O Fantasma
Azul
José Brígido
(Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Fevereiro 1958
Ele costumava aparecer por volta das
onze horas da noite na pequena praça, que defrontava secular igreja em ruínas,
de velho bairro suburbano. Surgia sempre de vaporoso e elegante vestido azul-celeste.
Depois de atravessar o átrio do velho templo, desaparecia por detrás dele.
Havia sido vista pela última vez, ali mesmo, em 1920. Trinta anos depois,
reaparecera no mesmo lugar, completando a paisagem rústica da rua antiga, que o
dobrar dos anos não fizera sentir ainda os efeitos do progresso. Lá estava, a
vetusta igreja, cada vez mais ofendida pela ação destruidora do tempo. Pelas
brechas abertas assomavam ervas, que também serviam de couto (refúgio) à rataria. O reaparecimento da formosa
dama de azul marcou um acontecimento culminante na via de Pedro Miragaia. Ele
morava a poucos metros do templo e há quarenta anos atrás a vira de muito
perto. Ao recordar o episódio,
seus olhos se umedeceram. Mas, porquê? Será possível que ele sentisse saudade
de um fantasma?
*
- Que é isso, "seu" Pedro?
O senhor não está passando bem? - perguntou Raimundo, seu
afilhado, que lhe fazia companhia.
- Não, não, rapaz... Coisas de velho...
Coisas de quem já anseia pela partida deste mundo...
- Xi, padrinho, o senhor hoje está
pessimista!
- Em absoluto. Depois que conheci os
ensinamentos espíritas, meu pessimismo morreu, amortalhado ao ceticismo que me
envenenava a alma. Não há razão para pessimismo quando se conhece as razões da
vida terrena, meu caro Raimundo. Quando você me disse ter ouvido falar das
aparições do "Fantasma Azul", relembrei comovidamente que foi ela
quem me conduziu para a Doutrina Espírita.
- Como pode ter sido possível,
"seu" Pedro...
- Vou contar-lhe. Sinto-me bem em
dizê-lo a você o que nunca revelei a ninguém, Ela tinha um
porte de grande distinção, um sorriso nobre e belo. Sorria com uma expressão
suave de bondade. A primeira vez que a encontrei foi aí, na pracinha. Eram precisamente
onze horas da noite. Estranhei, pois, naquela época isso não era comum, que uma
dama de aspecto tão respeitável andasse sozinha a desoras (altas horas da noite) por lugar tão ermo. Vi que se
dirigia para trás da igreja e tive a curiosidade de segui-la. Perdi-a de vista.
Volteei o templo, sem resultado positivo. Soube, no dia imediato, tratar-se
daquilo a que o povo chamava simplesmente "O Fantasma Azul". Na
segunda vez, encontrei-a quando atravessava a praça. Quis evita-la, mas foi
tarde. Estático, não pude desviar dela
os meus olhos. Meu coração pulava, mas, à medida que ela se foi aproximando, a
calma se apossou de mim.
Pude,
então, vê-la melhor. Tinha a fisionomia tranquila e doce, um sorriso de
criança. Aquele vestido vaporoso, de organdí azul-celeste, lhe emprestava um
todo angélico. Olhou ligeiramente para mim e se perdeu, de novo, por trás da igreja...
- Quer dizer que o senhor não teve
medo...
- A princípio, tive; depois, não.
Nem sei explicar porquê.
- Mas o senhor disse que foi ela
quem...
- Foi, sim. Ouça, Raimundo, com
muita atenção. Certa vez, cheguei de madrugada, debaixo de chuva torrencial.
Estava todo molhado e tonto de sono. Com receio de me resfriar, resolvi beber
um gole de genebra. Sem mesmo me dar ao trabalho de acender a lâmpada, pois a
luz do lampião da rua se refletia neste armário, aqui. Desarrolhei uma garrafa
e bebi um gole que eu supunha ser genebra. Mal sorvi o liquido, seu gosto acre
me advertiu de que eu me enganara. Verifiquei, então, assustado, que ingerira
veneno. Não tardou que dores terríveis me acossassem. Senti a língua crescer, a
garganta em fogo e os olhos como se estivessem sendo arrancados. O estômago
parecia revolvido por poderosas garras. Que fazer, se eu morava só e não tinha
sequer telefone? Quis gritar e não pude. De que adiantaria, afinal? Resolvi,
então, ganhar a rua e bater à porta de Nestório, vizinho amigo, que morava no vinte
e sete. Mas tudo se complicava muito rapidamente. Fui perdendo a lucidez e já
enxergava mal quando me surge, serena, a linda mulher do vestido azul. Olhei
para ela suplicantemente. Aproximou-se de mim, pôs as longas e delicadas mãos
sobre a minha garganta e fê-las correr, abertas, até ao meu estômago. Depois de
apô-las à altura do plexo solar, trouxe-as até à garganta. Fez isso várias
vezes. Você, Raimundo, nem imagina o que eu estava sentindo. Era como se eu
estivesse sendo esmagado lentamente por um peso de muitas toneladas. Nisto,
vejo ao lado dela um homem alto, com avental de médico, Rosto magro, bigode
ralo e pequeno cavanhaque. Ambos pareciam trocar ideias pelo olhar, pois não
falaram. Ele me comprimiu fortemente o estômago, enquanto ela continuava a me
aplicar os passes. Tudo foi perfeitamente nítido, tanto que, mau grado à minha
perturbação, pude guardar com fidelidade estes pormenores.
Pedro Miragaia fez necessária pausa
e não pode ocultar um sorriso melancólico. Suspirou, olhou para o chão e, dando
uma pancadinha no braço da cadeira de balanço em que se achava sentado,
prosseguiu:
- Há coisas, na vida humana, que só
as aceita convictamente quem as tenha sentido como eu as
senti, Raimundo. Fez-se em volta de mim grande escuridão. Meu corpo fora presa
de convulsões violentas. Quando dei acordo de mim achava-me vomitando
brutalmente. Lembrei-me deles e não os vi mais. Estava de tal modo enfraquecido
que, no dia seguinte, ergui-me com dificuldade do leito. Procurei, então, o
Nestório, em cuja casa passei o resto do dia, tomando chás.
*
Pedro silenciou .. Denotava fadiga.
Raimundo, no entanto, estava interessado em conhecer o fim da aventura. E
insistiu:
- Mas o senhor não disse porque foi
para o Espiritismo, padrinho...
- Dona Ceci, mulher do Nestório,
tratou de mim até que eu ficasse restabelecido. E sempre me dizia: "Seu
Pedro, o senhor precisa casar. Um homem não pode viver isolado, como o senhor
vive." E a minha resposta era sempre a mesma: "Qualquer dia pensarei
nisso, dona Ceci." E continuei solteirão. Nos primeiros dias, não me saiu
da cabeça a ideia de estudar o Espiritismo. Depois, acabei esquecendo...
- Muitas vezes tudo pode ser apenas
alucinação, não é?
- Muitas vezes, pode. O meu caso,
entretanto, foi verídico, Raimundo. Dá-me aquele livro que
está ali na estante, junto do dicionário.
Raimundo apanhou o livro pedido e o
entregou a Pedro, que o abriu e dele retirou uma tirinha de papel
- Leia o que está escrito aí, a
lápis.
E Raimundo leu, sem notar nada de estranho:
- "Vá à rua das Acácias nº xxx.”
- Você já vai saber do resto. Uma
noite, ela me apareceu de novo, quando eu já havia aberto o
portão . Vi-a sem sobressalto algum e o meu primeiro desejo foi agradecer-lhe a
assistência que me dera. Levou o indicador direito aos lábios, como que me conduzindo
a permanecer calado. Em seguida. sorrindo como sempre, me entregou essa tirinha
de papel, que guardo como preciosa relíquia. Mal entrei, fui examiná-la. Fiquei
surpreendido com as palavras que você acabou de ler... No outro dia, indaguei
onde ficava essa rua.. Ninguém a conhecia. Continuei perguntando e uma senhora
gorda me informou que havia uma pequena rua com esse nome, em Niterói, perto de
S. Gonçalo. Resolvi tirar a limpo a questão. Entrei num café perguntei de novo,
e nada. Um soldado também não sabia ao certo onde era. Quando eu já estava decidido
a regressar ao Rio – imagine, Raimundo, o que me aconteceu! - ela cruza diante
de mim, com o mesmo vestido azul, vaporoso e elegante, toma determinada direção
e me faz sinal para que a acompanhe. Andei durante uns trinta minutos,
atravessando ruas, dobrando esquinas. De repente, ela desapareceu numa curva.
Andei alguns minutos mais, às tontas, quando um menino surge correndo em. minha
direção:
- Moço; aquela moça di azu mi mandô buscá
o sinhô...
Desconcertado com o ocorrido, segui
o garoto, que me pôs finalmente na difícil rua das Acácias. No fundo, à
esquerda, avistei a Dama de Azul à porta de um chalé como que aguardando
a minha chegada. Deixei o gurí para trás e saí correndo, para alcançá-la. Ela, porém,
desapareceu de novo, Raimundo... Nunca mais a vi... - rematou Pedro, com voz repassada
de terna saudade.
- Mas o senhor não disse,
"seu" Pedro, que casa era aquela...
- É verdade. Na esperança de
encontrá-la, subi pequena escada de mármore e transpus a porta, que se achava
aberta. Lá dentro, uma senhora idosa se achava sentada ao centro de longa mesa,
em volta da qual várias pessoas se conservavam em atitude de recolhimento. Ao
ver-me, a senhora disse:
- Pode entrar e sentar-se. Já sei do
que se trata.
Entrei e fiquei, Raimundo. Tornei-me
frequentador habitual das sessões de dona Pepita, uma santa criatura que
realizou verdadeiro apostolado evangélico.
E após prolongado suspiro, Pedro
concluiu, ofegante, a sua história:
- Tenho ou não tenho motivos para recordar,
emocionado, essa jovem a quem se chamou ''Fantasma Azul”?...
- Tem: de fato, fortes motivos.
padrinho.
Ao dizer isto, Raimundo se põe
surpreso, inquieto e nervoso. E aponta para um canto da sala, exclamando em voz
alta:
- Olhe, ela, ali, "seu"
Pedro! Olhe ela, ali!...
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Mas o boníssimo Pedro Miragaia não
pôde responder. Ela viera buscá-lo. O rosto inanimado mostrava um sorriso feliz
... Nunca mais voltou o Fantasma Azul para as visitas solitárias à secular
igreja em ruínas...
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