segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O presente de Rosinha


O presente de Rosinha (Conto de Natal)
José Brígido 
(Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Dezembro 1952

            Aquele asilo, de caridade só tinha o nome. Mas quem visse como as criancinhas órfãs eram ali recebidas, saia contente e confortado, abençoando aquela casa de infelizes. Mas, dona Tereza, certa vez, chegando ali de sopetão, não pode deixar de exclamar, ao ver uma menina, nos seus cinco anos incompletos, limpando o chão imundo com um pano ainda mais sujo e tão pesado que quase ela não o sustinha nas mãos:

            - Tão pequenina e já nesse rode serviço!

            Um sorriso inocente e triste aflorou aos lábios de Rosinha. Ela perdera os pais muito cedo e ficara ao desamparo, numa velha casa de cômodos de Botafogo. Andava suja e rasgada, sem os cuidados que teria, se a sua mamãezinha fosse viva. Condoída da sua sorte, uma mulher do cortiço tomara conta dela. No começo, tudo ia bem, mas, sofrendo também os acicates da miséria e não dispondo de uma preparação moral adequada, acabou por se desinteressar de Rosinha. Pouco se incomodava que ela estivesse bem ou mal. Olhava-a como um entre outros trastes que lhe enchiam a alcova sórdida: indiferentemente. A menina quase não se alimentava e os tenros ossinhos pareciam prestes a furar-lhe a pele emurchecida. Um dia, com a melhor das intenções, o carteiro Aniceto, que lhe conhecia o drama, propôs à mulher:

            - Dona Sebastiana, ó dona Sebastiana!

            - Que é, seu Aniceto! Que que há!

            - A Rosinha está doente?

            - Doente o que, seu Aniceto! Isso é uma pestinha ruim como que!      .

            - Está tão magrinha... Ela não come?

            - Se não come é porque não quer! Comida é pouca mas não falta. Dá prá gente enganar o estômago. Ela é luxenta, seu Aniceto... Pobre com luxo é desaforo. Dar na boca, não dou, não...



            - Mas ela ainda é muito pequena, dona Sebastiana...

            É sim, mas já tem idade prá saber o que faz.
           
            - Se eu fosse a senhora punha ela num asilo de órfãos. Se ela lhe dá tanto trabalho...

            - Se dá! E não me ajuda nada, seu Aniceto! Eu já quis fazer isso, mas é tanta exigência, tantos papéis, que desisti. E fica essa pamonha a me amolar o dia todo, como se meus filhos não chegassem!

            - Seus filhos são mais crescidos e mais fortes, dona Sebastiana ...

            Rosinha estava perto, porém, na sua candidez, não percebeu que falavam a seu respeito. Distraia-se com uma caixa de fósforos vazia, contente como se fosse belo brinquedo. O carteiro, comovido, abaixou-se, fez-lhe um agrado, interrompido logo pela Sebastiana:

            - Não faça isso, não, seu. Aniceto! O senhor está dando asa a essa menina e eu depois é que vou aguentar...

            Aniceto não protestou. Apenas fez esta pergunta:  

            - Estou vendo que a senhora anda muito cansada. Quer que eu a leve para um asilo?

            - Se quiser, até agora mesmo.

            - Já, não. Depois voltarei para lhe dizer qualquer coisa. Até outro dia, dona Sebastiana. Adeus, Rosinha, adeus!..

            E ausentou-se, pensativo.


*

            Rostinho magro, olhos fundos, cabelos ralos e empastados pela falta de trato, a menina estava chupando os dedinhos sujos quando o Aniceto a veio buscar. Sofria muito, sem dúvida. Como não conhecesse coisa melhor, chorou ao ser levada dali. Era multo cedo para distinguir o ruim do pior. Não queria sair e chamou, com a vozinha débil:

            - Tiana! Tiana! Tiana! ...

            E lá se foi, por entre lágrimas, para a casa de caridade que, na boa fé do seu coração sensível, lhe havia arranjado Aniceto.

            Uma vez fechada a porta, Rosinha sentiu e estranhou o ambiente. Fria, a preceptora chamou-a e ela, distraída, não atendeu. Foi o bastante:

            - Estou vendo que você tem sido tratada com muito mimo. Venha cá! – berrou, irritada.

            Assustando-se, Rosinha chorou.

            - Ainda chora, não é? Não quero criança manhosa aqui! Só mandam prá cá estes “molambos”! Está tão suja que até dá nojo!

            E fez um gesto de repugnância.

            Mandou que a lavassem e lhe dessem uma roupinha limpa. Fê-la sentar-se à mesa com as outras crianças, todas de semblante melancólico. Desabituada e saudosa do ambiente em que sempre vivera nos dois anos que mediavam entre o seu nascimento e a acolhida da Sebastiana, Rosinha desandou a chorar convulsivamente.

            Sem procurar compreender o estado psicológico da menina, a preceptora agarrou-a brutalmente pelo braço, sacudiu-a e gritou para que todos ouvissem:

            - Cale a boca! Não quero gritos, não quero choros aqui!


            Enfraquecida e nervosa, Rosinha chorou ainda mais. Foi, então, arrastada para o “quarto escuro”, como exemplo às demais crianças.

            - Fique aí, sua malcriada! Você hoje não janta, para aprender a ser obediente!

            Ao regressar ao refeitório, bradou, colérica:

            - Eu já estou "cheia”, ouviram?! A primeira que quebrar a disciplina irá para o “quarto escuro” sem comer!

            As meninas, aterrorizadas, baixaram humildemente a cabeça, pois já conheciam a “energia” da preceptora.

            Quase três anos passou ali. Já estava mais crescidinha, pois ia fazer cinco anos. Achava-se limpando o chão quando dona Teresa a viu. Penalizada, não se conteve e se dirigiu à preceptora:

            - O que a senhora está fazendo não é direito. Como é que põe uma menina dessa idade e tão fraquinha em serviços pesados?

            - A senhora compreende, dona Teresa, o asilo é pobre, não pode pagar a empregados. É preciso que todos os asilados ajudem um pouco...

            - Não, não está direito! Sei que algumas pessoas dão o suficiente para que o asilo tenha, pelo menos, dois empregados. No entanto, não é isto, o que estou vendo. Nunca supus que esta fosse a caridade que a senhora pratica aqui dentro!

            Antes dona Teresa não tivesse dito nada. Mal ela saiu, a preceptora foi buscar Rosinha, furiosa. Bateu-lhe com violência e mandou-a para o famoso “quarto escuro”. Cansada, faminta e pesarosa, cheia de medo e sem saber porque fora castigada, Rosinha chorou até adormecer. E só despertou quando ouviu que a chamavam docemente:

            - Rosinha! Rosinha!

            Ela abriu os olhinhos claros no quarto escuro. Teve a impressão de que estava todo iluminado. Fez carinha de choro e pôs um dedinho na boca... Receava que a preceptora ...

            - Não tenha medo, Rosinha... Venha cá, comigo, venha...


            - Quem é você, heim?

            - Sou o irmão de todas as criancinhas... Sou Jesus...

            - Mas quem é Zisus?

            - Jesus, Rosinha, é, como você, filho de Papai do Céu...

            - Você vem mi batê, vem? Eu num choro mais, não... Sim?..

            A sua vozinha cortava o coração. Ela tremia que fazia dó. Jesus, cuja irradiação luminosa espancara as trevas do improvisado ergástulo, não pode impedir que duas pérolas rolassem de seus olhos infinitamente meigos.

            Abraçou e beijou enternecidamente a pequenina, confortando-a:

            - Bater em você, porque, Rosinha?

            - A moça dexô você intrá aqui, dexô?

            Depois, receosa, fez nova pergunta:

            - Zizus, você também chorô i vai ficá preso vai?

            - Não, Rosinha.. Hoje é Dia de Natal e eu vim buscar você para uma grande festa...

            Batendo as mãozinhas, a menina sorriu como nunca havia sorrido.  

            Então, Jesus alegrou-a ainda mais:

            - Vou levar você comigo para um lugar muito bonito, onde há uma porção de meninas bonitas como você, cantando e brincando...

            Graciosamente, Rosinha beijou a face de Jesus e, nesse instante, sua cabecinha loura ficou mais dourada e em volta dela se formou uma auréola de luz. Pousou a cabecinha no ombro do Divino Mestre e, adormeceu.

*

            Quando despertou, fraquinha, por não se ter alimentado, achava-se estranhamente satisfeita e alegre. A preceptora dela se aproximou, sempre mal-humorada:

            - Como é, manhosa, ainda está muito birrenta?

            Rosinha sorriu, fez uma carinha brejeira e sacudiu a cabeça, negativamente:

            - Ande, venha cá! Vá comer o seu mingau que está esfriando. Como hoje é Dia de
Natal, você tem de limpar a mesa, as cadeiras e o chão, bem limpos, ouviu?

            Rosinha acenou a cabeça, denotando haver compreendido. E foi comer o mingau.

            De repente, viu Jesus. Sentindo grande fraqueza, ela deixou a cabecinha pousar na mesa, enquanto a colher lhe rolava da mão entreaberta para o chão. A preceptora, atenta e ríspida, ao vê-la assim, gritou, estentoricamente:

            - ROSINHA! Comporte-se! Vamos, coma depressa!

            Ela porém, não deu ouvidos à preceptora. Forças estranhas a invadiram e ela foi ao encontro do Mestre, que a esperava de braços abertos.

            - Venha, anjinho, venha cá!

            Rosinha parecia feliz, na companhia de Jesus...


*

            Cá embaixo, neste Umbral de lutas e incompreensões terríveis, que o egoísmo mais torpe acoroçoa, um médico acabava de assinar um papel em que se lia, apenas: “Colapso cardíaco”.

            Era o atestado liberatório que Rosinha obtivera como presente de Natal!..


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