Profissão de Fé – parte 8
por Gustavo Macedo
Fonte: Reformador (FEB)
a partir de
15 de Abril de
1905
33
A sua doutrina excede às de todos os santos; quem tenha seu espírito nela
acha um maná escondido. E é por falta desse espírito, que muito poucos se
movem, ainda com a audição frequente do Evangelho. Quem pretende a
plena inteligência e gosto das palavras de Cristo, esmere-se em conformar
sua vida toda com a vida do mesmo Cristo. (Imitação do Cristo, cap. I, L. I)
No interrogatório a que Jesus foi submetido no pretório de
Pilatos, este lhe perguntou “Sois o rei dos Judeus?” Jesus lhe respondeu: “Meu
reino não é deste mundo.”
Apegados por demais às ideias terrestres, os judeus, na interpretação literal
das escrituras, esperavam um messias, rei e conquistador, que lhes
proporcionasse os bens da terra. O reinado de Jesus, entretanto, é todo
espiritual, pelas suas condições de pastor do rebanho humano, e governador do
planeta Terra, a cuja formação presidiu.
A expressão empregada pelo divino Mestre: “Há muitas moradas na casa de meu
Pai” refere-se ao universo, cujas moradas são os mundos que circulam no
espaço infinito, e para os quais vão as almas, conforme o estado de
adiantamento ou atraso moral.
A Terra pertence ao número dos planetas de expiação e de prova. Há planetas
mais atrasados, onde a vida é mais penosa, mas há também esferas cujas
condições de felicidade são superiores.
*
Era crença corrente entre os judeus a reencarnação, que, porém, na confusão
natural de coisas, para eles obscuras, chamavam ressurreição.
Os Evangelhos nos fornecem provas irrecusáveis dessa verdade, em passagens que
não deixam dúvida.
Quando Jesus estava em Cesareia de Filipe, perguntou a seus discípulos o que
diziam dele. Responderam-lhe: “Uns dizem que sois João Batista, outro Elias,
outro Jeremias, ou algum dos profetas .”
A crença popular é confirmada por Jesus no trecho que passamos a transcrever da
obra que noticiamos:
Depois da transfiguração os discípulos o interrogaram e lhe disseram: “porque
razão os escribas dizem que é preciso que Elias venha primeiro?” E Jesus lhes
respondeu: “É verdade que Elias deve vir pra restabelecer todas as coisas; mas
eu vos declaro que Elias já veio e eles não o conheceram e o trataram como lhes
aprouve”. É assim que eles farão sofrer o Filho do homem. Então os
discípulos compreenderam que era de João Batista que ele lhes falava.”
O Divino Mestre, que devassava os sentimentos mais íntimos do coração alheio, e
muitas vezes corrigia os pensamentos errôneos de seus discípulos, não deixaria
de esclarecê-los sobre assunto de tanta magnitude, se errado fosse o juízo dos
apóstolos.
Quando ele disse: - “Aqui está o pão que desceu do céu”, seus discípulos,
tomando ao pé da letra as suas palavras, o abandonaram, dizendo:
“Duro é este discurso, e quem o pode ouvir?” Jesus mostrou-lhes o sentido
espiritual das suas palavras, dizendo: “O Espírito é o que vivifica, a carne
para nada aproveita: as palavras que vos digo são espírito e vida.”
A conferência noturna entre o Cristo e Nicodemos, a respeito da reencarnação, é
de tal importância para esclarecimento dessa verdade, que não resistimos ao
desejo de transcrevê-la:
“E havia um homem entre os fariseus chamado Nicodemos, senhor entre os judeus.
Este veio a Jesus, de noite, e lhe disse: - Rabi, sabemos que és mestre, vindo
da parte de Deus, porque ninguém poderias fazer esses milagres que tu fazes se
Deus não estivesse com ele. Respondeu Jesus e disse: Em verdade, em verdade te
digo que quem não renascer de novo não pode ver o reino de Deus. Disse-lhe
Nicodemos: - Como pode um homem nascer sendo velho? Porventura pode voltar ao
ventre de sua mãe e nascer outra vez? Respondeu Jesus: - Em verdade, em verdade
te digo que não pode entrar no reino de Deus senão aquele que renascer da água
e do Espírito. Não te maravilhes de eu te dizer: Importa-vos nascer outra vez.
O espírito sopra onde quer, e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem
para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do espírito.
Perguntou Nicodemos, dizendo: -Como se pode isto fazer? Respondeu Jesus e lhe
disse: Tu és mestre em Israel e ignoras estas coisas? Em verdade, em verdade te
digo que o que sabemos, dizemos: e do que vimos damos testemunho, e nem por
isso recebeis o nosso testemunho. Se, quando eu vos tenho falado das coisas
terrenas, vós não me credes, como me crereis se eu vos falar das celestiais?” (S.
João, cap. III, vv. 1 a 12).
A palavra água não é, como entende a igreja, o batismo.
Os conhecimentos dos antigos sobre ciências físicas eram muito incompletos;
acreditavam eles que a terra havia saído das águas, e por isso
encaravam a água como elemento gerador absoluto; e tanto é
assim que o Gênese narra: O Espírito de Deus era levado sobre as águas;
- seja feito o firmamento no meio das águas; as águas estão que estão debaixo
dos céus se reunam em um só lugar e o elemento árido apareça: - produzam as
águas animais vivos que nadem na água e pássaros que voem sobre a terra e sob o
firmamento.
Além disso o próprio Jesus afirma que João Batista é Elias, quando diz; - “e se
quereis compreender o que vos digo, é Ele mesmo que é Elias que deve vir.”
É falso que o batismo tenha sido instituído pelo divino Mestre: era uma prática
dotada pelos essênios. Como prova de humildade, o Cristo se deixou batizar por
João Batista, e nunca batizou ninguém.
Seus discípulos batizaram o povo, é certo, porém, era uma prática exterior,
significando adesão às doutrinas evangélicas. Dado o estado material daquele
tempo, era uma inscrição no Cristianismo, como se faria hoje no registro de
qualquer associação civil ou religiosa.
Porém, dirão, Jesus depois de ressuscitado mandou aos seus discípulos que
batizassem.
É certo: o povo de então só se consideraria cristão, com o uso daquela mesma
formalidade, entretanto sem valor espiritual algum.
A igreja julgou mais acertado condimentar mais a água, e por isso lhe adicionou
sal, cera, óleos e cuspe sacerdotal nos batizados.
*
As bem-aventuranças, tão citadas pelas seitas ditas cristãs, podem consolar e
incutir paciência, mas nada explicam com relação às anomalias morais que
presenciamos.
Se o céu é o termo de todas as vidas, não se compreende que se o obtenha de
modos injustamente desiguais: uns com sofrimentos e lágrimas, outros com risos
e alegrias.
Ora Deus não age por capricho; por isso disse mui sensatamente o nosso mestre,
resumindo a opinião dos espíritos reveladores:
“-Se é soberanamente justo e bom, não pode agir por capricho nem com
parcialidade. As vicissitudes da vida têm, portanto, uma causa, e sendo Deus
Justo, essa causa deve ser justa”.
As causas do nosso sofrimento residem ou nas faltas da nossa vida atual, ou nas
da vida anterior. Ninguém sofre sem razão.
Não sendo o mundo capaz de curar as chagas que na criatura humana abriu; sendo
impotente para consolá-la nas dores físicas e morais, Jesus mostrando a leveza
do seu jugo, convida os homens a tomá-lo sobre si, dizendo: “Vinde a mim,
vós todos quantos vos achais aflitos e sobrecarregados, e eu vos aliviarei.”
Prometera também o Consolador - O Espírito de Verdade - que aos homens
ensinaria todas as coisas, até então encobertas, ou sobre as quais o Divino
Mestre apenas fizera uma alegoria ou parábola.
A humildade sempre foi uma condição indispensável para a aprendizagem: o
orgulhoso julga tudo saber e por isso mesmo se torna relativamente ignorante.
Contra esse escolho advertiu Jesus quando chamou bem-aventurados aos pobres de
espírito, o que não quer dizer seres desprovidos de inteligência, mas simples e
despretensiosos.
Contra os perigos e as quedas do orgulho, o Cristo, além do exemplo de seu
viver singelo e modesto, juntou discursos ilustrativos, como no exemplo do
menino que pela sua singeleza é o símbolo do maior no reino dos céus.
Na lição dada a ambição materna, quando a mãe de Tiago e João pedia que seus
filhos tivessem assento ao lado de Jesus no seu trono de glória, Ele lhe
declarou que o que quisesse ser o maior fosse o servo de todos, como nos dera o
exemplo, vindo servir aos outros e não ser servido - ensinamento reproduzido no
jantar na casa do fariseu, em que condenou a sofreguidão com que os convidados
procuravam os primeiros lugares, recomendando que de tal se abstivessem, antes
procurassem os últimos lugares: “porque aquele que se exaltar será
humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado.”
A igreja, que não liga grande importância aos ensinamentos do Divino Modelo, resolveu cristãmente praticar
o contrário; é assim que seus ministros se fizeram papas, coisa que S. Pedro
nunca foi, e se fizeram cardeais e criaram uma série de títulos honoríficos e
até aristocráticos.
O pontífice romano é conduzido em uma cadeira gestatória[1], para cujo mister se
transformam alguns homens em besta de carga. À humanidade oferece o pé a
beijar, ou, se quiserem, a cruz, escolhendo, entretanto, o pé como sítio mais
próprio para trazer a cruz, considerada símbolo de redenção.
Os cardeais cobrem-se de púrpura e trazem longos hábitos talares; os bispos e
arcebispos têm docel e trono nas suas igrejas; são recebidos ao som do Ecce Sacerdos Magnus,
e penetram no templo abençoando a multidão que os recebe de joelhos.
Para mostrar que são os verdadeiros anti Cristo, basta citar entre outros os
versículos 46 e 47 de Lucas Capítulo XX: “Guardai-vos dos escribas, que
querem andar com roupas talares e gostam de ser saudados nas praças e das
primeiras cadeiras nas sinagogas e dos primeiros assentos nos banquetes; que
devoram as casas das viúvas, fingindo largas orações. Estes tais receberão
maior condenação.”
O orgulho os cega: por isso as coisas ocultas são reveladas “aos simples e
aos pequenos”.
Se esses homens orgulhosos e rancorosos são de fato os depositários do poder de
Deus, usem dessa faculdade para curar os enfermos, pois aos doze apóstolos
Jesus deu tal poder. (Lucas IX, v.1).
Mas não o fazem; por quê?
Por que abandonaram a fé viva de Jesus, que de todos é “o caminho, a verdade
e a vida” e substituíram-na pela fé no papa, que, no dizer de um grande
poeta, é “um Deus inventado à socapa.”
Não dependa tua paz da boca dos homens; de ti pensem bem ou
mal, ficas sempre o homem que és. Onde está verdadeira paz, a glória
verdadeira? Não está em mim? Grande paz gozará quem não apetece o agrado dos
homens, nem seu desagrado teme. (Imitação
de Cristo, Liv. III, cap. XXVIII.).
Para simbolizar a pureza de coração que é inseparável da
simplicidade e humildade, Jesus tomou como tipo uma criança, que lhe fora
apresentada, a despeito da má vontade dos discípulos em consentir a sua
aproximação ao Divino Mestre, que declarou, ao recebê-lo carinhosamente: “O
reino do céu é para os que se assemelham à criança.”
Em regra o ato reprovável é uma resultante do mau pensamento: Jesus, querendo
que tivéssemos o coração puro, advertiu-nos resistíssemos aos desejos
pecaminosos, dizendo: Não cometereis adultério. Porém eu vos digo
que quem olhar para uma mulher cobiçando-a, já em seu coração adulterou com ela.
O termo adultério não tem uma acepção tão restrita como
geralmente se pensa: ele designa os hábitos viciosos em geral, e por isso Jesus
chamou adúltera e pecadora a raça dos
fariseus.
Já o vimos, esta seita era minuciosa na observância das práticas exteriores;
representantes seus fizeram reparo a Jesus, por não lavarem os seus discípulos
as mãos antes das refeições, e Jesus lhes fez sentir que eles violavam a lei
divina por causa das tradições; que deles dissera Isaías - honravam a Deus com
os lábios e não com os corações; que o beber e o comer sem lavar as mãos não
manchava o homem e sim o que de seus lábios saía; não importava limpar
exteriormente o copo e o prato, e sim o coração, cheio de rapina e iniquidades.
Não resistimos a comentar estas passagens, mostrando a sua reprodução nos
tempos modernos, com os fariseus ditos cristãos, que têm nos lábios o mau e o
ódio no coração.
Existem nas sacristias de todos os templos pias destinadas às abluções para os
sacerdotes, antes e depois da missa.
Como se vê, os padres não são passíveis das censuras farisaicas no capítulo
referente às lavagens das mãos.
Quanto aos cálices, força é confessar: limpam-se escrupulosamente com paninhos
apropriados chamados - sanguíneos - porque ficam manchados com o sangue de
Jesus, na operação química no laboratório da missa, quando o sacerdote na
consagração muda a substância do vinho em sangue!
Depois vêm, com o nome de Deus nos lábios, vomitar dos púlpitos as mais
agressivas calúnias e injúrias contra os espíritas, que preferem, ao invés de
lavar as mãos, cumprir os preceitos cristãos do amor, do perdão e do
desinteresse.
*
“Ai do mundo por causa dos escândalos; pois é necessário que sucedam
escândalos; mas ai daquele homem por quem venha o escândalo.”
O escândalo consiste no ruído que o mau ato produz, incitando e fazendo
desfalecer o fraco que procura seguir o caminho reto.
O mal é consequência da imperfeição humana; existindo os homens na terra, naturalmente
se darão escândalos, pois infelizmente ainda são imperfeitos. Tempo virá em que
deste planeta o mal será banido e, portanto, o escândalo, como já acontece nas
esferas superiores.
- Estirpemos de nós o vírus do orgulho, e muitas ações más, dele decorrentes,
não existiriam.
Infelizmente esta compreensão ainda não é geral, mesmo entre os progenitores,
que muitas vezes ensinam a seus filhos a repulsa de toda a leviandade, que
assume a seus olhos proporções de ofensas à honra.
Jesus ensinou e exemplificou ser mais nobre e heroico o desprezo da injúria do
que a sua vingança.
Ensinou a misericórdia e chamou bem-aventurados aos misericordiosos,
aconselhando-nos a reconciliar-nos com os adversários antes de ofertarmos a
Deus os nossos sacrifícios, por ser este o mais agradável aos olhos de Deus,
que “quer misericórdia e não sacrifícios.”
O orgulho humano nos leva a censurar em nossos irmãos os mesmos defeitos que
temos, quando muitas vezes temos outros piores do que os censurados; foi o que
o Divino Mestre condensou nestas palavras: “Vedes um arqueiro no olho de
vosso irmão e não vedes a trave no vosso.” Tal o exemplo da mulher
adúltera, pecadora, é certo, porém não menos que ela os seus acusadores.
Iludidos pelas aparências, são os homens por falso critério levados a más ações
cujo fundo revela verdadeiros atos de heroica virtude; por isso disse o
Nazareno: - Não julgueis, e não sereis julgados, pois sereis julgados
conforme houverdes julgado os outros; sereis medidos como houverdes medido.”
Confunde Jesus aos fariseus proclamando o amor de Deus e do próximo como o
maior mandamento e o resumo da lei divina, o que é perfeitamente compatível com
o respeito ao poder civil, pois César e Deus têm direitos.
Ainda hoje o sentimento de vingança é uma das chagas da humanidade. O rancor
engendra as perseguições mais implacáveis e tem dado causa aos crimes mais
atrozes. O ponto de vista mesquinho em que a criatura se coloca lhe faz
responder à injúria com a injúria, a ofensa com a ofensa, o ódio com a
vingança. Jesus no-lo ensinou: há mais mérito e superioridade em desprezar a
injúria que em retribuí-la com a mesma moeda; por isso disse: “amai os
vossos inimigos, fazei o bem aqueles que vos odeiam e orai por aqueles que vos
perseguem e caluniam.” Não quer isto dizer: amemos com o carinho de
amigos aos que nos votam o ódio entranhado; e sim não devemos alimentar para
com eles sentimentos de vingança mesquinha, para que “a nossa justiça seja
maior e mais perfeita que a dos escribas e fariseus.”
Antes sofrermos a injustiça do que praticá-la, é a consequência lógica da
recomendação de darmos a face direita ao que nos ferir na esquerda. Mas como o
mérito da boa obra consiste na pureza da intenção, ao contrário do estardalhaço
do reclame, nos ensina o divino Jesus que a mão esquerda ignore a esmola,
isto é, o bem que faz a direita, e não utilizar-se dos pobres e necessitados,
humilhando-os, para favonear a vaidade de doadores orgulhosos, que muitas vezes
dão menos, muito menos que a viúva do Evangelho, a qual, dando da sua
indigência, mereceu os louvores de Jesus.
*
No tecido de hipocrisias da sociedade, assinalam-se de um modo especial as
relações de interesse. Quanto mais elevado é o indivíduo, mais forceja para a
ele chegar o adulador, daí o verdadeiro esforço para se tornar comensal, e ter
a honra proveitosa de recebê-lo em casa. Jesus nos ensina a convidar para os
nossos festins, ao invés dos ricos e poderosos, que nos podem retribuir as
finezas recebidas, os pobres e os simples, que nos retribuirão com a amizade
desinteressada e a gratidão que atrai sobre o benfeitor as bênçãos de Deus. É a
parábola do convite aos pobres e estropiados.
O Divino Mestre, que nos recomendou a piedade filial, e estendeu o amor
fraterno a todos os homens, afirmando que os cumpridores da vontade de Deus
eram os seus parentes e irmãos, fez consistir a religião e a virtude na prática
exclusiva da caridade - “fora da qual não há salvação”.
É assim que na parábola do julgamento final, o prêmio é
reservado para o que acudiu ao pobre, ao enfermo e ao encarcerado, recebendo o
Cristo, como se a ele mesmo fossem feitos, os benefícios recebidos pelos necessitados,
e fazendo recair todo o rigor da justiça sobre os infratores da lei da
caridade.
Condenação absoluta às igrejas, que postergam os ensinamentos do Nazareno,
substituindo-os por um conjunto de práticas supersticiosas e ridículas, as mais
das vezes, senão sempre, produtivas só para os seus ministros.
Na parábola do homem saqueado e ferido no caminho de Jericó pelos ladrões, e
abandonado pelos levitas e sacerdotes da religião oficial da Judeia, e
socorrido misericordiosamente pelo cismático samaritano, mal olhado pelos
judeus, que se consideravam os religiosos perfeitos, o Divino Mestre nos ensina
que a Deus só é agradável a caridade, classificando-a de - maior mandamento -
no qual consiste a religião, porque só da falta de piedade para com os outros
teremos que dar contas à Divindade.
Embora tenha a criatura muitos dons estimáveis, nada será se não tiver
caridade, afirma o grande apóstolo S. Paulo.
No mancebo que retirou-se triste de Jesus, por não se querer desapegar das
riquezas, e no lavrador que amontoa nos celeiros toda a colheita, com o fito de
entregar-se aos prazeres materiais - Jesus nos exemplificou quanto o egoísmo,
contrário à caridade, é obstáculo para o homem se tornar seu discípulo.
Não é a riqueza que é condenável e sim o egoísmo; Zaqueu, publicano e tido como
homem de má vida, recebeu em sua casa com o Divino Mestre a salvação, porque
deu a metade dos seus bens aos pobres e prontificou-se a indenizar no quádruplo
aqueles que lesara.
No rico, duro e impiedoso, que se banqueteava diariamente, desprezando o
miserável Lázaro, que gemia à sua porta, vemos a riqueza como instrumento de
males, pelo mau uso dela feito, e a lição da parábola do rico estorcendo-se nos
sofrimentos e angústias.
A caridade, porém, não é unicamente o ato material de dar dinheiro. Sem dúvida
é esta uma das formas da beneficência; mas deve-se ter sempre em vista a
caridade moral, que se revela pelo bom conselho, pela indulgência, perdão,
ensino aos ignorantes, cabendo-nos a obrigação de fazer frutificar os dons de
Deus, o que Jesus nos ensinou na parábola dos talentos.
Assim alcançaremos a perfeição, com a prática da caridade moral e material,
coroada pela humildade mais perfeita, e a mais completa justiça, que consiste
em orar e querer bem aos que nos caluniam e perseguem, para sermos “perfeitos
como nosso Pai celestial é perfeito”.
*
As belezas da doutrina cristã não são todas assimiladas: uns conhecem-na e
vão-se embora sem se importar mais; outros detém-se um pouco a praticarem-na
pelos proventos da riqueza, até que outros a guardam e observam e se fazem
cristãos.
É o que Jesus nos ensina na parábola do semeador, que tem o seu complemento na
do festim de núpcias, na qual se vê homens endurecidos recusarem-se a tomar
parte no banquete espiritual da doutrina cristã.
Há criaturas atufadas nos prazeres dos sentidos, que só percebem os gozos da
matéria; são os que, no dizer de S. Paulo, fazem do seu ventre Deus. - Sem
dúvida a prática da doutrina cristã, ou espírita, o que vem a ser a mesma
coisa, é difícil; por isso disse Jesus: “Entrai pela porta estreita,
porque a da perdição é larga.”
Não basta, pois, que o indivíduo se dê a práticas exteriores de devoção, que
bata ao peito quando tange a campainha, que leve em charola imagens mais ou
menos grotescas, e faça coro laudatório em ladainhas e quejandas práticas,
porque disse o Divino Mestre: “Nem todos os que me dizem: Senhor! Senhor!
entrarão no reino dos céus, mas somente quem fizer a vontade de meu Pai que
está nos céus.”
Sem dúvida, a responsabilidade não é igual para todos; em relação aos que são
viciados por não conhecerem a virtude ou a doutrina, haverá toda a
condescendência proporcionada; mas aos que o forem a despeito do conhecimento
professado da doutrina, e que deliberadamente se atirem às ocasiões do mal,
serão aplicados todos os rigores da pena, porque Jesus o disse: “Pedir-se-á
muito, a quem muito se houver dado.”
Nas sagradas letras devemos buscar a verdade, não a eloquência.
Deve ser lido todo livro sagrado, com o espírito que o ditou. (Imitação de Cristo, Liv. I cap. V)
A fé é um sentimento inato no coração humano; crer é uma
necessidade, mas a verdadeira crença deve ser estribada na razão, para que a
cegueira não produza o fanatismo.
A fé não é somente luz, é também força; ilumina o caminho da vida, mostra os
tropeços e escolhos que nele se nos antolham, mas a sua ação poderosa arreda
todos os empecilhos; foi o que Jesus nos significou, dizendo: “Eu vos digo
em verdade que se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a esta
montanha: transporta-te daqui para acolá e ela se transportaria, e nada vos
seria impossível.”
A verdadeira fé, pois, é fecunda em obras úteis e cristãs; ao contrário, a
criatura que apenas tiver a fé nos lábios e as aparências da virtude, é
simbolizada pelo Divino Mestre na imagem da figueira seca.
Os meios de sermos úteis não nos faltam, temo-los em quantidade: a vinha do
Senhor precisa de obreiros que a cultivem; jazem imersas no erro inúmeras
criaturas as quais necessitamos levar a luz da verdade e do amor; a caridade
moral e material reclamam os nossos serviços; uns ao romper d’alva lá se
apresentaram para o trabalho; outros começaram-no à roda do dia, e ao cair da
noite obreiros também se apressam em levar à obra o seu retardado recurso.
Nem todos aproveitam bem o tempo; é assim que os operários da última hora às
vezes suplantam e produzem mais que os da primeira. É o que Jesus nos ensina na
parábola dos vinhateiros, quando disse: “os últimos serão os primeiros,
e os primeiros serão os últimos”.
Pelo fruto se conhece a árvore; por isso nos pôs o Cristo em guarda contra os
falsos trabalhadores que, afetando exterioridades piedosas, para melhor imbuir
os incautos, vêm com peles de ovelhas, para ocultar os seus maus sentimentos,
pois são ‘lobos devoradores’. Falsos profetas, cheios de artifícios e usura,
buscam os interesses materiais, pretextando zelo religioso.
O Divino Mestre nos aconselha a guardarmo-nos desses tais, e a perseverarmos na
virtude, para merecermos a recompensa.
Há também falsos profetas do espaço; contra estes nos adverte S. João
Evangelista: “Meus bens amados, não acrediteis em todos os Espíritos, mas
examinai se os Espíritos são de Deus, pois estão espalhados no mundo muitos
falsos profetas.”
Por isso não cessa de nos recomendar o nosso amado mestre Allan Kardec o maior
cuidado no exame das comunicações recebidas.
*
O complemento do homem é a mulher: não basta a grande amizade entre dois
amigos, por mais desinteressada e sincera que seja; a amizade perfeita é a que
se funda no amor do homem e da mulher; por isso disse o Cristo, relembrando a
palavra do Antigo Testamento: “o homem deixará o seu pai e sua mãe e se
unirá a sua mulher, e ambos não farão senão uma só carne” - união que não
deve ser dissolvida ao sabor de caprichos concupiscentes, pois Jesus
prescreveu; “o homem não deve separar o que Deus ajuntou.”
Pode haver situações especiais que imponham a necessidade da separação dos
cônjuges; porém é isto contrário à índole do espírito cristão, ao qual repugna
o recurso do divórcio, que é um remédio amargo. O ideal do matrimônio é a
aperfeiçoamento mútuo dos esposos e a indissolubilidade do vínculo conjugal.
A cômoda e egoística moral do mundo repele naturalmente a moral evangélica; por
isso não é de admirar sejam poucos os que seguem-na. É preciso, para ser
cristão, tomar a cruz, acompanhar Jesus a despeito de considerações da moral
acomodatícia e de oposições da família, pois esta não pode servir de obstáculo
ao nosso progresso moral.
As palavras do Divino Mestre devem ser tomadas segundo o espírito que as ditou;
assim as expressões: “deixai aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos;
não vim trazer a paz mas sim a divisão; ficarão divididos: o pai contra o filho
e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, etc”,
significam muito naturalmente a prioridade da importância dos bens espirituais
sobre os temporais, bem como aplicam-se à rotina da educação beata e às
desinteligência domésticas, criando embaraços e guerreando os membros da
família, nos quais lampejem os surtos da renovação religiosas.
Hoje como outrora, a luz da verdade não se destina a “ficar debaixo do
alqueire”.
Jesus pregou e mandou seus discípulos pregarem as verdades evangélicas.
Assim eles o fizeram. Porém a explicação das parábolas só aos discípulos a deu,
pois não estava amadurecido o espírito da turba para as compreender, e á
revelação espírita prometida foi reservado o encargo de as explicar, o que já
hoje começa a fazer-se.
Pelas condições especiais de preparação do povo judeu, Jesus mandou que
seus discípulos pregassem de preferência a eles que aos gentios. O pequeno povo
de Israel, pela sua crença na unidade de Deus e na vinda do Messias, estava
apto para receber as sementes da revelação cristã; quanto aos pagãos
faltavam-lhes as bases da crença, tudo estava por fazer, e só mais tarde, a luz
evangélica, especialmente por S. Paulo, justamente cognominado - o apóstolo dos
gentios.
Tanto os judeus como os pagãos eram enfermos da alma, e para os doentes
trouxe o bendito médico o remédio do Evangelho.
De posse da verdade cristã, o homem deve ter a coragem das suas opiniões,
afrontando o sarcasmo e o ridículo dos ignorantes e inconscientes, cuja inópia
intelectual é quase sempre encoberta com a audácia.
Não nos envergonhemos de Jesus, para que ele não se envergonhe de nós como nos
advertiu.
As imprecações do ódio, o estrugir da
maldade, a bestialidade da perseguição e a podridão da calúnia não nos poderão
atingir nem devem molestar-nos, antes nos alegrem, porque Jesus no-lo ensinou:
“Rejubilai nesse dia e exultai, porque uma grande recompensa vos está
reservada no céu, pois foi assim que seus pais trataram os profetas.”
Sem dúvida, entregue unicamente à sua energia moral, o homem sucumbiria ao peso
das perseguições implacáveis, das provações, ao demais necessárias; mas a fonte
de toda a força e energia - a prece - nos é apontada como o exclusivo remédio;
por isso disse o Cristo: “Pedi e dar-se vos á; procurai e achareis; batei e
abrir-se vos á; porque aquele que pede, recebe, quem busca, acha, e a quem bate
abrir-se-á.”
Não se fie a criatura na sua providência falha; a Providência a tudo sabe
prover, como no-lo ensina o Divino Mestre na parábola dos pássaros, que não
semeiam nem segam, e no conselho de não possuirmos ouro nem prata, porque: “aquele
que trabalha merece ser nutrido.”
Certo, nada disso significa o dever da inércia, porém que o homem deve confiar
mais na ação providencial do que nos seus recursos materiais.
Outrora, no tempo em que o Evangelho era a norma de viver cristão, a pobreza
era um os característicos dos filhos de Jesus; que hoje os que tais se dizem
vivem no fausto e na riqueza, trazendo ouro e prata e cobrindo-se de pedrarias
nos templos e salões aristocráticos onde impera a vaidade impudente.
Os pretensos sucessores dos apóstolos afirmam que pregam a doutrina apostólica,
ou a doutrina do Cristo.
O viver faustoso dos dignatários da igreja contrasta, entretanto, com a
singeleza primitiva da vida apostólica; é possível no entanto que preguem às
vezes com a palavra algumas doutrinas evangélicas; mas se são sucessores para
gozarem de prerrogativas especiais que a si mesmo se arrogam, deviam também ser
sucessores no dom de curar os enfermos e ‘dar de graça o que de graça
receberam,’ como recomendara o Divino Mestre.
E era de ver o fervor com que os apóstolos curavam os doentes, orando e
impondo-lhes as mãos.
As preces não eram pagas; a retribuição do ato praticado era o bem produzido.
Jesus ao demais anatematizava os traficantes das coisas santas, dizendo: “Acautelai-vos
dos escribas que, afetados, passeiam arrastando compridas túnicas e
gostam de ser cumprimentados nas praças públicas, assim como de ocupar as
primeiras cadeiras nas sinagogas e os primeiros lugares nos festins; que sob
pretexto de longas preces devoram as casas das viúvas. Estes receberão mais
rigorosa condenação.”
É possível, nos redarguam certos católicos, como outrora Inocêncio IV a S.
Tomás de Aquino, que era passado o tempo em que S. Pedro dizia: “não possuo
nem ouro nem prata”; mas nós responder-lhes-emos, como o mesmo filósofo São
Tomás, “que também é passado o tempo em que S. Pedro dizia ao paralítico: “-
Levanta-te e anda!”
Também o templo deixou de ser a casa de orações, porque, no dizer de Jesus, “fizeram
dela um covil de ladrões.”
O tráfico na igreja não é uma novidade; entre outros, já Alexandre IV acusava o
seu antecessor Inocêncio, citado, de “vendilhão de igrejas” e Bossuet,
considerado último santo padre, chamou Eugênio IV de velhaco.
Há também, cumpre dizer a bem da justiça e da verdade, infelizes criaturas que,
à sombra da santa doutrina espírita, especulam com a mediunidade; mas assim
como os papas, bispos e padres velhacos não são cristãos, os especuladores que recebem
dinheiro pelas consultas não são espíritas.
Contra todas as tentações a que estamos sujeitos nos manda Jesus orar; não
espetaculosamente em procissões teatrais e festividades de cunho pagão - como
as católicas, verdadeiras cópias do paganismo - mas em secreto, conosco mesmos,
humilhando-nos ante a majestade divina, perdoando de coração as ofensas
recebidas, e não com o orgulho dos fariseus, tonsurados ou não, que julgam aos
mais “ladrões, injustos e adúlteros publicanos que não jejuam nem ouvem
missas.”
A prece nos é eficaz, pelas boas influências invisíveis que nos atrai; é também
eficaz para aqueles em cuja intenção oramos, pelas benéficas influências que
lhes atraímos, estabelecendo destarte um laço fluídico entre os espíritos
encarnados e desencarnados.
A única prece verdadeira é a do coração. Se existem indivíduos que são pagos
para rezar, tais criaturas e tais orações têm o mesmo valor que os soluços e as
lágrimas das antigas carpideiras assalariadas para acompanhar o enterro de
gente rica.
“Vigiar e orar” eis a ciência, segundo Jesus, para progredirmos ao caminho do
aperfeiçoamento moral.
Termina o Evangelho segundo o Espiritismo, de que temos dado um
breve resumo, com o estudo da prece e particularmente do “Pai Nosso”, e
mais um formulário elucidativo de orações diversas, para os incapazes de
formulá-las de improviso, ou por incapacidade intelectual ou por atribulações e
angústias momentâneas.
Que o leitor separe o joio da doutrina do amado mestre Allan Kardec, na notícia
dessa parte da sua obra.
Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal;
esse tic-tac soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter
um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois
sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte e
a contá-las assim: -Outra de menos... -Outra de menos...
-Outra de menos... -Outra de menos... (Machado de Assis)
No dia 1º de agosto de 1865 o nosso mestre Allan Kardec fez aparecer a
obra O Céu e o Inferno, ou a Justiça divina segundo o
Espiritismo.
As causas do temor da morte são oriundas da incerteza da vida futura. Os povos
primitivos tinham da vida futura simples intuição, mais tarde tornada
esperança, e por fim uma discutível e indefinida certeza, que se manifesta...
pelo apego aos bens materiais.
O pavor da morte provém das tintas carregadas com que a igreja pinta a
eternidade dos tormentos.
Ao Espiritismo coube mostrar a morte como natural e simples transição, não só
mediante a sua filosofia racional, como ainda pelos meios de experimentação
postos ao alcance dos observadores e estudiosos.
“Não mais permissível é a dúvida sobre o futuro; desaparece o temor da morte;
encara-se a sua aproximação a sangue frio, como quem aguarda a libertação pela
porta da vida, que não a do nada”.
*
A crença do céu, como lugar determinado e circunscrito, era compatível com o
estado de atraso do espírito humano.
A ideia de muitos céus superpostos provinha da deficiência de conhecimentos
astronômicos.
Os muçulmanos acreditavam em sete céus; a teologia cristã reconhece três, sendo
o último a morada de Deus. “É conforme a esta crença que se diz que São Paulo
foi alçado ao terceiro céu.”
Sabemos pelos estudos astronômicos que não há alto nem baixo no espaço, que o
céu não está acima das nuvens ou limitado pelas estrelas.
O céu é a felicidade que a criatura traz em si, consoante o seu adiantamento
moral.
Estar no céu é estar no estado de gozo e felicidade espiritual.
Em se tratando do empíreo, são os livros devotos de uma pobreza verdadeiramente
franciscana.
O sermonário celeste, além de pobre e chocho, compõe-se de exclamações
imprecisas, onde os pregadores repetem a miúdo o estribilho estafado: “os olhos
nunca viram, os ouvidos nunca ouviram o que o Senhor reserva aos escolhidos.”
É que a materialidade do espírito não lhe permite alar-se a compreensão dos
gozos espirituais. Dante, que é o inspirador dos sermões dos novíssimos do
homem, revela-se mais fraco em seu poema trata do Paraíso, onde entra guiado
por Beatriz.
O inspirado autor da Imitação de Cristo apenas faz vagas
exclamações no livro III, cap. XLVIII:
“Se amo o céu, no céu penso com facilidade. Se gosto do mundo, minhas faço as
suas alegrias e tristezas.
Se amo a carne, nas coisas da carne logo imagino.
Se prefiro o espírito, deleita-me o pensar nas coisas do espírito.
De tudo que amo me é grato falar e ouvir falar, e sua imagem me acompanha no
meu retiro.”
S. Francisco de Sales, o mais doce dos místicos, sente-se impotente para dar
uma pálida ideia do céu como a entendia.
Diz que há mais proporção entre a luz de uma lâmpada e a do sol, que entre a
deste e a de que gozam os bem-aventurados.
O próprio jesuíta Bourdalone, o pregador da nobreza, confessa a sua impotência
para tratar do céu e do gozo dos eleitos, nas seguintes palavras:
“Mistérios, responde-nos o grande apóstolo, que a nenhum homem na terra é
permitido penetrar. Mistérios, que transcendem tudo quanto o olhar humano tem
visto, tudo que o ouvido do homem tem percebido, tudo que seu espírito tem
compreendido. E como nada de igual a isso tem divisado a vista do homem, nem
suas ouças jamais o experimentaram, nem sua inteligência pode senti-lo, não
será isso mesmo que melhor nos faça conhecer a excelência desse bem-estar,
incompreensível e inefável?”
O trecho pode ser um modelo de clareza, porém, como prova de mais - nada prova.
É realmente curioso, queira-se fazer emigrar para uma região, criaturas às
quais não se dá a menor ideia do que seja a região para onde as despacham,
e cuja excelência é gabada por não ser conhecida e antes ignorada.
Há planetas que, pelo seu estado de adiantamento são relativamente ao planeta
terra, verdadeiros céus. Na nossa ascensão progressiva iremos de céu em céu,
até a ventura suprema, que é o gozo de Deus. Este foi o pensamento de Jesus.
*
Pela inferioridade do seu espírito, foi o homem sempre levado a idear a vida
futura pela imagem da presente. “As penas e recompensas são o reflexo dos
instintos predominantes” por isso fizeram os homens dos gozos e penas futuras
um quadro mais material que espiritual.
Nos climas abrasadores imaginaram um inferno de fogo; nas regiões boreais
imaginaram-no de gelo.
O primoroso clássico padre Manoel Bernardes nos dá uma amostra de como uma alma
pode ser punida por abrasamento ou resfriamento. O caso é passado no
purgatório; como, porém, o fogo aí é uma derivação do fogo do inferno, segundo
o sentir dos santos padres, o exemplo nos serve. É assim uma espécie de pena de
fogo, tirada do encanamento geral do inferno. Ouçamo-lo:
“Uma grande serva de Deus viu no Purgatório penando uma alma sobre um lago de
fogo: estava pendurada e atravessada pelas fontes com uma vara de ferro; e do
alto de uma serra de neve vinha um pé de vento frigidíssimo, que a fazia voltar
sobre aquela vara a modo de sino, quando se vira, ficando depois embalançando-se
com alguns vai-vens, até que vinha outro pé de vento, e lhe dava outra
volta. E disse um anjo àquela serva de Deus que aquele gênero de pena era pelo
atrevimento com que aquela alma esquadrinhava o mistério altíssimo da
Santíssima Trindade, dando-lhe no entendimento muitas voltas, em razão de ser
fria na fé e amor de Deus, com o que viera a cair em alguns erros, suposto que
depois, conhecendo-os, se arrependera, e confessara.[1]”
É engraçado o Padre Bernardes. Dele não nos podemos separar no capítulo
inferno; é abundante em exemplos, e é clássico.
Teremos assim mentiras que a gente lhe perdoa, pela graça com que seu puro
estilo as vestem e burilam.
*
O inferno pagão foi o modelo do inferno cristão, com a diferença da cópia
exagerar o modelo: se os pagãos tinham o tonel de Danaídes, a roda de Íxion e o
rochedo de Sísifo, esses eram no entanto suplícios individuais: “os cristãos,
ao contrário, tem para todos, sem distinção, as caldeiras ferventes cujas
tampas os anjos levantam para verem as contorções dos supliciados!”
O inferno cristão, como o pagão; tem também o seu rei chamado Satã, com a
diferença que Plutão retinha os maus em seu poder conservando-os sempre em seus
domínios infernais; ao passo que o outro manda escoltas pelo mundo recrutar
virtuosos até mesmo nos templos!
É singular: Adão foi expulso do Éden, e um anjo montou guarda à porta, a fim
dele não mais lá entrar; ao passo que Sua Majestade o Diabo não conta com
desgraças, enfia pelos conventos a dentro, penetra nos templos com as devotas e
até nem sequer respeita os cardeais, apesar de ungidos e sagrados!
As mesmas considerações que tiveram os antigos para localizarem o reino da
felicidade além do céu estelar, tiveram-nas para circunscrever o inferno nas
entranhas da terra. Assim são os campos Elísios e o Tártaro dos pagãos; assim
também o céu e o inferno dos cristãos.
É verdade que Jesus falou muitas vezes nos gozos do céu e nos tormentos do
inferno; mas, nos simbolismos de sua linguagem, “limitou-se a falar vagamente
da vida bem-aventurada, dos castigos reservados aos culpados, sem referir-se
jamais nos seus ensinos a castigos e suplícios corporais, que constituíram para
os cristãos um artigo de fé.
Dado o estado de atraso do espírito humano na época messiânica, O Divino Mestre
não podia esclarecer o verdadeiro sentido das suas palavras; além de que
faltavam aos homens as noções científicas para conceber a infinidade do espaço
e o número infinito de mundos.
Encobriu intencionalmente parte de certas verdades, servindo-se ora de imagens
ora de parábolas.
*
Os cantores célebres do inferno pagão são os dois da antiguidade Homero e
Virgílio: Dante na Divina Comédia e Fenelon
no Telêmaco o são do inferno cristão.
Nosso amado mestre Allan Kardec dá um admirável esboço do inferno cristão,
segundo os teólogos, com aquele poder de síntese que o caracteriza. É assim que
nos refere: Santo Agostinho vê no inferno, um verdadeiro lago de enxofre,
vermes e verdadeiras serpentes saciando-se nos corpos, casando suas picadas às
do fogo, que não consome os corpos, antes os conservam como o sal conserva o
corpo das vítimas.
Santa Teresa em sua visão do inferno andou lá por caminhos estreitos, onde
pululavam monstruosos répteis. Abrigada em um nicho experimentou toda a sorte
de angústias, pois não podia sentar-se, deitar-se ou por se em pé, nem sair.
Pela descrição atribuída à santa, vê-se que ao inferno não chegou o
melhoramento das amplas avenidas, pois a mística vidente só palmilhou vielas
lôbregas.
É voz comum entre os padres e entendidos de sacristias e confessionários que o
inferno é calçado de boas intenções e coroas sacerdotais. Não sabemos se o
calçamento será melhor do que o asfalto das nossas ruas; em todo caso, tanto quanto
se possa julgar à distância, afigura-se nos ser melhor do que o das boas
intenções.
Sendo as coroas raspadas e lisas torna-se o passeio mais macio e suave.
Entre os demônios mais importantes que coadjuvam a ação do rei infernal,
conta-se: “Belfegor, o demônio da luxúria; Abadon ou Apolonion, do homicídio;
Belzebu dos desejos impuros, ou senhor das moscas que engendram a corrupção;
Mamon, da avareza; Moloch, Belial, Baalgad, Astarot e muitos outros.”
Mas já é tempo de intercalarmos um trechinho clássico do primoroso estilista
padre Manoel Bernardes; e tem toda a cabida a sua descrição do inferno, isto é,
o cenário onde imperam as individualidades nomeadas: “Lancemos a vista por
aquele caos horribilíssimo, aquele cárcere subterrâneo e profundíssimo, aquela
fornalha toda acesa, e ondeando em labaredas terríveis; imaginemos estar vendo
uma grande cidade toda coberta de escuridade e assombro e juntamente alagada em
fogo, cheia da infeliz multidão de inumerável povo, clamando todos, e fazendo
lastimosos prantos pela veemência da dor e ardor, e como cães raivosos
mordendo-se uns aos outros!”[2]
São em número extraordinário os diabos. No deserto, os cenobitas e ascetas viam
o diabo em tudo. “Alguns deles, os messalios, viviam sempre cuspindo e
escarrando, para expelir os demônios de que se julgavam cheios”.
Referindo-se aos demônios, Olavo Bilac em uma interessante conferência disse o
seguinte: “Quantos diabos há segundo os demonologistas da Idade Média? O número
é infinito... Wier diz que há 44.635.569. Mas Blook diz que esse cálculo é
falso, porque cada homem tem um diabo que o acompanha; assim, deve haver um
bilhão e duzentos milhões de demônios - sem contar os demônios vagabundos, sem
emprego fixo... Um arcebispo de Viena, no século XVI, afirma ter tirado 12.625
diabos do corpo de uma rapariga franzina. Salomão, segundo a Cabala, prendeu um
dia 522.280 num frasquinho de vidro...”
E agora vamos terminar este capítulo com uma revelação importante para os
nossos irmãos espíritas. Em uma obrinha impressa em dois volumes que temos sobre
a nossa mesa de trabalho, à página 85 do primeiro tomo, refere um autor
eclesiástico que os diabos têm culto dos espíritas, e assim diz o Reverendo:
“Esses espíritos têm seus apóstolos de carne e osso, apóstolos que também
gostam de se envolver no mistério. O mais ativo, parece, é Allan Kardec, mas
esse nome de Allan Kardec esconde outro que eu, profano, não conheço.”
Do que não resta dúvida é que os demonologistas, católicos ou não, merecem, e
com justiça se lhes deve conferir, o título de divertidos.
[1] Pão
Partido, vol I págs. 28 e 29.
[2] Livraria
Clássica, Padre Manoel Bernardes, por Antônio Feliciano de
Castillo, vol. II págs. 118.
Nenhum comentário:
Postar um comentário