"Luzes
e Sombras do Espiritualismo"
por Hermínio C. Miranda
Reformador
(FEB) Janeiro 1974
A Prática do Espiritismo, ou seja, a participação em trabalhos
mediúnicos, não desobriga o espírita do estudo da doutrina; pelo contrário, é
aí, mais do que nunca, que se faz necessário o exame contínuo e repetido das
questões doutrinárias que explicam e interpretam a fenomenologia, que nos
orientam no meio da extraordinária multiplicidade de caminhos que vemos diante
de nós. Nunca serão suficientemente repetidos esses conceitos. É bom que, de
tempos em tempos, a gente repasse os fundamentos em que se apoia a nossa
experiência. Quantos médiuns de excelentes perspectivas não se deixam extraviar
porque julgaram dispensáveis os estudos doutrinários. Muitos, por acharem que
os próprios espíritos ensinam a doutrina; outros por se julgarem já bastante
instruídos na matéria, sem necessidade de "perder tempo" com leituras
cansativas. Há, também, aqueles que desejam desenvolver uma prática mediúnica
toda pessoal, inteiramente livres dos cuidados recomendados pela boa doutrina.
Há os que não se interessam mesmo pelo estudo, como ainda os que somente
desejam do Espiritismo a manifestação prática, o fenômeno. Quase todos se dizem
espíritas, mesmo desconhecendo as obras básicas da Codificação. E é por isso
que se perdem pelos desvios, levados com sutileza, pela habilidade de espíritos
desencarnados, que se dizem portadores de revelações pessoais, mensageiros
diletos do Cristo ou o próprio Cristo!
Tais coisas não precisavam mais acontecer. Há um século a
Codificação de Allan Kardec está aí para esclarecer, orientar e apontar os
cuidados que o exercício da mediunidade deve merecer da parte de todos aqueles
que se interessem pela fenomenologia. Mesmo antes de Kardec, já encontrávamos
nos escritos do apóstolo Paulo - especialmente na sua Primeira Epístola aos
Coríntios - advertências, conselhos e sugestões para o seguro desempenho das
faculdades mediúnicas. Como qualquer fenômeno natural, a mediunidade é regida
por leis próprias, que precisam ser estudadas e respeitadas. Sua prática nos
coloca em relação direta com espíritos desencarnados que nos trazem uma
verdadeira multidão de problemas, de dificuldades, de dúvidas, tanto quanto de
ensinamentos preciosos, ao oferecerem a nós, encarnados, a oportunidade de
aprender as leis de Deus no próprio desempenho das nossas tarefas de
fraternidade. Para esse trato com irmãos desencarnados, muitos dos quais em
penosíssimas situações espirituais criadas por falhas clamorosas de procedimento,
precisamos estar preparados, não apenas com o coração aberto, iluminado pelo
verdadeiro sentimento de amor cristão, como também munidos de conhecimento das
leis mais elementares que regulam as manifestações. É indispensável uma sólida
noção geral da Doutrina Espírita, da lei da reencarnação, da lei de causa e
efeito, das condições do espírito desencarnado no outro lado da vida, dos
aspectos morais contidos e implícitos em tudo isso.
E se ainda agora, repetimos, tantos e tantos médiuns se perdem,
tendo diante de si, ao alcance da mão, um roteiro seguro, imagine-se o que não
foi no passado o exercício da mediunidade. Quanta aberração, quanta obsessão
desencadeada, quanta gente fascinada por ideias fantasiosas, quantas tolices e
ingenuidades cometidas, quantas doutrinas fantásticas que chegaram até a servir
de apoio às mais absurdas seitas místicas.
Tive há pouco a feliz oportunidade de encontrar um livro bastante
raro hoje, que nos leva àquele período em que a Codificação lutava bravamente
contra uma enorme hostilidade do ambiente para divulgar o Espiritismo
ordenadamente, racionalmente, cuidadosamente, alertando quanto às práticas
perniciosas, advertindo quanto ao exame atencioso dos fenômenos e das ideias
suscitadas nas sessões.
Essa época de tumultuada fascinação diante do fenômeno foi a
segunda metade do século XIX.
Como se sabe, foi quase que exatamente no meio do século, isto é,
em 1848, que a Espiritualidade deslanchou, como se diria hoje, o plano, na
tentativa última de chamar o homem à realidade de sua condição espiritual. A
celeuma foi enorme entre detratores apaixonados e negadores irredutíveis de um
lado, e, os primeiros convertidos, do outro lado. De certa forma, a
controvérsia continua, porque haverá sempre aqueles que se empenham em não
tomar conhecimento do progresso irreversível da humanidade, mas a coisa está
hoje bastante mudada, porque as questões religiosas não suscitam mais as
paixões antigas que, por exemplo, levantaram toda a Alemanha no século XVI, por
ocasião da Reforma. Naquele tempo, desde o humilde artífice até o Príncipe
Eleitor, eram todos teólogos amadores, a discutirem acirradamente dogmas e
pontos de vista religiosos.
Hoje, as doutrinas religiosas que se opõem à concepção formulada
pelos Espíritos junto a Kardec, estão muito esvaziadas do seu próprio conteúdo
e de sua autoridade. Por outro lado, uma parcela significativa da humanidade
encarnada, talvez a maioria, no momento, desinteressou-se das questões
espirituais, voltando-se mais para as condições suscitadas pela vivência do ser
encarnado, para os aspectos meramente materiais, imediatistas, oportunistas,
numa sede insaciável de prazeres, que coloca todos os demais valores da vida em
plano secundário. Em muitos círculos sociais, se hoje declararmos nossa
condição de espíritas, a reação será normal, como se disséssemos que somos
fluminenses, ou nordestinos, ou gaúchos. Na Idade Média, qualquer posição
contrária à religião oficial acarretava punições tremendas. Com o passar do
tempo, o "ódio teológico" abrandou-se, mas ainda no século XIX
predominava um resíduo considerável de preconceito religioso.
Por isso, ao surgir a Doutrina Espírita, passado o primeiro
momento de curiosidade e até de algum espanto, quando as diversas correntes do
pensamento humano começaram a tomar posição, vimos um verdadeiro desatar de
paixões contra ela e contra o seu codificador. E, coisa curiosa, não eram só os
materialistas e descrentes, nem somente os religiosos das diversas seitas que
se esforçaram por combater a jovem doutrina - foram também aqueles que tinham
conhecimento do fenômeno mediúnico e sabiam por experiência própria que os
fatos eram autênticos. Vemos essa posição no Barão de Guldenstubbé, no seu hoje
raríssimo livro "Realité des Esprits" - que ainda examinaremos aqui,
em outro artigo - e vemos igual posição nos escritos e pronunciamentos até de
médiuns que, como ninguém mais, deveriam estar preparados para corroborar a
doutrina revelada a Kardec com os exemplos abundantes suscitados pela prática
mediúnica. Está neste caso o médium Daniel Dunglas Home, cuja vida de precursor
estudamos em "Reformador" de abril de 1972.
*
Há muito andávamos à procura de seus livros. Localizamos um deles
na preciosa biblioteca da Federação Espírita Brasileira. O original inglês
chama-se "Lights and Shadows of Spiritualism" ("Luzes e Sombras
do Espiritualismo"). O exemplar da FEB é a tradução de Henry La Luberne
para o francês, sob o título "Les Lumiêres et Les Ombres du
Spiritualisme", datada de 1883. Baseia-se no original inglês escrito em
1876, há quase um século, portanto. Ao ser publicado o livro de Home, fazia 19
anos que saíra "O Livro dos Espíritos" e apenas 7 anos que
desencarnara Kardec. A obra tem, pois, o valor de um depoimento pessoal,
retrato de uma época difícil para o Espiritismo em que, a despeito da sua
rápida expansão no seio da classe média, a doutrina enfrentava terrível
campanha de oponentes de muitas cores, tendências e propósitos. Uniam-se nessas
lutas contra o Espiritismo, correntes religiosas e agnósticas, materialistas e
crentes, e até médiuns!
A prática mediúnica desordenada e descontrolada se desenvolvera
fantasticamente, porque sob o impacto da novidade e diante do insólito dos
fenômenos suscitados, toda a gente queria ver espíritos, conversar com
espíritos, receber mensagens, dar notícias, pedir informações, buscar
conselhos, solicitar curas de seus males e resolver problemas humanos, sem
nenhum conhecimento doutrinário orientador.
Funcionou aí, também, a velha lei econômica da oferta e da
procura. O assédio aos médiuns foi tão intenso que a mediunidade tornou-se
rendosa. Ainda que o médium não procurasse ficar rico, pelo menos gostava da
projeção e da fama que alcançava facilmente. Se as faculdades lhe eram
retiradas, aprendia a forjar os fenômenos, a fingir comunicações, enfim, a
enganar o próximo, pois a clientela, pagante ou não, ali estava para ser
atendida. Quando começaram a se popularizar os fenômenos de materialização, por
exemplo, foi um Deus nos acuda: os médiuns de efeitos físicos eram
solicitadíssimos, principalmente pelas altas rodas sociais da nobreza. Todas as
portas se abriam e os acolhiam principescamente. Os grandes médiuns se
hospedavam em palácios e levavam uma vida mansa e farta, adulados, cercados
pela admiração de gente importante: imperadores, reis, príncipes, poderosos de
toda a sorte e damas da nobreza e da riqueza.
Com o conhecimento que hoje temos da doutrina e com a experiência
que se acumulou ao longo de todos esses anos, é fácil imaginar as enormes
tolices que foram cometidas em nome do Espiritismo, mascaradas de Espiritismo
ou supostamente acobertadas pelo Espiritismo.
O livro de Home é, pois, um testemunho valioso dessa época. Ele
próprio, a despeito de suas notáveis faculdades - sua mediunidade era
multiforme -, não compreendeu Kardec, nem aceitou a sua doutrina, que combateu
energicamente. Foi, no entanto, um médium honesto no exercício de suas
faculdades, prestou-se docilmente à experimentação científica, trabalhava às
claras, sem mistificação, e jamais foi apanhado em fraude. Quando os Espíritos
lhe anunciaram certa vez que sua mediunidade seria suspensa por um ano - e foi
-, retirou-se discretamente, recusando-se a qualquer prática fraudulenta para
manter-se em evidência. O próprio imperador da Rússia, que desejava conhecê-lo,
foi fielmente informado pelo médium de que suas faculdades haviam sido
retiradas. O imperador, muito diplomaticamente mandou dizer-lhe que desejava
conhecer o homem e não apenas o médium, no que foi gentilmente e com alegria atendido
por um Home extremamente lisonjeado.
*
O livro de Home apresenta um esboço histórico das antigas crenças
da humanidade, desde o tempo dos caldeus, babilônios e egípcios até gregos e
romanos, passando pela Índia e pela China e estudando, em algumas páginas
breves, as crenças dos judeus e depois o Cristianismo. Entra, a seguir, na
apreciação do espiritualismo moderno, em cujo terreno se sente mais à vontade.
Home é um autor inteligente e dono de razoável cultura. Sem ser um escritor no
verdadeiro e amplo sentido da palavra, expõe suas ideias com facilidade e, às
vezes, com certa veemência. As farpas do estilo ele as reserva para Kardec e
sua doutrina, principalmente para a reencarnação, que combate tenazmente, com
argumentos insustentáveis e até infantis. (Veremos isso.)
Sente-se na obrigação de escrever o livro, como um testemunho
pessoal, cuja autoridade se apoia na sua experiência de longos anos de prática
mediúnica: ao escreve-la, em 1876, estava com 43 anos de idade e viveria ainda
mais 10. É, pois, uma obra destinada a colocar as coisas no seu devido lugar,
tal como ele, Home, entendia que deveriam ficar.
A ideia de escrever esse livro não foi bem recebida por vários de
seus amigos, enquanto outros a apoiaram, invocando a autoridade de que ele se
achava investido para opinar sobre a matéria. Seu famoso amigo William Crookes
foi de uma franqueza algo rude ao dizer-lhe, sem rebuços: "Duvido que um
livro como o seu possa prestar grandes serviços. Os médiuns, você sabe, são
muito ciumentos uns dos outros. Ora, uma acusação por mais bem provada que seja,
do momento em que seja levantada por um médium contra outro médium torna-se,
por esta simples razão, duvidosa; é posta, logo de início, na conta do ciúme e
perde seu valor." E por aí vai. Home, no entanto, deixou-se convencer
pelos que apoiavam seu projeto e meteu mãos à obra.
*
Depois da exposição histórica e de uma breve apreciação do
espiritualismo moderno, o autor, já no capítulo VI, intitulado
"Ilusões", entra na apreciação da balbúrdia em que se encontrava o
exercício da mediunidade no seu tempo e dos médiuns que se perdiam em fantasias
e induziam tantas pessoas a prática de loucuras e infantilidades. Dois desses
"profetas", ambos ex-reverendos protestantes, cometeram os maiores
desacertos. Chamava-se um J. D. Scott e o outro T. L. Harris. Mantinham em
Auburn, (Nova York), um círculo mediúnico a que deram o nome de "The
Apostolic" ("O Apostólico"), onde pontificava como médium uma
senhora Benedict. Os espíritos manifestantes se diziam todos pertencentes aos
primeiros anos da era cristã, tendo vivido na Judeia. Dentro em pouco havia um
boletim para divulgar as ideias dos espíritos que, declarando-se seres
sobrenaturais, portadores de uma revelação superior, conseguiram criar uma
seita fanática, cuia sede fizeram deslocar-se para Mountain Cave, na Virgínia,
onde uma comunidade foi fundada para dar início à idade de ouro da
fraternidade. Dentro de algum tempo, Scott, cuja ambição fora crescendo
incessantemente, declarava ter visto o próprio Deus face a face. Tornara-se seu
médium absoluto, dizia. A entrada obrigatória para o céu era o templo sagrado
de Mountain Cave e em torno dessa comunidade muitos e poderosos interesses
começaram a se agrupar. "Ao cabo de alguns anos, diz Home, a "Nova
Jerusalém" - pois assim designavam a comunidade - virou Pandemônio" e
a fortuna entregue aos profetas pelos crentes ingênuos desapareceu para sempre.
Em Genebra, em 1856, apareceu uma obra intitulada "Roma,
Genebra e a Igreja do Cristo", ditada - dizia a primeira página - por meio
da mesa, pelo próprio "Filho de Deus, o Salvador do mundo".
Uma pobre senhora conta a Home como se eixou envolver, e ao
marido, numa lamentável aventura mediúnica, na qual o casal perdeu uma fortuna
considerável que foi entregando, por vários meios e processos, ao médium, seus
familiares e amigos. O marido, professor de matemática, morreu ao cabo de
alguns anos, deixando a viúva numa terrível miséria sob a indiferença total dos
antigos beneficiados de sua fortuna.
"Os únicos espíritos que produzem esse tipo de monomania
religiosa são os vaidosos e orgulhosos", diz Home e continua: "O
mesmo se pode dizer das fantasias de Allan Kardec, cujos adeptos são recrutados
sobretudo nas classes burguesas da sociedade. É um consolo para essas pessoas
que nada são, acreditarem que foram grandes personagens antes do nascimento e
que serão ainda importantes depois da morte."
Home oferece aqui uma pequena amostra da sua posição diante de
Kardec e principalmente ante a reencarnação, mas é no capítulo seguinte,
"A doutrina de Allan Kardec", que ele desenvolve mais longamente suas
críticas ao Espiritismo. Vejamos.
*
"Classifico a doutrina de Allan Kardec, diz ele logo de
início, entre as ilusões deste mundo e tenho boas razões para isso, como se
verá. Conheci o iniciador, ou antes, o renovador dessa fase moderna do velho
paganismo". Prossegue dizendo que não põe em dúvida a sua boa fé (ainda
bem), mas que ele pretendeu iluminar o mundo com a velha doutrina pitagoriana
das vidas sucessivas. Para isso, segundo Home, Kardec magnetizava os médiuns e
fazia-os dizerem aquilo que ele, Kardec, queria que eles dissessem. Muito simples.
Estranha o médium-autor que Jâmblico tenha aprendido tão bem a escrever em
francês nas suas comunicações a Kardec e que Pitágoras tenha esquecido o grego.
Julga-se com direito a fazer essas críticas ao dizer: "Sou conhecido por
ser o que se convencionou chamar um clarividente; tenho, assim, o direito de
falar com conhecimento de causa quanto a essa fase particular da
psicologia." E volta a insistir na
sua tese: Kardec não era médium e sim um mero magnetizador: “Sob o império de
sua vontade enérgica, seus médiuns não passavam de máquinas de escrever, que
reproduziam servilmente seus próprios pensamentos.” E junta um testemunho, da
seguinte maneira: “Atesto a veracidade do seguinte fato. Antes mesmo que eu
tivesse conhecimento da morte de Allan Kardec, recebi dele, na presença do
Conde de Dunraven, hoje Visconde Adare, uma mensagem nos seguintes termos:
“Lamento haver ensinado a doutrina espírita. Allan Kardec.”
Como as nossas paixões são artificiosas e como descobrimos mil
modos e meios para satisfazê-las... O próprio Home. Em exemplos pelo seu livro
afora, recomenda que se acautele o médium com o exame cuidadoso do que dizem os
espíritos e tome suas precauções contra as falsas identidades e fantasias.
Quando chega, porém, o momento de manifestar um ponto de vista que lhe é
próprio, qualquer mensagem é considerada autêntica. Essa mensagem, no entanto,
nem o Sr. Jean Vartier, (1) um século depois, conseguiu aceitar como autêntica.
Não era mesmo para desconfiar que logo em seguida à sua desencarnação, a
primeira coisa que o Espírito Kardec se lembra de fazer é vir atestar junto a
Home o seu arrependimento por ter pregado o Espiritismo?
Mas isso ainda não é tudo. Home reproduz uma mensagem que teria
sido recebida por Morin que, segundo ele, Kardec considerava "um dos seus
melhores médiuns". Nessa mensagem, Kardec, também arrependido, teria feito
sua "confissão póstuma", repudiando os ensinamentos que difundira
"em vida" e se acusando de "orgulho insensato" por ter
desejado passar por um semideus salvador da humanidade, quando tudo não foi
além de um egoísmo ridículo que somente conseguiu impressionar as classes mais
humildes da população!
A evidente falsidade da mensagem e sua total discordância com o
verdadeiro espírito de Kardec, não impressionam ao médium Home, que não põe em
dúvida sua autenticidade.
*
Passa em seguida à crítica de alguns pontos da doutrina,
concentrando-se sempre na espinhosa - para ele - questão da reencarnação. Não
se conforma com a resposta dos Espíritos de que a doutrina reencarnacionista é
fundada na justiça e oferece condições para expiação das nossas faltas
passadas. Evidentemente Daniel D. Home não se aprofundou no estudo da
Codificação, pois suas críticas, nesse particular, revelam irreparáveis
lacunas. Para Home, Kardec pregou que a conquista do céu se dava através do
"baralhamento total da identidade das criaturas" através das
encarnações sucessivas e que a ordem que reina em toda parte na natureza não
encontra a sua contrapartida no mundo dos Espíritos. Onde está isso em Kardec,
meu Deus? Acha ele também que os Espíritos são dominados pelo constante temor
de se esquecerem de suas experiências terrestres "porque se eles perdem a
lembrança de um único incidente, são reenviados cá para baixo para adquirirem
um pouco mais de memória" e, por isso, submetem-se a inúmeras
encarnações"...
Em seguida, manifesta sua estranheza e repulsa ante as situações
que a reencarnação pode criar, no que manifesta, mais uma vez completo
desconhecimento do problema. A seu ver, são incalculáveis as perplexidades
contidas nessa "doutrina monstruosa". A avó pode vir a ser a sua
própria neta. (E daí?) O Nero do primeiro século pode metamorfosear-se (palavra
sua) na mística Madame Guyon do último século, o que é um tanto duvidoso, mas
não impossível. "A alma de um criminoso pode transformar-se na de um São
Vicente de Paula." E isto não é maravilhoso? Um Espírito pejado de crimes
saber que com arrependimento sincero e muito trabalho regenerador pode chegar a
tornar-se um verdadeiro santo, no sentido lato da palavra? Que há nisso de
monstruoso ou errado?
Outros aspectos da questão parece perturbarem sobremodo o famoso
médium. Partindo do ensinamento doutrinário segundo o qual o Espírito pode
renascer ora como homem, ora como mulher, Home imagina "corolários
revoltantes", que mal se arrisca a indicar, de tanto pavor que lhe
inspiram. Um exemplo: duas pessoas se unem pelo matrimônio. Têm filhos, depois
morrem e renascem com as posições trocadas. "Se se casassem novamente,
como explicar o enigma de sua paternidade e da paternidade de seus
filhos?" Não entendi. Não há enigma algum. Os componentes de um casal que
renasce na mesma família guardam novas relações de parentesco, qualquer que
seja o sexo escolhido para a encarnação. O relacionamento anterior é meramente
histórico. Sou hoje o pai do meu filho, tanto quanto poderei ser amanhã seu
neto, seu genro, ou seu sobrinho. Qual é o problema? Para Home, o problema está
em que a doutrina da reencarnação "destrói toda a consanguinidade". É
que os Espíritos não se ligam pelo sangue, pela matéria; unem-se pelas
afinidades espirituais ou se repelem pela ausência delas. Os laços de sangue, a
hereditariedade biológica, física, representam vínculos ocasionais. As vezes
confirmam antiquíssimas relações de amizade ou de amor, mas nem sempre o
Espírito renasce dentro dos seus grupos habituais; somos às vezes
"desterrados" para grupos estranhos, onde os vínculos de sangue
realmente nada representam senão uma situação transitória que temos de suportar
com tranquilidade, paciência e amor, a fim de que possamos aprender a lição da fraternidade.
É até provável que no novo grupo, com o qual não temos grandes afinidades,
venhamos a fazer grandes e inseparáveis amigos novos.
Diversamente do que pensava Home, a doutrina da reencarnação não
nos prende, como condenados, a uma cadeia eterna de vidas sem remissão. Ao
contrário, se não estivéssemos submetidos à lei da reencarnação é que
ficaríamos para sempre a errar por aí, como almas perdidas, sem perdão e sem
condições de reparar o mal que praticamos.
Para Home, "o mundo reencarnacionista é como um teatro onde
as marionetes aparecem, fazem umas piruetas e desaparecem, sujeitas à vontade
de quem manipula os cordéis". Diz ele que a natureza humana "se
revolta diante de tais exageros". Mais adiante, apresenta outras
"confusões revoltantes": ele próprio teve "a honra de encontrar
pelo menos doze Marias Antonietas, seis ou sete Marias Stuart, uma porção de
São Luizes e outros reis, além de uma vintena de Alexandres e Césares, mas
jamais um simples joão-ninguém". E que tem isso a ver com a justeza da
doutrina reencarnacionista? Não é por causa disso que a reencarnação vai deixar
de existir. O que ele testemunhou, se são exatos os dados que apresenta, foi a
existência de uma porção de Espíritos vaidosos, iludidos, fantasistas, mal
informados, que se julgam figuras eminentes do passado.
As pesquisas de regressão de memória revelam, às vezes, uma ou
outra personalidade eminente, mas revelam também - e sempre - existências em
que o Espírito mergulhou no anonimato, no sofrimento, na miséria, na
ignorância, na dor, exatamente para redimir faltas cometidas quando estava lá
em cima na escala social ou no ápice do poder temporal. A paixão do argumento
leva Home a observações totalmente infantis: Onde estariam hoje, pergunta ele,
os heróis do passado, Turenne, Bayard, Condé, que não vêm socorrer a França no momento
em que os exércitos alemães se acampam sob os muros de Paris (refere-se,
naturalmente, à Guerra de 1870)? "Onde estavam esses heróis no dia da
agonia de sua pátria? Ou a ausência de patriotismo é uma virtude na doutrina de
Kardec ou toda grandeza da alma "é uma impureza da qual os espíritos devem
se despojar"?
Sua confusão é total. Supõe ele, a certa altura, que um Espírito
que foi sucessivamente Nero, Constantino, Maomé, Carlos Magno, Bacon - uma
impossibilidade flagrante em tão curto espaço de tempo - "e se vê
subitamente encarnado no corpo do primeiro, a vida inteira não lhe bastaria
para decidir-se a adotar uma das quatro proposições" que apresenta a
seguir: botar fogo em Paris e tocar violino enquanto a cidade se incendeia;
mudar a capital da França; reunir numa só crença católicos, voltaireanos,
protestantes e positivistas; inventar um novo produto para matar os homens. (A
invenção da pólvora é atribuída a Bacon, o Roger, não a Francis.)
Acha ele, portanto, que as faculdades espirituais que compõem a
personalidade de Nero, por exemplo, se encontram no corpo físico de Nero e não
no seu Espírito. Não sabe ele - e se diz autorizado a falar como médium - que é
o Espírito que impõe suas tendências, vícios ou virtudes à personalidade do
homem encarnado. O corpo físico nada é senão um instrumento de trabalho; uma
vez abandonado pelo Espírito, é matéria que se decompõe e deixa de oferecer
condições para abrigar a alma. Como é que o corpo de Nero, já apodrecido há
milênios, vai receber um Espírito - que Espírito? - e influenciá-lo com as suas
tendências? Além do mais, decorridos tantos séculos, é de esperar-se que Nero
já esteja bastante diferente do que
foi, pela evolução irreversível da alma através do tempo. Seu Espírito, hoje reencarnado num corpo que
ele próprio formasse deveria, por certo, apresentar-se de maneira mais tranquila
e moralizada, pelas duras lições que deve ter estudado ao longo de vinte
séculos de muitas dores. Que seria do pobre Nero - já que Home se refere a ele
mais de uma vez - se não fosse a maravilhosa lei das vidas sucessivas? Que
seria de nós?
E assim, sem entender os princípios sobre os quais se apoia a
doutrina da reencarnação, Home não entende nem aceita as suas consequências.
Por exemplo: se os Espíritos evoluem de vida em vida, como ensina Kardec, para
ele "a Grécia de hoje seria mais inteligente que ao tempo de Homero e
Sócrates e a França menos imoral que era há quinze séculos". Isto seria
verdadeiro se ao longo de todos esses séculos, exatamente os mesmos Espíritos
voltassem continuamente a se reencarnar nas mesmas regiões da Terra; sabemos,
no entanto, que aqueles que atingiram um estágio superior na evolução
espiritual, ficam liberados da dura condição de renascerem na carne. Só virão
se e quando desejarem, em missões especiais de sacrifício ou de esclarecimento,
ditadas pelo mais puro amor. Para aqui só voltam, obrigatoriamente, aqueles
como nós, que ainda muito devemos perante a lei do nosso Paz. Não que Ele nos
venha cobrar, como um Deus implacável e temível, mas porque Ele colocou em
nossa própria consciência o sonho imortal da felicidade e o anseio invencível
da paz que vamos encontrar nas realizações superiores do verdadeiro amor.
Para demonstrar as "incongruências" da reencarnação,
Home cita alguns casos. Diz ter conhecido um homem que se lembrava de ter
permanecido no seio da terra por longos séculos "como um metalóide"!
Depois, encarnou--se no corpo de um tigre real e a essa "encarnação"
atribuía seu temperamento fogoso e atirado. Outro seu conhecido lembrava-se de ter
sido "uma lâmina de aço"! Casos evidentes de pobres seres ingênuos,
montados numa ignorância comovente e servidos por uma imaginação fértil e fantasista,
que são tomados como exemplos para demonstrar a falsidade da doutrina da
reencarnação. Assim não dá nem para argumentar.
Home conclui seu capítulo dizendo que, fora essas ilusões, nada
resta da doutrina de Allan Kardec. "É um sonho, uma alucinação como tantas
outras."
Kardec não passaria de um escolar da idade média, discípulo de
Tomás de Aquino, que veio ao século dezenove para perturbar as pesquisas de um
grupo de sábios positivistas.
Traz na mão direita um pergaminho com as seguintes palavras
enigmáticas: "Minha missão é dupla: tomo o lugar do Cristo e confundo a
identidade da criatura"..
*
Tais são, segundo Home, as sombras do Espiritismo. As luzes ele
reserva para o último capítulo, no qual narra alguns episódios interessantes,
mas banais, de sua própria mediunidade, nos quais identificou Espíritos, fez
tocar acordeão por mãos invisíveis, apanhou brasas com as mãos, na lareira,
moveu peças de mobiliário, etc., tudo muito legítimo e muito interessante, mas
a velha pergunta retorna: e daí? Para substanciar esses relatos, transcreve
depoimentos pessoais de amigos seus, quase sempre da nobreza da época.
Modestamente, reproduz até elogios como este da Condessa Catarina Lugano di
Panigai, de Florença: "Uma noite de julho de 1874, tive a felicidade de
assistir a uma sessão dada pelo Sr. Daniel Dunglas Home, médium célebre, do
qual não farei aqui o retrato; o Sr. D. D. Home é muito conhecido pelas suas
distintas qualidades e por aquela leal e franca conduta que distingue o
verdadeiro cavalheiro." O que, aliás, é estritamente verdadeiro, diga-se
em favor da justiça. Home foi realmente uma pessoa de excelente educação,
grande desembaraço social, de conduta irrepreensível e que jamais comerciou a
sua mediunidade e nem procurou fraudar fenômenos para ganhar prestígio ou
dinheiro. Sua dificuldade esteve em conciliar os fenômenos que produziu com um
corpo doutrinário coerente, racional e amplo como a Codificação de Allan
Kardec. Todo o seu trabalho - e foi extremamente valioso - concentrou-se em
comprovar a sobrevivência do Espírito. Muitos seres humanos atraiu para essa ideia
redentora e, com isso, dava-se por satisfeito. De certa forma, deixou passar a
sua oportunidade, naquela encarnação. Sendo contemporâneo de Kardec, não quis
ouvir o chamado da Doutrina. Mas, afinal de contas, a reencarnação, que tanto
combateu sem entender, já o trouxe, segundo suspeitamos, de volta à carne, para
espalhar por toda parte, a palavra redentora do Espiritismo puro. O mestre lionês,
a quem então não entendeu, é hoje objeto de sua profunda e respeitosa
veneração; nele reconhece o mensageiro que nos trouxe a ciência e a moral, a
lógica e o amor, a explicação e a esperança, contidos num só corpo doutrinário.
Que mais poderia desejar o ser humano, além e acima desse breviário de paz,
desse roteiro para as mansões da luz a que Kardec chamou de Espiritismo?
Graças a Deus, Daniel Dunglas Home também encontrou um dia a sua
estrada de Damasco e, algo aturdido, perguntou como Saulo: - Senhor, que queres
que eu faça?
E Jesus lhe mostrou a grandeza da obra e o trabalho que ela exige
para expulsar, com as novas luzes, as sombras dos nossos descaminhos.
(1) Vide o artigo "Allan Kardec e o Mistério de Uma
Fidelidade Secular", publicado em "Reformador" de abril de 1973,
pág. 101.
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