Os Mortos
por Abílio de Carvalho
Reformador (FEB) Janeiro 1951
A vida
é o estado de atividade da substância organizada e a morte, disse Metchnikof, “a cessação definitiva de todos os fenômenos
da vida, em cada uma das células do organismo".
A
morte, chamada por Lucrécio a importuna,
despertou nos homens a ideia religiosa de uma outra existência.
Desde
a mais alta antiguidade, acreditou-se que o morto não estava ali, na cova, mas
tinha descido ao inferno ou subido ao céu.
Todas as
crenças celebram o culto dos mortos. A vida do espírito é eterna.
Somente
os materialistas pensam que ela acaba no fim desta jornada.
Para
os espiritualistas a morte é apenas “uma passagem
escura, entre uma luz efêmera e outra luz que não morre”.
Nenhum
ser vivo foge a esta fatalidade.
Um filósofo
grego, ao ser condenado à morte por ter dito que o Sol era maior do que o
Peloponeso voltou-se para os juízes e lhes disse: “Esta sentença há muito foi proferida pela natureza contra mim e contra
vós".
“O vocábulo
genérico morte diz precisamente: cessação
da vida e aplica-se, sem distinção de nenhum gênero ou classe, a todos os seres
animados e aos em que consideramos vida. Morre o rei, morre o sapateiro, morre
o cavalo, morre o anoso carvalho. Passamento
e trânsito dão uma ideia de imortalidade
e representam a alma saindo do envoltório mortal e passando à melhor vida.
Falecimento
exprime o ato de fazer falta, acabando; não tem a particularidade de passamento e trânsito, mas só se aplica, como eles, unicamente, ao homem.
Morte aplica-se
a velhos e moços; falecimento, diz-se,
com mais propriedade, dos velhos.
Passamento
representa particularmente as agonias e desmaios mortais que experimenta o
corpo, quando a alma dele se separa na hora da morte. Trânsito é termo
consagrado para designar a morte suave dos justos; por isso se diz o trânsito dos pios, o trânsito da S. S.
Virgem. Morte admite a ideia de
violência, de afronta; passamento, trânsito e falecimento só indicam um efeito natural.” (Eduardo de Faria - – Novo
Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª edição, Lisboa, 1852).
Documentos
antigos usaram a expressão – faleceu nesta
vida. A noiva de um dos degradados que Cabral aqui deixou, disse o
cronista, recolheu-se a um convento e mais tarde
esmoreceu em três dias, rezando e acabando.
A
morte e os mortos foram sempre objetos de lendas, poesias, artes e homenagens.
‘Asa,
rei de Israel, teve uma veementíssima dor nos pés. Não recorreu ao Senhor
porque tinha posto sua confiança na ciência dos Medas.
“Adormeceu
com seus pais e foi colocado no sepulcro que tinha mandado fazer para si, na
cidade de David, e o puseram sobre o seu leito cheio de aromas e de unguentos
meretrícios, que tinham sido compostos pela arte dos perfumadores e os queimaram
sobre ele, com extraordinária pompa," (Paralipômenos, cap.16, vrs. 14).
A
suposição de que o morto está dentro da cova levou os vivos à criação de túmulos
artísticos. Artemísia, viúva do rei Mausalo, da Caria, mandou erigir em Halicarnasso
um monumento riquíssimo que passou a ser uma das maravilhas do mundo. Daí a
palavra mausoléu.
Os
faraós do Egito eram enterrados com muitas riquezas e em Roma o túmulo do
imperador Adriano é hoje o Castelo de Santo Ângelo.
No Hamlet, disse o príncipe histérico que é
a morte o misterioso país, de cujas raias nenhum viajante ainda voltou.
Dante
narrou o destino das almas, depois da morte, nessa obra extraordinária que é
uma das produções mais sublimes que tem criado o espírito humano.
A dança macabra era uma roda infernal
dançada por mortos de todas aa condições e idades, reis e vassalos, ricos e
pobres, moços e velhos. Esta alegoria figurava a fatalidade que condena todos
os homens à morte.
A crença
em Deus é universal, mas, não obstante, há teófobos que têm horror à divindade.
Eles serão infelizes.
O
homem sempre se inclinou para o miraculoso e para o místico e disto vem todo o
sentimento religioso.
Como
simples curiosidade, daremos aqui a opinião de um homem que, de acordo com a
sua doutrina, tinha como certo o conhecimento de Deus, revelado pela natureza e
a elevação do espírito até à união com a divindade.
Na Ciência dos Sacramentos, disse Carlos
Leadbeater que “a morte não é mais um mistério". O mundo além do túmulo existe
sob as mesmas leis naturais, como aquele que nós conhecemos.
Ele
tem sido explorado e examinado com exatidão científica. Qualquer um objetará
talvez que isto não é senão uma asserção, mas nós lhe perguntaremos sobre que
fundamentos repousa a sua crença atual, qualquer que ela seja?
Essas
coisas que nos tocam de tão perto e tão profundamente são muito importantes
para ser subordinadas a simples suposições ou a uma vaga crença; elas pedem a
certeza de investigações e tabulações científicas.
Estas
têm sido feitas. Nós temos ouvido dizer vagamente que o homem possui alguma
coisa de imortal, chamada alma, que sobrevive à morte do corpo. O corpo não é o
homem; é apenas a vestimenta do homem. O que chamamos morte não é senão o
abandono dessa vestimenta usada. Nós não perdemos nossos amigos mortos; perdemos de vista a vestimenta
sob a qual tínhamos o costume de vê-los.
A vestimenta
desapareceu, mas não aquele que trajava. Nós somos seres imortais porque somos de
essência divina. Vivemos muitas vezes ante de ter vestido essa roupa a que chamamos
corpo e viveremos ainda outras vezes depois que esses corpos tenham desfeito em
pó. Isto não é uma suposição ou uma crença piedosa: é um fato científico definido,
que se pode provar a quem queira dar-se ao trabalho de consultar a literatura a
respeito. O que os homens pensam ser sua vida não é, em verdade, senão um dia unicamente
de sua existência real, como alma.
Nós
temos um corpo físico e visível e um corpo oculto chamado por S. Paulo corpo
espiritual.
Muitas
teorias tem tido curso relativo à vida depois da morte, baseadas em concepções
errôneas das antigas Escrituras O horrível dogma das penas eternas era quase universalmente
admitido: hoje só os ignorantes podem aceitá-lo. Este dogma era baseado num
erro de tradução de certas palavras atribuídas ao Cristo e os frades da Idade o
conservaram como motivo de terror para impressionar as massas ignorantes. Tal
dogma não era unicamente blasfemo mas ainda ridículo.
As pessoas
que compreendem que Deus é amor e que seu Universo governado por sábias leis
eternas, começaram a crer que essas leis devem ser obedecidas no mundo de além,
tanto quanto neste.
Os
tempos cegos da fé estão passados: estamos numa era de conhecimentos científicos
e não podemos aceitar ideias que não se apoiam sobre a razão e o bom senso. Não
há nenhum motivo para não se empregarem métodos científicos para elucidar
problemas que outrora foram deixados inteiramente à religião; tais métodos têm
realmente sido aplicados pela Sociedade de Pesquisas Psíquicas, pela Sociedade
Teosófica e por investigadores individuais, entre os quais encontramos homens
de ciência, bem conhecidos. Querer ignorar o resultado de tais investigações será
loucura, pois ainda que certos pesquisadores tenham ido mais longe que outros,
há muitos fatos gerais, sobre os quais todos estão de acordo. Nós mesmo
participamos desses trabalhos.
Somo
espíritos e vivemos num mundo material, mundo que parcialmente conhecemos.
Todas as informações que recebemos nos chegam por intermédio dos nossos
sentidos, mas esses sentidos são imperfeitos. Vemos os objetos sólidos; podemos
ver habitualmente os líquidos, a menos que não sejam perfeitamente claros, mas
na maioria dos casos os gases são invisíveis para nós. As pesquisas demonstram que
existem outros estados da matéria muito mais sutis que os mais raros gases, mas
nossos sentidos físicos não podem percebê-los. Todavia podemos entrar em
contato com eles por meio desse corpo espiritual, ao qual fizemos alusão, pois
ele tem os seus os seus sentidos inteiramente como o nosso corpo físico. Nosso
mundo é mais maravilhoso do que poderíamos supor. Embora os homens tenham
vivido milhares de anos, o maior número deles ficou inteiramente desconhecedor
da mais alta e mais bela parte da vida.
A
morte não é o fim da vida, mas unicamente a passagem de um período da vida.
O
corpo físico serve ao espírito de meio de comunicação com o mundo físico. Sem
esse corpo como instrumento seríamos incapazes de comunicação com esse mundo,
de penetrar nele e recebermos impressões.
O
corpo espiritual serve exatamente ao mesmo fim: age como intermediário para o
espírito no mundo espiritual. Esse mundo espiritual não é algo de vago,
longínquo, inacessível: é simplesmente uma esfera mais alta do mundo que nós
habitamos agora.
Os
processos da Natureza são admiráveis. Há numerosas e Importantes variações
nessa vida espiritual, que é quase sempre mais feliz que a vida terrestre. O
defunto não salta, repentinamente num céu impossível nem cai num inferno ainda
mais impossível. Não existe inferno, senão o que o homem criou para si próprio.
A
morte não traz nenhuma mudança no homem; ele não se torna subitamente um grande
santo ou um anjo, não passa a possuir a sabedoria dos séculos. A única diferença
reside no fato de ele ter perdido seu corpo físico, na libertação absoluta das
possibilidades da dor ou da fadiga; libertação também de todos os deveres
penosos, liberdade inteira de de fazer exatamente o que quiser.
Nesse
mundo espiritual, a beleza é oferecida a todos os seus habitantes. Nessa
matéria rarefeita, no corpo espiritual, o homem pode mover-se segundo a sua
vontade Se ama as belas paisagens da floresta, do mar e do céu, pode visitar à
vontade os mais belos cantos da Terra; se ama as belas artes pode passar o
tempo na contemplação das obras-primas de todos os grandes homens; se é músico
pode
Ir às principais orquestras do mundo ou
passar seu tempo a ouvir os mais célebres artistas, se os seus atos na vida
terrena lhe granjearam esses direitos.
Todos
os homens normais e honestos são infinitamente mais felizes depois da morte,
que antes, pois tem todo o tempo necessário não somente para gozar mas ainda
para progredir realmente de maneira satisfatória, nas coisas que mais os interessam.
Não há
então nesse mundo quem seja infeliz?
- A
vida lá é necessariamente uma consequência desta e o homem é de toda a forma o
mesmo que era antes de deixar seu corpo. Se os seus prazeres neste mundo eram
baixos e grosseiros, ele se achará incapaz, no outro, de satisfazer os seus
desejos. Um ébrio sofrerá uma sede inextinguível, não tendo mais um corpo para
apaziguá-la; o glutão recordará os prazeres da mesa; o avarento não encontrará
mais o ouro em que mergulhe as mãos. O homem que sucumbiu durante a sua vida
terrestre a indignas paixões, tê-las-á sempre devorando suas entranhas. O sensual fremirá de desejos
insatisfatórios; o ciumento será sempre torturado pelo seu ciúme e tanto mais
quando não pode intervir junto ao objeto da sua paixão.
Tais
personagens sofrem indubitavelmente, mas aqueles somente, cujos pendores e paixões
foram grosseiros na sua natureza. Eles devem refrear suas
Inclinações e serão imediatamente libertados
dos sofrimentos que tais desejos arrastam consigo. O castigo não existe; não há
senão o efeito natural de uma causa definida.
Há um
segundo modo e mais alto degrau da vida depois da morte, o que corresponde
muito de perto a uma concepção racional do céu. Esse plano só é
atingido quando todos os desejos baixos
ou egoísticos desaparecerem totalmente, pois o homem passa a um condição de
êxtase religioso ou de alta atividade intelectual, segundo a sua natureza e a
energia despendida pela sua vocação durante a vida terrena. Poder-se-ia inquirir
se essa boa atitude dura eternamente.
- Não,
pois ela é o resultado da vida terrestre e uma causa finita não pode produzir
um resultado infinito.
Toda a
vida evolui; a evolução é a lei de Deus.
O que
se chama vida não é senão um dia da verdadeira e mais longa vida.
Para
muitos, esses ensinamentos parecerão novidades ou estranhos ou grotescos, mas
podem ser provados e tem sido verificados muitas vezes.
A
dor pela morte dos nossos parentes, embora humana, é um erro e um mal, que nós
devemos vencer.
Não há
motivo de sofrer por eles, que passaram para uma vida muito mais ampla e feliz.
Choramos
por uma ilusão, pois na verdade não estamos separados deles. Um atitude de luta
é uma atitude desleal, devido à ignorância. Se o choramos, se cedemos à
tristeza e ao abatimento, projetamos fora de nós mesmos uma espessa nuvem que
tolda sua felicidade. Quanto mais tivermos conhecimentos, mais teremos
confiança, pois sentiremos que nossos mortos e nós estamos igualmente entre as mãos da potência perfeita, da
sabedoria perfeita, dirigidas pelo perfeito amor.”
A Crença
procede das verdades reveladas, o que constituí a fé.
O
autor afirma ter encontrado motivos evidentes no campo da investigação.
Na Oração aos Moços (1921), há um trecho de
Rui Barbosa, que faz pensar no que estaria no seu íntimo, quanto às relações
entre esses dois mundos.
Ei-Io:
“A maior de quantas distâncias logre a imaginação
conceber, é a da morte; e nem esta separa entre si os que a terrível afastadora
de homens arrebatou aos braços uns dos outros. Quantas vezes não entrevemos,
nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma imagem cara? Quantas vezes não a vemos
assomar nos longes da saudade, sorridente, ou melancólica, alvoroçada, ou
inquieta, severa, ou carinhosa, trazendo-nos o bálsamo, ou o conselho, a promessa,
ou o desengano, a recompensa, ou o castigo, o aviso da fatalidade, ou os presságios
de bom agouro? Quantas nos não vem conversar, afável e tranquila, ou pressurosa
e sobressaltada, com o afago das mãos, a doçura na boca, a meiguice no
semblante, o pensamento na fronte, límpida ou carregada, e lhe saímos do
contato, ora seguros e robustecidos, ora transidos de cuidado e pesadume, ora
cheios de novas inspirações e clamando, para a vida, novos rumos? Quantas
outras, não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de
além-túmulo e com eles renovar a prática interrompida ou instar com ele por um
alvitre, em vão buscando uma palavra, um movimento do rosto, um gesto, uma
réstea de luz, um traço do que por lá se sabe e aqui se ignora?”
Ext. do ‘Jornal do
Comércio' de 22-10-1950
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