O Cântaro quebrado
José Brígido (Indalício
Mendes)
Reformador (FEB) Março 1947
- Isso aconteceu há muito tempo.
Deus havia feito o mundo e os homens, as flores e as mulheres, os pássaros e as
florestas, os rios e os mares; enfim, tudo quanto embeleza, alegra e enriquece
a Terra. Mas ninguém tinha vontade própria, porque Ele pensava por todos. Um
dia, o Criador incumbiu o anjo Liriel
de vir à Terra, para esclarecer a razão da vida humana. Foi quando, à hora da
prece vespertina, Zoreb, o patriarca,
recebeu a visita dessa angelical entidade, de quem ouviu, em diserta linguagem,
estas palavras: - “A Terra é vasta oficina de trabalho, Preciso se torna que
todos aprendam por si mesmos a alcançar o beneplácito do Pai. Já é tempo de
cada qual cuidar de si, tendo por norma as Leis do Senhor. Darás a cada
habitante da Terra um cântaro igual a este, feito com a argila do Livre-Arbítrio,
contendo a essência da felicidade que um ser humano pode fruir neste planeta. Aconselha-os
a serem comedidos e discretos, pacíficos e bons, e a paz de Deus estará sempre
com os fiéis...”
*
Zoreb
dobrou os joelhos, beijou três vezes a Terra adusta e orou, agradecendo a
esmola da revelação de Liriel.
Concluída a prece, chamou à sua presença todos os homens e todas as mulheres,
aos quais entregou cântaros feitos com a argila do Livre-Arbítrio. E desde
então os seres humanos passaram a ser responsáveis pelos próprios atos. Tudo ia
bem, maravilhosamente, até que o jovem Ghazar-bar-Ghazar
se lembrou de examinar o precioso vaso. Admirou-o atentamente, mas logo sentiu
o acúleo (espinho) da curiosidade, Zoreb dissera que ele continha a
essência da felicidade. Não haveria mal algum em vê-la um pouquinho. “Sacudiu o
cântaro, virou-o de borco, tentou introduzir a mão no gargalo, inutilmente. As
dificuldades tornaram-no ainda mais curioso. Nunca experimentara semelhante
sensação, pois só agora dispunha de livre-arbítrio. E a inteligência começou a
trabalhar febrilmente. Muniu-se de uma pedra e com ela bateu fortemente na
parte mais saliente do vaso, que se quebrou, caindo-lhe aos pés os fragmentos.
Se grande era o seu
desejo de saber o que continha o cântaro, maior se tornara sua aflição ao
perceber que o mesmo se achava completamente vazio.
*
“-Oh! Não é possível que o venerável
Zoreb haja mentido! Não é possível! -
exclama, superexcitado. E, pela primeira vez, sentiu o traiçoeiro beijo da
cólera. Irritado com a possibilidade de haver sido miseravelmente iludido,
agarrou com violência o cântaro quebrado e saiu para a estrada, correndo e gritando,
gritando e bracejando, até alcançar a casa de Zoreb. Seu desespero atraíra dezenas, centenas, milhares de pessoas.
Arfante e rubro de raiva, Ghazar-bar-Ghazar
não respeitou as cãs do patriarca e fomentou o escândalo: “- Fui enganado,
irmãos! O meu cântaro estava inteiramente vazio! E os vossos; estarão cheios?!”
Aquela multidão pareceu instantaneamente ferida pela dúvida. Cada qual
voltou depressa a casa para examinar também o cântaro sagrado.”
*
Sabedor do que ocorria, Zoreb, cheio
de mansidão, mandou diversos emissários ao povo, instando para que ninguém
mexesse nos vasos que a longanimidade do Pai permitira a Liriel trazer aos terrícolas. Que confiassem em suas palavras,
porque, embora pobres, eram eco longínquo da vontade divina. A infernal
algazarra abafava a cordura do bom Zoreb.
Milhares de cântaros realizavam no ar extravagantes evoluções e muitos,
arremessados por mãos que o ódio fazia tremer, vieram espedaçar-se aos pés do
patriarca. Foi quando Zoreb se
transfigurou, agigantando-se. Sua voz débil cresceu de intensidade e ele
dominou a turba, impondo-lhe silêncio, com um gesto que se revestia de singular majestade!
E considerou: “Insensatos! O cântaro contém, efetivamente, a essência da
felicidade. Feliz daquele que ainda conserva intacto o seu, porque melhor
poderá receber a santa paz do Senhor!”.
*
Elevando os braços para o céu, assim
se manteve longos minutos, como numa prece muda à Divina Potestade. Seu rosto
vincado pelos anos se orvalhava de sincero pranto. Era comovente a expectativa,
Os exaltados, que haviam quebrado seus cântaros, achavam-se vencidos, tinham o
coração torturado pelo arrependimento. Poucos, muito poucos, fruíam a paz
interior, apertando contra o peito os cântaros inteiros! Foi a partir desse dia
que a desgraça marcou os homens e mulheres que haviam destruído a própria
felicidade. Zoreb, sereno qual
primaveril manhã, voltou a falar, e sua voz era terna e doce como um hino
celestial. “Bem-aventurados os que têm fé
inabalável e paciência para esperar! A desordem e as aflições que agora vos
infelicitam provêm do mau uso do livre-arbítrio e da perda inestimável da
tranquilidade de espírito que se achava dentro dos cântaros que quebrastes.
Essa paz, filhos
meus, é que constitui a essência da felicidade, porque sem ela ninguém poderá
ser feliz.”
Após ligeira pausa, prosseguiu: - “Deprequei
ao Senhor a graça de mais uma oportunidade para os que, alucinados, destruíram
os vasos que lhes dei por determinação de LirieI.
E o Senhor, infinitamente bom, infinitamente misericordioso, infinitamente
justo, atendeu à minha prece!", Um murmúrio de satisfação e esperança se
ouviu no seio da grande
massa. – “Bendito seja Deus! Bendito seja Deus!", Zoreb recomeçou a falar: - “O Pai poderia recompor os cântaros, num
átimo, mas é preciso que suas Leis se cumpram, letra por letra. Não desespereis.
Procurai restaurar os vasos partidos e quem o conseguir obterá a graça de
recuperar também a essência perdida. A empresa é difícil, porque os cacos e
estilhaços se confundem, Será preciso trabalhar com extrema paciência, inexcedível
perseverança e insuperável confiança nos desígnios do Senhor. Não espereis
milagres, porque cada qual terá de reaver o cântaro com o próprio esforço. Perseverai,
e, quando terminardes a obra, levantai a Deus o pensamento e agradecei - agora
sim – o milagre da recuperação! Esse milagre, porém, não será do Pai, mas
daquele que, pensando n'Ele, levar a
cabo tão redentora missão.” Cruzando os braços sobre o peito, Zoreb baixou a cabeça prateada, e
voltou, devagarinho, a penates (família)...
*
Ainda hoje, a Terra anda cheia de
cântaros quebrados. Poucos logram restaurá-los, porque lhes falta fé; muitos
abandonam o trabalho, quando as dificuldades crescem e somente pequeno número
persiste, a despeito de todas as decepções, no mister fatigante de reunir, um a
um, os fragmentos perdidos. E raros são os que, fiéis à lição de Zoreb, ainda guardam no âmago do coração
os cântaros inteiro...
Não é outra a causa das aflições que
enchem a vida humana. Qual de nós terá seu cântaro perfeito? Quantos não sentem
a alma mergulhar na tristeza, ao se lembrarem de que não mais possuem “tranquilidade
de espírito”, porque esta se foi com o cântaro quebrado?.. A vida é uma experiência.
Se tudo estivesse definitivamente perdido, onde estaria a justiça do Senhor?
Ele, porém, é infinitamente justo e dá aos Espíritos a oportunidade de recomeçar
as experiências, o ensejo de recompor os cântaros quebrados... E o grande
mérito está em lutar para reparar os ditos pretéritos, em realizar todos os
esforços inimagináveis para consertar os vasos destruídos. Lutar e sofrer com
coragem e fé, resignadamente, resolutamente, sofrendo todas as dores c decepções
sem desfalecimento, para que os cântaros quebrados possam, um dia, ser apresentados
ao Senhor, sem os vestígios das velhas fraturas. E, então, Ele recompensará o
trabalho e a boa vontade dos vencedores de si mesmos, perfumando--lhes a alma
com o divino perfume da felicidade,
oculto
nos cântaros santificados pela fé e perseverança no bem!
*
- Obrigado, Zoreb! Despeço-me agora, porque o tempo passa depressa e desejo
começar ainda hoje a recomposição do meu cântaro quebrado...
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