terça-feira, 6 de agosto de 2019

O mundo psíquico do professor Jung



O Mundo Psíquico do Professor Jung
Da Redação
Reformador (FEB) Agosto 1961

            Ligeira notícia telegráfica, publicada pelo "O Globo" de 7 de Junho próximo passado, fez-nos cientes da desencarnação do Dr. Carl Gustav Jung, famoso psicólogo e psiquiatra suíço e "um dos homens mais cultos da Europa".

            Criador da escola psicológica analítica, foi chefe da Clínica Psiquiátrica da Universidade de Zurique, de 1905 a 1913; professor de Psicologia na Universidade Politécnica Federal, de Zurique, desde 1932; fundador e primeiro presidente (1911) da Sociedade Psicanalítica Internacional; presidente, em 1933, da Sociedade Médica Internacional de Psicoterapia; professor, em 1943, da Universidade de Basel. São numerosas as obras científicas por ele publicadas e traduzidas para várias línguas.

            Homem simples, sereno e não "ortodoxo", o Dr. Jung, ao verificar que a psicanálise freudiana se estagnava na exegese das palavras do mestre vienense, fossilizando-se em seita, com dogmas intocáveis e muitas vezes inacessíveis ao entendimento, rompeu com Freud e abriu um novo rumo para a análise da mente humana, "aprofundando ainda mais a psicologia abismal até abranger as dimensões do espiritual e do cósmico".

            Apesar de jamais ter esposado as concepções espíritas, certamente por falta de melhores e mais amplas observações, procurou, entretanto, dar de certa forma um passo nesse sentido, sendo, principalmente por isto mesmo, criticado e arrolado como um psicólogo-filósofo, de tendências místicas, embora houvesse declarado enfaticamente: "Não me interessam os sistemas filosóficos. Sou um experimentador. Se descubro um fato novo, não hesito em me descartar das mais sedutoras teorias..."

            Eis a noticia necrológica a que nos referimos acima:

            “ZURIQUE, Suíça, 7 (A.P. - O GLOBO) - Em sua vila, em Kuesnacht, faleceu ontem aos 85 anos o notável Prof. Carl Gustav Jung, que foi um dos fundadores da Psiquiatria moderna. O extinto foi, logo no início de sua brilhante carreira, um dos mais íntimos colaboradores de Sigmund Freud. Rompeu, entretanto, mais tarde, com ele, devido à ênfase que a escola freudiana dava ao simbolismo sexual nas ações do ser humano. Jung atuou inicialmente como neurologista, entrando depois pela Psiquiatria e redefinindo muitos de seus conceitos fundamentais. Carl Jung era filho de um pastor e nasceu em Kesswil, às margens do lago de Constança, em 26 de Julho de 1875, demonstrando desde logo enorme precocidade. Aos seis anos já lia com desembaraço livros didáticos em latim. Mais tarde estudou Medicina em Basel, Zurique e Paris, passando a trabalhar na clínica para doenças mentais de Burghoezli, dirigida pelo Prof. Eugen Bleuler, autor de um dos primeiros livros de Psiquiatria moderna. Nomeado chefe de clínica em 1905, Jung atraiu a atenção do mundo médico com seus trabalhos sobre a esquizofrenia e sua introdução aos conceitos da extroversão e introversão. Passou longo tempo na África estudando mitos e símbolos, para aperfeiçoamento de sua teoria de que a alma humana pode transcender do tempo e no espaço."

            Ao ensejo desta notícia, aproveitamos para apresentar aos nossos leitores, em tradução, interessante trabalho estampado na revista londrina "Two Worlds", de Junho do ano em curso, trabalho que levou a epígrafe destas colunas.

            "Embora eu nunca tenha feito qualquer notável pesquisa original neste campo (psíquico), não hesito em declarar que observei uma quantidade suficiente de tais fenômenos, que me convenceram inteiramente de sua realidade." Este é o veredicto dos 85 anos do Prof. Carl Gustav Jung, o psicólogo mais famoso do mundo. É citado na revista "Tomorrow" (publicada pela "Fundação Parapsicológica de Nova Iorque") por Aniela Jaffé, que foi secretária de Jung nos últimos anos e, antes disso, secretária do "Instituto C. G. Jung", de Zurique, fundado em 1948.

            O professor emitiu o juizo acima na Introdução que escreveu para a edição alemã de "The Unobstructed Universe", um dos mais excelentes livros sobre fenômenos psíquicos, baseado em experiências pessoais do seu autor, Stewart Edward White (1). Jung acrescentou que considerava esses fenômenos inexplicáveis. "Se de um lado - escreveu ele - nossas faculdades críticas duvidam de todo caso individual de aspecto espírita, somos, contudo, incapazes de demonstrar um caso sequer da não existência de Espíritos. Devemos, por esse motivo, limitar-nos, a este respeito, a um julgamento de "non liquet!" (2)

            (1) Nota do Tradutor - Conhecido novelista norte-americano, autor de numerosas obras de ficção, desencarnado em 1946.
            "The Betty book" foi a obra com a qual, em 1937, o famoso escritor inaugurava uma série de livros espíritas. Encerra, este primeiro, a narrativa de excursões no mundo espiritual, recebidas por Betty (pseudônimo de Elizabeth Calvert White) entre 1919 e 1936. Fizeram-se muitas edições dessa obra, tendo sido também editada na Inglaterra, em 1945.
            Afora outras sobre o mesmo assunto, é ele ainda autor de: "The Unobstructed Universe", publicada em Nova Iorque, em 1940; "The stars are still there”, N. I., 1946; "With folded wings", N. I., 1947, esta última baseada em comunicações recebidas através da mediunidade de Betty.

             (2) Nota do Tradutor - "Non liquet" quer dizer: não está claro, a coisa oferece dúvidas, não está bem esclarecida, há mister mais informações. Segundo o Dicionário de Antônio Moraes Silva, emprega-se esta frase por eufemismo, em vez de uma observação que poderia parecer descortês.

            Aniela Jaffé lembra um fato pouco conhecido. No começo de 1920, Jung participou de sessões com o Barão von Schrenck-Notzing, o reputado médico e investigador psíquico (3), sendo médium Rudi Schneider. A materialização foi um dos fenômenos que eles testemunharam. Em 1930, Jung assistiu a novas sessões, na presença de outros cientistas.

            (3) Nota do Tradutor – Célebre autor da notável obra "Os Fenômenos Físicos da Mediunidade", originalmente editada em alemão.

            Escreve Aniela Jaffé que "sonhos clarividentes e fatos de precognição sucederam muitas vezes na vida de Jung". A mãe dele era médium. Ela deixou um diário no qual registou aparecimentos de "fantasmas", pressentimentos e outras "ocorrências invulgares", tendo ainda declarado que, quando criança, concorria para proteger, dos fantasmas, o seu pai, cura de uma igreja de Basle. Este escrevia os seus sermões com a filha assentada atrás dele, a fim de que os "fantasmas" não o molestassem.

            A avó de Jung era também clarividente. A família acreditava que este dom se originou quando ainda menina, ela esteve aparentemente morta durante 36 horas. "Seus poderes foram notáveis", diz Aniela Jaffé . "Ela via aparições de pessoas que lhe eram desconhecidas, mas cuja existência histórica ficava provada mais tarde."

            O interesse de Jung pelos assuntos de Espiritismo foi-lhe despertado durante seus primeiros estudos médicos. Um dos seus colegas de turma, Alberto Oeri, num elogio publicado por ocasião do sexagésimo aniversário do professor, disse que Jung mostrara considerável coragem naqueles estudos. Além de fazer experiências no campo mediúnico, o professor realizou extensa pesquisa na literatura espírita. E acrescentou Oeri: "Ele se punha em campo quando a ciência oficial daquele tempo simplesmente negava a existência dos fenômenos ocultos; sem se abalançar a estudá-los ou explicá-los. Tinha certos espiritistas, quais o Prof. Zollner e Sir William Crookes, como heroicos mártires da Ciência."

            Oeri, que mais tarde se tornou membro do Parlamento suíço e editor de um jornal diário, referiu-se às primeiras experiências conduzidas por Jung cerca de sessenta anos atrás, sendo médium uma estudante de 15 anos de idade, sua prima. Ao tempo em que ele estava preparando a análise dos resultados obtidos naquelas sessões, para publicá-los sob o título' - "Sobre a Psicologia e a Patologia dos chamados Fenômenos Ocultos" (4), ocorreram dois desses "fenômenos ocultos" na casa em que morava juntamente com sua mãe viúva e sua irmã. Pesada mesa de nogueira, móvel herdado, rachou com um estrondo. Uma faca de cortar pão, guardada numa gaveta, partiu-se em quatro pedaços, com surdo estalo. Jung e sua mãe achavam-se presentes em ambos as ocasiões. Ele ainda conserva as quatro partes da faca.

            (4) Nota do Tradutor - "Zur psychologie und pathologie sogenannter occulter phänomene" é o nome com que, em 1902, saiu a edição alemã original. Embora divirja do ponto de vista espírita, o Autor, nas conclusões desse ensaio, confessou estar longe de haver chegado a um resultado concludente e cientificamente satisfatório.

            Aniela Jaffé descreve como Jung mudou de pensamento a respeito desses assuntos. Assim é que, numa conferência pronunciada na "Society for Psychical Research", de Londres, em 1919, ele declarava que os fenômenos psíquicos poderiam ser considerados psicologicamente como "projeções dos complexos autônomos inconscientes". (5) A respeito dos fenômenos que ele observou, disse então: “Em tudo isso não posso ver nenhuma prova a favor da existência real de Espíritos." E acrescentava que, "por ora, o domínio desses fenômenos de assombração  faz parte de um capítulo especial da Psicologia".

            (5) Nota do Tradutor - O inconsciente sempre ocupou no sistema psicológico de Jung um posto inteiramente predominante, encerrando, segundo ele, forças infinitamente mais poderosas que as do consciente.
            Colocando ao que chamou inconsciente coletivo ou racial (disposição herdada dos ancestrais) fora das categorias de tempo e espaço, por meio dele procurava explicar o conhecimento que alguém pode ter de ocorrências inacessíveis, em dado momento, pelas vias conscientes habituais. "Assim - dizia o Dr. Jung -, posso saber que um amigo acaba de morrer, a 500 quilômetros daqui, e mesmo do que morreu. Isto se passou comigo não uma, mas diversas vezes. O Dr. Rhine, nos Estados Unidos, tem estudado esses fenômenos parapsicológicos, provando que não podem ser explicados como acaso ou coincidência." (Entrevista concedida a "O Globo" de 4-1-60).
            Quanto a esses fenômenos parapsicológicos ou parapsíquicos da escola de Rhine (percepção extra-sensorial e psicocinesia), o Dr. Jung teceu sobre eles hipóteses explicativas, como a da sincronicidade, hipóteses que vieram enfileirar-se a tantas outras de autores diversos, todas discutíveis e longe de chegarem a um acordo. Sabemos, mesmo, que sobre este assunto, mais especializado, ele escreveu, de parceria com o psicólogo W. Pauli, uma brochura intitulada - "Naturerklärung und Psyché", editada em Zurique, em 1952 (a segunda parte da brochura é um ensaio de Pauli sobre Kepler).

            Quase trinta anos mais tarde, em 1947, ao aparecer sua conferência em nova edição, Jung acrescentou em pé de página uma nota dizendo que "depois de reunir, por 50 anos, experiências psicológicas de muitas pessoas e em muitos países", ele já não se sentia tão certo quanto o esteve em 1919.  Para falar francamente, duvido que uma maneira de encarar (approach) exclusivamente psicológica possa fazer justiça aos fenômenos em questão."

            Aniela Jaffé recorda-se de "um surpreendente fato" que ocorreu quando Jung, em 1920, passou vários fins de semana numa casa assombrada, na Inglaterra. Ele se confessou possuído de certa ansiedade durante as noites em que se processaram tumultuosos fenômenos de assombração, batidas inexplicáveis, odores desagradáveis, ruídos semelhantes ao do roçar da seda e ao de um gotejamento. O clímax foi atingido com a aparição, a cerca de cinquenta centímetros de Jung, sobre um travesseiro, de uma cabeça de mulher, com aparência semi sólida. Um dos olhos parecia estar bem aberto e olhava fixamente para Jung. Quando a cabeça desapareceu, Jung acendeu uma vela e passou o resto da noite numa poltrona. Mais tarde, descobriu que a casa tinha a reputação de assombrada e que mais cedo ou mais tarde os inquilinos eram afugentados.

            As mais recentes observações de Jung estão numa carta que ele escreveu em Maio de 1960, e na qual fornece seu ponto de vista sobre se os fenômenos mediúnicos provam a vida depois da morte:

            A relativa raridade de tais fenômenos sugere, de algum modo, que as formas de existência, dentro e fora do tempo, são tão nitidamente separadas, que a travessia da fronteira existente entre elas oferece as maiores dificuldades. Isto não exclui, em todo caso, a possibilidade de haver uma existência fora do tempo, que corresponde a uma existência dentro do tempo, Sim, nós mesmos podemos existir simultaneamente em ambos os mundos, e só ocasionalmente temos um indício dessas condições. Todavia, o que existe fora do tempo é, em nossa opinião, imutável. Possui eternidade relativa."

            Como vemos, Jung não chegou a uma conclusão clara sobre a imortalidade do Espírito, e o que seja realmente o Espírito, tal como nós o entendemos com Allan Kardec. Difícil, sem dúvida, lhe seria chegar a esse ponto, imbuído que esteve, a vida inteira, de discutíveis e fortemente arraigados conceitos psicológicos. De qualquer forma, ele deu um passo no magno problema, como dissemos inicialmente, assegurando a realidade dos fenômenos espíritas, ditos psíquicos, os quais ainda continuam a ser levianamente negados por muitos homens "superiores".

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