O diagnóstico
Humberto de Campos por Chico Xavier
Reformador (FEB)
Dezembro 1942
Antes da reunião, Tomé Colavida imprimiu a carícia
habitual aos bigodes longos, fisgou a médium D. Eulália com um olhar de
prevenção e dirigiu-se ao orientador dos trabalhos, atenciosamente:
- Senhor Martinho, vejamos o caso do meu diagnóstico.
Iniciados os serviços psicográficos, espero que o receitista me não falte com
os esclarecimentos técnicos, relativamente aos meus males orgânicos. Imagine o
senhor que já visitei diversos agrupamentos sem resultado satisfatório.
- Não obteve definições precisas? - indagou o bondoso
diretor da reunião, demonstrando fraternal interesse.
- Nunca. Frequentemente, recebo mensagens de Acácio,
amorosa entidade que se afirma amigo meu de outras eras; todavia, suas elucidações
me não satisfazem. E vivo desalentado, aflito. Desde muito, permaneço arredio
da medicina. Meu sobrinho Sinfrônio, clinico de renome, aconselhou-me exames
detalhados. Entretanto, perambulei em vão através de laboratórios, por mais de
dois anos e, de alguns meses para cá, vivo interessado no Espiritismo,
procurando porém, inutilmente, a solução de meu caso, pelas salas mediúnicas.
Mas, não terá obtido conselhos, receituário, indicações?
- inquiriu Martinho emocionado.
- Sim - esclareceu o doente - semelhantes recursos não me
têm faltado; contudo, que me vale o roteiro sem nomenclatura? Necessito obter o
diagnóstico de minha verdadeira situação. Creio não andaria bem avisado se
usasse remédios ignorando quais os sofrimentos físicos. Preciso esclarecimentos
exatos, diretrizes francas. Apesar, porém, de minha insistência, os Espíritos nunca
traçaram o diagnóstico desejado. Aconselham-me, atendendo talvez à minha
ansiedade, com a panaceia das boas palavras. Entretanto, isto não serve ao meu temperamento
amigo da verdade.
Martinho sorriu paciente e obtemperou:
- Em todas as coisas, meu amigo, há que considerar os desígnios
providenciais de Deus.
- Mas, não estou contra Deus - objetou o doente, numa
expressão de superioridade. - Se é que os desencarnados veem a nossa máquina
orgânica, externa e internamente, porque semelhante esquivança aos meus pedidos
reiterados? Sabem acima dos médicos, enxergam mais que os raios-X, auscultam
além da epiderme. Donos de tamanhas possibilidades, porque a negação de algumas
palavras, que me aclarem as dúvidas? Medicar-se alguém, sem o conhecimento da
própria situação, constitui grave perigo. Simples receituário não satisfaz ao
homem observador e inteligente.
O orientador da reunião não quis alimentar a palestra e
permaneceu em silêncio, convidando, em seguida, os presentes à oração habitual.
Terminados os trabalhos, a folha de papel em que estava o
nome de Colavida não continha coisa alguma, além de certas indicações para tratamento.
Nada de explicações técnicas, nada de terminologia científica.
- E o diagnóstico? - perguntou o enfermo, desapontado,
fitando a médium, entre a desconfiança e a censura.
- Não recebi qualquer observação, neste sentido -
murmurou D. Eulália, humilde e tímida.
- Ora, ora, Senhor Martinho - disse Tomé ao diretor dos
trabalhos - às vezes, chego a pensar que este movimento de comunicações com o
outro mundo não passa de grosseira mistificação. Peço definições médicas e
respondem-me com apontamentos de alimentação e nomes de tinturas? Onde iremos
com isto?
Depois de mirar D. Eulália, de alto a baixo, com ares de
zombaria, perguntou:
- Quem receita por seu intermédio?
É o Dr. João Crisóstomo de Toledo, que foi antigo médico
nestes sítios.
Tomé riu, sarcástico, e acrescentou:
- Parece que anda desmemoriado e completamente alheio à
medicina. Este Espírito deve ser um espertalhão.
A esta altura, Martinho adiantou-se:
- Mas, senhor Colavida, nesta casa não temos o direito de
insultar benfeitores. Não somente os Espíritos amigos, mas também Dona Eulália
não nos pedem retribuição alguma. Os mentores espirituais, certamente, se
sacrificam
bastante, vindo
até nós, e a médium abandona sagradas obrigações domesticas, por atender aos nossos
apelos. Não desconheço as nossas deficiências e admito que a nossa tarefa
esteja repleta de falhas e erros que a experiência corrigirá mas, seria justo
acusar de embusteiros aos que se devotam ao trabalho, com amor e renunciação?
Tomé percebeu o terreno falso em que se colocara, pediu
desculpas, invocou o famoso subconsciente e rogou fosse admitido à próxima sessão,
recebendo as melhores expressões de fraternidade por parte dos companheiros ali
reunidos.
Na semana seguinte, repetiram-se os mesmos comentários,
com a teimosia renitente de Colavida, a boa vontade de Martinho e a natural timidez
de D. Eulália.
O enfermo estava ansioso. Solicitava pareceres do médico
desencarnado, emitia observações técnicas e, por último, pedia, se possível, o
comparecimento de Acácio, o amigo invisível, para maior esclarecimento da situação.
Findos os trabalhos da noite, verificou-se que João Crisóstomo lançara no papel
as mesmas recomendações anteriores, sem omitir uma vírgula, Nada de nomear a enfermidade
do consulente Acácio, contudo, escrevera-lhe mensagem ponderada e afetuosa.
“Meu irmão - dizia ele, revelando intimidade e carinho,
não aguardes um diagnóstico que nos seria difícil fornecer. Vale-te da cooperação
do amigo espiritual que te ministrou indicações tão úteis e procura pô-las em
prática. Porque impor condições aos que te beneficiem? O grande problema não é
o de receberes uma frase complicada, à guisa de definição, mas sim buscares a
restauração das tuas energias, cheio de boa vontade. O diagnóstico, Tomé, nem sempre
pode ser perfeito e nem sempre se ajusta às finalidades da renovação orgânica.
O corpo do homem é uma usina de forças vivas, cujos movimentos se repetem no
tocante ao conjunto, mas que nunca se reproduzem na esfera dos detalhes.
As dores de cabeça são idênticas nas sensações que proporcionam;
mas, quase sempre desiguais nas origens. Como endereçar-te um diagnóstico exato,
se amanhã sensíveis modificações podem ocorrer em tuas células mais íntimas?
Não te furtes ao benefício, apenas porque não podes impressionar os olhos mortais
com meia dúzia de termos indecifráveis. Trata-te, meu amigo! O tempo é
precioso. Cuida da maquinaria física, aceita a bondade do Eterno Pai, sem
cristalizar o pensamento nas normas secundarias da ciência terrestre. Lembra
que te amamos intensamente e desejamos teu bem-estar”.
Leu Colavida a mensagem afetuosa, volvendo irritadiço:
- Afinal, estou sem compreender coisa alguma. Sinto-me
doente, cansado, peço esclarecimentos que satisfaçam e os invisíveis me dirigem
exortações?!
E, fixando o olhar na médium, rematava:
- Francamente, minha decepção é sem limites.
Martinho, na fé serena que lhe assinalava as atitudes,
ajuntou tranquilo:
- É o que merecemos, meu amigo. Desejávamos receber o
diagnóstico, mas...
- Tomé coçou nervosamente a cabeça e cortou lhe a
palavra:
- Nada de reticências. Presenciamos verdadeiros
fracassos. O que lastimo é o tempo perdido a procurar elucidações, quando me
asseveravam que o Espiritismo é fonte de verdade. Onde a franqueza nestas farsas
em que venho pondo minhas melhores esperanças? Em todos os grupos, apenas
encontrei material incompleto, entre médiuns supostamente humildes e doutrinadores
pretensamente inspirados. Estou farto. Não vim procurar consolações, mas
informes necessários. Estes Espíritos, contudo, devem andar, lá no alto, à
maneira dos asnos cá em baixo. Em toda parte, é dissimulação, ignorância, fanatismo.
Solicito diagnóstico e lançam-me recomendações estranhas a todo conhecimento de
posologia. Abandonarei minha experiência, convencido de que Espiritismo e
mediunidade são duas tolices mundiais.
Os companheiros já se haviam retirado. Apenas Martinho e
D. Eulália permaneciam ali, suportando heroicamente a neurastenia do enfermo
malcriado. Reconhecendo-lhe a irritação, dispunham-se ambos a abandonar o
recinto, em silêncio, quando, ao primeiro gesto de despedida, Tomé procurou retê-los
ansiosamente:
- Por quem são! ajudem-me!... Não desejo sair,
experimentando tamanha impressão de abatimento moral. Quero a verdade, senhor
Martinho. Auxilie-me na consecução deste propósito. A ausência do diagnóstico
desejado acabrunha-me. Sinto que tudo é mentira, em torno de meus passos.
E, depois de fitar a médium, ansiosamente, concluiu:
- D. Eulália, se esses Espíritos que a senhora diz ouvir
e ver são personalidades reais, por que razão me negam a verdade? Agora que estamos
a sós, atendam-me por amor de Deus. Peçamos diretamente aos invisíveis que se
manifestem e me esclareçam.
Havia tamanha emoção naquelas palavras, que Martinho e a
médium se entreolharam penalizados. À interpelação silenciosa do diretor das sessões,
a nobre senhora respondeu bondosamente:
- Estou pronta.
Sentaram-se os três. O orientador orou com lágrimas,
invocando a Providência Divina. Foi então que o amigo espiritual, por intermédio
de D. Eulália, falou em voz triste, mas
firme:
- Tomé, em vão temos procurado auxiliar-te na cura.
Atende ao teu caso orgânico, enquanto é oportuno, porque teu corpo está dominado
pela morfeia nervosa. (“pele dura”. ... A
morféia é, de fato, uma variante da esclerodermia localizada.)
Colavida fez-se pálido e esforçou-se por não cair, ali
mesmo, fulminado pelo diagnóstico doloroso.
Disseram-se as preces, sob forte emoção.
No dia imediato, o doente, atormentado, procurou
gabinetes de pesquisas e especialistas em moléstias do sangue, obtendo a
confirmação amarga. À noite insistiu para que Martinho e D. Eulália se
reunissem na sua companhia. Estava desfigurado, em pranto. Terminada a prece do
diretor da reduzida assembleia, o enfermo exclamou soluçando:
- Oh! benfeitores invisíveis, por quem sois, auxiliai-me
o destino cruel! que surpresa dolorosa a que me preparastes, dando-me conhecimento
da realidade terrível!..
Mas, nesse instante, a generosa entidade de Acácio tomou
o punho da médium e escreveu:
- Conforma-te, meu querido Tomé! Não querias a verdade
completa, o diagnóstico aproximado de tua situação orgânica? Não chores. Lembra-te
de que Jesus é o Divino Medico e não esqueças que, se tens agora a lepra do
mundo não estás esquecido pela bondade de Deus.
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