porque significaria, de outro lado,
pôr em dúvida a capacidade espiritual do Guia Ismael, ao qual estão entregues
os destinos da causa espírita no Brasil. Ora, se “Os Quatro Evangelhos” - numa palavra:
Roustaing - antes mesmo de fundada a Federaçao, já eram estudados e aceitos por
aqueles que, em seguida, integraram o corpo diretivo material da Casa de
Ismael, e os que os sucederam, sem que houvesse havido até hoje a menor
manifestação contrária do iluminado Guia e de outros Espíritos de superior
categoria, de Kardec inclusive, é sinal evidente de que todos os que aceitamos
Roustaing, considerando-o valioso colaborador da obra kardeciana, continuamos
fiéis à Doutrina. Demais, não se deve esquecer o que disse Kardec com sua
grande autoridade: “Assimilando todas as
ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou
metafísicas, ela (a Doutrina) nunca será posta à margem, e é esta uma das
principais garantias da sua perpetuidade”.
A Federação Espírita Brasileira,
indissoluvelmente ligada ao kardecismo, jamais faltou a qualquer de seus
deveres doutrinários. Estuda e divulga os ensinos de Kardec, e justamente por compreender
o sentido superior da obra do Mestre é que também estuda Roustaing, sem o impor
a quem quer que seja, certa de que está fiel ao objetivo de progressividade da
Doutrina. Kardec jamais aprovaria a estagnação por falta de estudo sério do
Espiritismo, estagnação que leva ao dogmatismo e, através deste, à intolerância
e à obnubilação do raciocínio. O Codificador predisse estar a segurança da
perpetuidade da Doutrina
na “tolerância, consequência da caridade,
que é a base da moral espírita”. Justamente esse espírito de tolerância no
exame de “Os Quatro Evangelhos” é que tem faltado à maioria dos negadores de
Roustaing. Argumentando com Kardec, para defender Roustaing, diremos que “o programa da Doutrina não é invariável
senão quanto aos princípios reconhecidos novamente por verdades. No estado de atraso
dos nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso, pode amanhã ser
reconhecido como verdade, por efeito de novas leis descobertas. Isto na ordem
moral, como na ordem física. É contra esta eventualidade que a Doutrina deve
estar sempre aparelhada. O princípio progressivo que ela inscreveu em seu código
será a salvaguarda da sua perpetuidade; a sua unidade será mantida precisamente
porque não repousa sobre o princípio da imobilidade. A imobilidade, em lugar de
ser uma força, é causa de fraqueza e de ruína", E como se tal não
bastasse, Kardec reforça a sua advertência deste modo: “Ela (a imobilidade) rompe a unidade, porque aqueles que querem ir
adiante separam-se dos que se obstinam em ficar atrás.”
Vimos argumentando com Kardec para
justificar Roustaing. Não subestimamos os que não aceitam, por qualquer motivo,
o "corpo fluídico". Uns não seguem Roustaing por não haverem atingido
ainda o momento de bem compreendê-lo, mas não o atacam. São sinceros, honestos em
sua atitude. Dignos, portanto; do respeito geral. Outros, porém, sem haverem
lido e meditado acerca das lições prodigiosas de "Os Quatro Evangelhos",
ou as leram e não as assimilaram, se exaltam no combate feroz a Roustaing e à
sua notável obra. São os apriorísticos negadores de todos os tempos, as pedras
de escândalo de todas as épocas, os "kardecistas" que não são fiéis à
Doutrina e, portanto, não são fiéis a Kardec. Nós
aceitamos Roustaing, depois de havermos recusado também, ao primeiro exame da
questão Quanto se encontra no monumental trabalho. Agradecemos a Deus a
compreensão que desceu sobre o nosso espírito, graças à palavra esclarecedora
do inesquecível amigo Guillon Ribeiro. Ninguém é espírita por se dogmatizar com
Kardec ou Roustaing, uma vez que o espírita consciencioso não se apaixona a
ponto de perder a serenidade; não se curva a dogmas; não se fanatiza; não se
prevalece de argumentações cavilosas para defender pontos de vista meramente pessoais.
Não. Ninguém nos mostrará em Kardec algo que signifique aprovação a semelhante
critério. O dever do homem, seja qual
for a sua crença, é estudar, refletir, analisar e, então, concluir, aceitando
ou recusando o
tema que lhe foi proposto ou que despertou sua atenção. Criticar sem
conhecimento de causa, contestar ideias aceitas por outrem sem as haver previamente
estudado, não é conduta que se concilie com os princípios consubstanciados na
Doutrina que nos legou Allan Kardec.
É curioso, senão lamentável, que a
preocupação de combater Roustaing faça, não raro, esquecer a Doutrina, muito
mais importante para o futuro espiritual do homem do que saber com rigor qual a
natureza real do corpo de Jesus. Desde, porém, que possamos dedicar-nos a esse estudo
sem quebra da nossa orientação doutrinária, porque não fazê-lo? Por aceitarmos
Roustaing, nem por isso somos menos kardecistas do que aqueles que o negam
ortodoxamente. A Doutrina Espírita trouxe ao homem uma concepção mais liberal da
vida, porque não o escraviza a regras estreitas. Pelo contrário, dá-lhe liberdade
de pensar e de julgar, permitindo-lhe usar de seu livre arbítrio como melhor
lhe aprouver. A par dessa ampla liberdade, deu-lhe também o dever de respeitar
a liberdade alheia, comportando-se o mais possível de acordo com os princípios
deixados por Allan Kardec, os quais se encontram sintetizados no lema por ele
adotado: “Trabalho, solidariedade e tolerância”. O trabalho por princípio, a
solidariedade como objetivo fraterno do esforço comum e a tolerância como
coroamento de tudo.
Se atentarmos para uma velha
comunicação espírita de Kardec, a respeito do estudo dum trecho dos Evangelhos
de Mateus, Marcos e Lucas, veremos que o Codificador, já desencarnado,
aproveitou a oportunidade de um esclarecimento necessário e reconheceu ter
vindo Jesus à Terra com a formação corpórea a que aludem os Evangelistas em
Roustaing: “Jesus ainda não entrara em ação decisiva contra os prejuízos e os
crimes do mundo. Logo que ele baixou e tomou
a sua forma corpórea aparente, para as lutas pela verdade”, etc.
Se restringir o alto valor da obra
de Kardec é tarefa de insanos, descobrir em Roustaing antagonismo real com a
Doutrina Espírita, codificada por aquele, pode ser qualificado como esforço
insincero: é trabalho das trevas. Kardec e Roustaing foram dois grandes
trabalhadores da causa, embora àquele houvesse sido cometida missão de maior
envergadura. Assim como não se pode destruir a Doutrina por ele concatenada, também
não se aniquilará jamais J. B. Roustaing porque as obras subscritas por ambos não
foram
obras humanas, mas obras dos Espíritos.
Estamos com Kardec quando,
prudentemente, nos adverte: “Todas as doutrinas têm tido o seu Judas e o
Espiritismo não havia de ser a exceção...
Já citamos uma vez este pequeno
trecho de “Le Spiritualisme dans I'histoire”, de Giustianiani, aparecida em
1879, em Paris: “Parmi Ies grandes et belles
oeuvres inspirées médianimiquement, on doit mettre au premier rang les “Quatre Evangiles”,
suivis des commandements, expliquès en esprit et en vérité par les Evangélistes
assistés des Apôtres. Toutes les communications
de cet important ouvrage ont été requeillies et mises en ordre par J. B.
Roustaing, avocat à Ia Cour Impériale de Bordeaux, ancien bâtonnier” (Entre
as grandes e belas obras inspiradas medianimicamente, devem figurar em primeiro
plano “Os Quatro Evangelhos”, seguidos dos mandamentos, explicados em espírito
e em verdade pelos Evangelistas assistidos pelos Apóstolos. Todas as
comunicações dessa importante obra foram recolhidas e postas em ordem por J. B.
Roustaing, advogado da Corte imperial de Bordéus, antigo bastonário).
Ressalta desse trecho que a obra
dita de Roustaing, por haver sido por ele recolhida e concatenada, foi
produzida medianimicamente, isto é, transmitida por Espíritos, tal como já
sucedera também com as obras ditas de Allan Kardec.
Para que não se julgue seja desvaliosa
a opinião de Giustiniani (Rossi de Giustiniani), esclarecemos que ele foi
professor de filosofia em Esmirna, laureado com o Prêmio Guérin, membro da Société
Scientifique d'Êtudes Psychologiques, de Paris. Homem de cultura e de
indiscutivel idoneidade intelectual, que considerou também “Os Quatro
Evangelhos” - de Roustaing - uma das “grandes e belas obras inspiradas
medianimicamente", e que, entre outras de valor, “deve figurar em primeira
plana”. Para ele também “Os Quatro Evangelhos” são uma “importante obra”.