sexta-feira, 26 de julho de 2019

Os Mortos



Os Mortos
por Abílio de Carvalho
Reformador (FEB) Janeiro 1951

A vida é o estado de atividade da substância organizada e a morte, disse Metchnikof, “a cessação definitiva de todos os fenômenos da vida, em cada uma das células do organismo".

A morte, chamada por Lucrécio a importuna, despertou nos homens a ideia religiosa de uma outra existência.

Desde a mais alta antiguidade, acreditou-se que o morto não estava ali, na cova, mas tinha descido ao inferno ou subido ao céu.

Todas as crenças celebram o culto dos mortos. A vida do espírito é eterna.

Somente os materialistas pensam que ela acaba no fim desta jornada.

Para os espiritualistas a morte é apenas “uma passagem escura, entre uma luz efêmera e outra luz que não morre”.

Nenhum ser vivo foge a esta fatalidade.

Um filósofo grego, ao ser condenado à morte por ter dito que o Sol era maior do que o Peloponeso voltou-se para os juízes e lhes disse: “Esta sentença há muito foi proferida pela natureza contra mim e contra vós".

“O vocábulo genérico morte diz precisamente: cessação da vida e aplica-se, sem distinção de nenhum gênero ou classe, a todos os seres animados e aos em que consideramos vida. Morre o rei, morre o sapateiro, morre o cavalo, morre o anoso carvalho. Passamento e trânsito dão uma ideia de imortalidade e representam a alma saindo do envoltório mortal e passando à melhor vida.

Falecimento exprime o ato de fazer falta, acabando; não tem a particularidade de passamento e trânsito, mas só se aplica, como eles, unicamente, ao homem.

Morte aplica-se a velhos e moços; falecimento, diz-se, com mais propriedade, dos velhos.

Passamento representa particularmente as agonias e desmaios mortais que experimenta o corpo, quando a alma dele se separa na hora da morte. Trânsito é termo consagrado para designar a morte suave dos justos; por isso se diz o trânsito dos pios, o trânsito da S. S. Virgem. Morte admite a ideia de violência, de afronta; passamento, trânsito e falecimento só indicam um efeito natural.” (Eduardo de Faria - – Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª edição, Lisboa, 1852).

Documentos antigos usaram a expressão – faleceu nesta vida. A noiva de um dos degradados que Cabral aqui deixou, disse o cronista, recolheu-se a um convento e mais tarde esmoreceu em três dias, rezando e acabando.  

A morte e os mortos foram sempre objetos de lendas, poesias, artes e homenagens.

‘Asa, rei de Israel, teve uma veementíssima dor nos pés. Não recorreu ao Senhor porque tinha posto sua confiança na ciência dos Medas.

“Adormeceu com seus pais e foi colocado no sepulcro que tinha mandado fazer para si, na cidade de David, e o puseram sobre o seu leito cheio de aromas e de unguentos meretrícios, que tinham sido compostos pela arte dos perfumadores e os queimaram sobre ele, com extraordinária pompa," (Paralipômenos, cap.16, vrs. 14).

A suposição de que o morto está dentro da cova levou os vivos à criação de túmulos artísticos. Artemísia, viúva do rei Mausalo, da Caria, mandou erigir em Halicarnasso um monumento riquíssimo que passou a ser uma das maravilhas do mundo. Daí a palavra mausoléu.

Os faraós do Egito eram enterrados com muitas riquezas e em Roma o túmulo do imperador Adriano é hoje o Castelo de Santo Ângelo.

No Hamlet, disse o príncipe histérico que é a morte o misterioso país, de cujas raias nenhum viajante ainda voltou.

Dante narrou o destino das almas, depois da morte, nessa obra extraordinária que é uma das produções mais sublimes que tem criado o espírito humano.

A dança macabra era uma roda infernal dançada por mortos de todas aa condições e idades, reis e vassalos, ricos e pobres, moços e velhos. Esta alegoria figurava a fatalidade que condena todos os homens à morte.

A crença em Deus é universal, mas, não obstante, há teófobos que têm horror à divindade. Eles serão infelizes.

O homem sempre se inclinou para o miraculoso e para o místico e disto vem todo o sentimento religioso.

Como simples curiosidade, daremos aqui a opinião de um homem que, de acordo com a sua doutrina, tinha como certo o conhecimento de Deus, revelado pela natureza e a elevação do espírito até à união com a divindade.

Na Ciência dos Sacramentos, disse Carlos Leadbeater que “a morte não é mais um mistério". O mundo além do túmulo existe sob as mesmas leis naturais, como aquele que nós conhecemos.

Ele tem sido explorado e examinado com exatidão científica. Qualquer um objetará talvez que isto não é senão uma asserção, mas nós lhe perguntaremos sobre que fundamentos repousa a sua crença atual, qualquer que ela seja?

Essas coisas que nos tocam de tão perto e tão profundamente são muito importantes para ser subordinadas a simples suposições ou a uma vaga crença; elas pedem a certeza de investigações e tabulações científicas.

Estas têm sido feitas. Nós temos ouvido dizer vagamente que o homem possui alguma coisa de imortal, chamada alma, que sobrevive à morte do corpo. O corpo não é o homem; é apenas a vestimenta do homem. O que chamamos morte não é senão o abandono dessa vestimenta usada. Nós não perdemos nossos amigos mortos; perdemos de vista a vestimenta sob a qual tínhamos o costume de vê-los.

A vestimenta desapareceu, mas não aquele que trajava. Nós somos seres imortais porque somos de essência divina. Vivemos muitas vezes ante de ter vestido essa roupa a que chamamos corpo e viveremos ainda outras vezes depois que esses corpos tenham desfeito em pó. Isto não é uma suposição ou uma crença piedosa: é um fato científico definido, que se pode provar a quem queira dar-se ao trabalho de consultar a literatura a respeito. O que os homens pensam ser sua vida não é, em verdade, senão um dia unicamente de sua existência real, como alma.

Nós temos um corpo físico e visível e um corpo oculto chamado por S. Paulo corpo espiritual.

Muitas teorias tem tido curso relativo à vida depois da morte, baseadas em concepções errôneas das antigas Escrituras O horrível dogma das penas eternas era quase universalmente admitido: hoje só os ignorantes podem aceitá-lo. Este dogma era baseado num erro de tradução de certas palavras atribuídas ao Cristo e os frades da Idade o conservaram como motivo de terror para impressionar as massas ignorantes. Tal dogma não era unicamente blasfemo mas ainda ridículo.

As pessoas que compreendem que Deus é amor e que seu Universo governado por sábias leis eternas, começaram a crer que essas leis devem ser obedecidas no mundo de além, tanto quanto neste.

Os tempos cegos da fé estão passados: estamos numa era de conhecimentos científicos e não podemos aceitar ideias que não se apoiam sobre a razão e o bom senso. Não há nenhum motivo para não se empregarem métodos científicos para elucidar problemas que outrora foram deixados inteiramente à religião; tais métodos têm realmente sido aplicados pela Sociedade de Pesquisas Psíquicas, pela Sociedade Teosófica e por investigadores individuais, entre os quais encontramos homens de ciência, bem conhecidos. Querer ignorar o resultado de tais investigações será loucura, pois ainda que certos pesquisadores tenham ido mais longe que outros, há muitos fatos gerais, sobre os quais todos estão de acordo. Nós mesmo participamos desses trabalhos.

Somo espíritos e vivemos num mundo material, mundo que parcialmente conhecemos. Todas as informações que recebemos nos chegam por intermédio dos nossos sentidos, mas esses sentidos são imperfeitos. Vemos os objetos sólidos; podemos ver habitualmente os líquidos, a menos que não sejam perfeitamente claros, mas na maioria dos casos os gases são invisíveis para nós. As pesquisas demonstram que existem outros estados da matéria muito mais sutis que os mais raros gases, mas nossos sentidos físicos não podem percebê-los. Todavia podemos entrar em contato com eles por meio desse corpo espiritual, ao qual fizemos alusão, pois ele tem os seus os seus sentidos inteiramente como o nosso corpo físico. Nosso mundo é mais maravilhoso do que poderíamos supor. Embora os homens tenham vivido milhares de anos, o maior número deles ficou inteiramente desconhecedor da mais alta e mais bela parte da vida.

A morte não é o fim da vida, mas unicamente a passagem de um período da vida.

O corpo físico serve ao espírito de meio de comunicação com o mundo físico. Sem esse corpo como instrumento seríamos incapazes de comunicação com esse mundo, de penetrar nele e recebermos impressões.  

O corpo espiritual serve exatamente ao mesmo fim: age como intermediário para o espírito no mundo espiritual. Esse mundo espiritual não é algo de vago, longínquo, inacessível: é simplesmente uma esfera mais alta do mundo que nós habitamos agora.

Os processos da Natureza são admiráveis. Há numerosas e Importantes variações nessa vida espiritual, que é quase sempre mais feliz que a vida terrestre. O defunto não salta, repentinamente num céu impossível nem cai num inferno ainda mais impossível. Não existe inferno, senão o que o homem criou para si próprio.

A morte não traz nenhuma mudança no homem; ele não se torna subitamente um grande santo ou um anjo, não passa a possuir a sabedoria dos séculos. A única diferença reside no fato de ele ter perdido seu corpo físico, na libertação absoluta das possibilidades da dor ou da fadiga; libertação também de todos os deveres penosos, liberdade inteira de de fazer exatamente o que quiser.

Nesse mundo espiritual, a beleza é oferecida a todos os seus habitantes. Nessa matéria rarefeita, no corpo espiritual, o homem pode mover-se segundo a sua vontade Se ama as belas paisagens da floresta, do mar e do céu, pode visitar à vontade os mais belos cantos da Terra; se ama as belas artes pode passar o tempo na contemplação das obras-primas de todos os grandes homens; se é músico pode
Ir às principais orquestras do mundo ou passar seu tempo a ouvir os mais célebres artistas, se os seus atos na vida terrena lhe granjearam esses direitos.

Todos os homens normais e honestos são infinitamente mais felizes depois da morte, que antes, pois tem todo o tempo necessário não somente para gozar mas ainda para progredir realmente de maneira satisfatória, nas coisas que mais os interessam.

Não há então nesse mundo quem seja infeliz?

- A vida lá é necessariamente uma consequência desta e o homem é de toda a forma o mesmo que era antes de deixar seu corpo. Se os seus prazeres neste mundo eram baixos e grosseiros, ele se achará incapaz, no outro, de satisfazer os seus desejos. Um ébrio sofrerá uma sede inextinguível, não tendo mais um corpo para apaziguá-la; o glutão recordará os prazeres da mesa; o avarento não encontrará mais o ouro em que mergulhe as mãos. O homem que sucumbiu durante a sua vida terrestre a indignas paixões, tê-las-á sempre devorando suas entranhas. O sensual fremirá de desejos insatisfatórios; o ciumento será sempre torturado pelo seu ciúme e tanto mais quando não pode intervir junto ao objeto da sua paixão.

Tais personagens sofrem indubitavelmente, mas aqueles somente, cujos pendores e paixões foram grosseiros na sua natureza. Eles devem refrear suas
Inclinações e serão imediatamente libertados dos sofrimentos que tais desejos arrastam consigo. O castigo não existe; não há senão o efeito natural de uma causa definida.

Há um segundo modo e mais alto degrau da vida depois da morte, o que corresponde muito de perto a uma concepção racional do céu. Esse plano só é  
atingido quando todos os desejos baixos ou egoísticos desaparecerem totalmente, pois o homem passa a um condição de êxtase religioso ou de alta atividade intelectual, segundo a sua natureza e a energia despendida pela sua vocação durante a vida terrena. Poder-se-ia inquirir se essa boa atitude dura eternamente.
           
- Não, pois ela é o resultado da vida terrestre e uma causa finita não pode produzir um resultado infinito.

Toda a vida evolui; a evolução é a lei de Deus.

O que se chama vida não é senão um dia da verdadeira e mais longa vida. 

Para muitos, esses ensinamentos parecerão novidades ou estranhos ou grotescos, mas podem ser provados e tem sido verificados muitas vezes.

            A dor pela morte dos nossos parentes, embora humana, é um erro e um mal, que nós devemos vencer.

Não há motivo de sofrer por eles, que passaram para uma vida muito mais ampla e feliz.

Choramos por uma ilusão, pois na verdade não estamos separados deles. Um atitude de luta é uma atitude desleal, devido à ignorância. Se o choramos, se cedemos à tristeza e ao abatimento, projetamos fora de nós mesmos uma espessa nuvem que tolda sua felicidade. Quanto mais tivermos conhecimentos, mais teremos confiança, pois sentiremos que nossos mortos e nós estamos igualmente entre as mãos da potência perfeita, da sabedoria perfeita, dirigidas pelo perfeito amor.”

A Crença procede das verdades reveladas, o que constituí a fé.

O autor afirma ter encontrado motivos evidentes no campo da investigação.

 A fé constitui a atmosfera moral em que vivemos. Disse Bordaloue que os homens nunca serão inteiramente infelizes se tiverem fé, esperança e caridade.

Na Oração aos Moços (1921), há um trecho de Rui Barbosa, que faz pensar no que estaria no seu íntimo, quanto às relações entre esses dois mundos.

Ei-Io:

“A maior de quantas distâncias logre a imaginação conceber, é a da morte; e nem esta separa entre si os que a terrível afastadora de homens arrebatou aos braços uns dos outros. Quantas vezes não entrevemos, nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma imagem cara? Quantas vezes não a vemos assomar nos longes da saudade, sorridente, ou melancólica, alvoroçada, ou inquieta, severa, ou carinhosa, trazendo-nos o bálsamo, ou o conselho, a promessa, ou o desengano, a recompensa, ou o castigo, o aviso da fatalidade, ou os presságios de bom agouro? Quantas nos não vem conversar, afável e tranquila, ou pressurosa e sobressaltada, com o afago das mãos, a doçura na boca, a meiguice no semblante, o pensamento na fronte, límpida ou carregada, e lhe saímos do contato, ora seguros e robustecidos, ora transidos de cuidado e pesadume, ora cheios de novas inspirações e clamando, para a vida, novos rumos? Quantas outras, não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de além-túmulo e com eles renovar a prática interrompida ou instar com ele por um alvitre, em vão buscando uma palavra, um movimento do rosto, um gesto, uma réstea de luz, um traço do que por lá se sabe e aqui se ignora?”
Ext. do ‘Jornal do Comércio' de 22-10-1950





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