Possessão e Exorcismo
por Hermínio Miranda
Reformador (FEB) Maio 1974
A ficção contemporânea descobriu
há algum tempo o riquíssimo filão dos fenômenos psíquicos. O tema, aliás, se
apresenta facilmente à exploração de todos, dado que verdadeira maré montante
de fenômenos e de estranhos cultos se espraia pelo mundo. Logo em seguida, as
fábricas de ilusão de Hollywood se apossaram da mesma temática para
"faturar" alto o interesse e a curiosidade de milhões de criaturas
humanas por toda parte. Em lugar dos antigos e ingênuos filmes de horror,
começaram a surgir estórias mais elaboradas, como “O Bebê de Rosemary”, em que
a feitiçaria é explorada em termos da veemente linguagem cinematográfica dentro
das melhores técnicas de manipulação da imagem e do som.
A mais recente investida nesse
campo é o famoso livro de William Blatty, "The Exorcist", que figurou
consistentemente na lista dos "best-sellers" americanos por algum
tempo e foi logo produzido em filme de grande sucesso. É difícil dizer se isso
é um bem ou não, mas é fácil observar que se trata de um fato. Os meios de
comunicação acham-se, no momento, definitivamente interessados na fenomenologia
psíquica e, certos de responderem a uma demanda pública bastante ávida, colocam
todos os recursos de que dispõem a serviço da técnica de divulgação sob forma
de estórias de alto poder dramático.
Amigos que sabem das nossas ideias
e da nossa familiaridade com a fenomenologia nos fazem perguntas entre irônicos
e curiosos: Você leu o livro? Viu o filme? Que acha? É verdade aquilo? Como o
Espiritismo entende a possessão? Vocês fazem exorcismos?
É difícil, numa simples conversa,
na brevidade de um encontro social ou no intervalo das atividades
profissionais, dizer o suficiente para informar com precisão aquele que
pergunta para esclarecer-se, mas não tem preparo bastante para penetrar
questões de tamanha densidade e complexidade. Como, porém, é melhor acender uma
vela do que lamentar a escuridão, resolvi preparar este modesto trabalho que,
sem descer às profundidades e sem espalhar-se pela amplidão que o tema requer,
possa conter algumas informações colhidas em fontes que merecem fé.
Uma dessas preciosas fontes é o
excelente trabalho de pesquisa realizado pelo eminente professor T. K.
Osterreich, da Universidade de Tübingen, na Alemanha e que tive a ventura de
encontrar soterrado na poeira de um "sebo" carioca. Trata-se de uma
tradução publicada em 1930, pela editora Richard R. Smith, de Nova York, sob o
título "Possession - Demoniacal and Other among Primitive Races, in
Antiquity, the Middle Ages, and Modern Times" ("Possessão - Demoníaca
e Outras entre os Povos Primitivos, na Antiguidade, na Idade Média e nos Tempos
Modernos"). A obra original é de 1921 e o texto inglês ocupou 400 páginas,
pois os pesquisadores germânicos são pacientes, metódicos, meticulosos e tem o
hábito de esgotar o assunto de que cuidam.
Voltaremos daqui a pouco ao livro
do professor Osterreich. Antes precisamos de delimitar o campo da nossa
especulação e conversar um pouco sobre a terminologia a ser empregada no
decorrer deste trabalho. É preciso esclarecer também que não invoco aqui minha
autoridade pessoal, que é nula - estou apenas sacando ao banco de dados da
Doutrina Espírita, de suas obras suplementares e complementares as informações
de que necessitamos para melhor entendimento dos problemas que pretendemos
discutir.
*
* *
Os dicionários comuns de pouco nos serviriam nesta emergência.
Limitam-se a dizer -
como, por exemplo, o Funk & Wagnalls - que possessão é o estado de encontrar-se
possuído, como por maus Espíritos.
A Enciclopédia Britânica, com muito mais propriedade e penetração,
discorre com relativa segurança sobre o tema, em seu artigo sob o título
"Possession", embora, evidentemente, sem admitir a conceituação que
emerge da Doutrina Espírita. Para os autores da Britânica, a possessão é o
"suposto controle do corpo humano e da mente por um espírito estranho,
humano ou não-humano; ou a ocupação por um espírito estranho de alguma parte do
corpo humano, causando doença, dor, etc." (Os grifos são meus.)
O Espiritismo não admitiria a
possessão de um corpo humano pelo Espírito de um ser não-humano. Ademais, que
quer dizer a Britânica por não-humano? Animal? Demoníaco? Monstruoso?
O desdobramento do artigo, não obstante,
revela que a ótica de seus autores é toda situada nos fenômenos da possessão
primitiva entre os povos incultos do passado e do presente, dado que numa frase
seca e com implicações finalistas de quem encerra o assunto vem esta observação:
"Os fatos documentados (pela
pesquisa) são explicáveis como sintomas de doenças mentais ou resultantes da
sugestão."
O professor Osterreich, extremamente meticuloso na coleta de suas
informações subscreveria com pequenas modificações a conclusão da Britânica,
como veremos.
Na Codificação Kardequuma o assunto vem tratado especificamente em
"O Livro dos Médiuns''',
capítulo XXIII) e em “A Gênese", capítulo XIV, 45 a 49, sob o título
"Obsessões e Possessões".
Na primeira obra citada Kardec apresenta a obsessão como um dos problemas
mais sérios do exercício da mediunidade e informa que a palavra obsessão é
termo genérico de um fenômeno que pode desdobrar-se em três principais
variedades: a obsessão simples, a fascinação e a subjugação. A primeira delas é
a menos perniciosa -porque, usualmente, o médium - pois todo obsidiado tem forte
componente mediúnico - está consciente das manobras e dissimulações do
Espírito, o que certamente o incomoda, mas não o perturba a ponto de provocar
desarranjos mentais.
A fascinação é fenômeno possessivo de consequências bem mais
graves, porque o agente espiritual atua diretamente sobre o pensamento de sua
vítima, inibindo-lhe o raciocínio e levando-a à perigosa convicção de que as ideias
que expressa, por mais fantásticas que sejam, provêm de um Espírito de elevado
gabarito intelectual e moral. Seu engano é evidente a todos, menos a ele
próprio, que segue, fascinado e servil, o Espírito que se apoderou sutilmente
de sua mente.
Na subjugação, Kardec distingue
dois aspectos: a moral e a corporal. No primeiro caso, o ser encarnado é constrangido
a tomar atitudes absurdas, como se estivesse completamente privado do seu próprio
senso crítico. No segundo caso, o obsessor
"atua sobre os órgãos materiais e provoca movimentos involuntários", obrigando
a sua vítima a gestos de dramático e lamentável ridículo. Ao comentar esses
aspectos, Kardec é de opinião que o termo subjugação é mais apropriado que
possessão, de uso mais antigo e corrente. O que conhecemos, assim, por
possessão, seria então um caso extremo e grave de obsessão. O Codificador justiça
a sua escolha, informando que a possessão implicaria a admitir a existência de seres
criados para o mal e perpetuamente voltados para o mal, o que não existe, pois
todos são suscetíveis de progresso espiritual. Segundo, “porque implica igualmente a ideia do apoderamento de um corpo por um
Espírito estranho, de uma espécie de coabitação, ao passo que o que há é apenas
constrangimento", o que pode ser perfeitamente expresso pela palavra
subjugação.
Ao reexaminar, porém, o assunto,
em “A Gênese", talvez por uma questão de clareza didática, ele preferiu os
termos mais usuais, chamando a obsessão de ação persistente que um Espírito mau
exerce sobre um indivíduo", enquanto que na possessão, “em vez de agir exteriormente, o Espírito atuante se substitui, por
assim dizer, ao Espírito encarnado; toma--lhe
o corpo para domicílio, sem que este, no entanto, seja abandonado pelo seu
dono, pois que isso só se pode dar pela morte. A possessão, conseguintemente, é
sempre temporária e intermitente, porque um Espírito desencarnado não pode
tomar definitivamente o lugar de um
encarnado) pela razão de que a união molecular do perispírito e do corpo só se
pode operar no momento da concepção".
Ensina Kardec que, na obsessão
grave, o obsidiado fica envolto e impregnado de fluidos perniciosos que cumpre
dispersar pela aplicação “de um fluido
melhor", ou seja por processos magnéticos, através de passes, por exemplo.
“Nem sempre, porém - adverte Kardec -, basta esta ação mecânica; cumpre, sobretudo, atuar sobre o ser
inteligente (itálicos do original) ao
qual é preciso se possua o direito de falar com autoridade que, entretanto,
falece a quem não tenha superioridade moral. Quanto maior esta for, tanto maior
também será aquela."
E acrescenta:
“Mas, ainda não é tudo: paro assegurar a libertação da vítima,
indispensável se torna que o Espírito perverso seja levado a renunciar aos seus
maus desígnios; que se faça que o
arrependimento desponte nele, assim como o desejo do bem, por meio de
instruções habilmente ministradas, em evocações particularmente feitas com o
objetivo de dar-lhe educação moral. Pode-se então ter a grata satisfação de
libertar um encarnado e de converter um Espírito imperfeito."
Informa ainda Kardec, ao encerrar suas
observações, que tanto as obsessões como as possessões apresentam, não raro,
características epidêmicas, ou seja, coletivas, alcançando simultaneamente uma
quantidade de pessoas numa mesma comunidade. Veremos isto no livro de
Osterreich:
Creio que com esse mínimo de noção acerca de como o Espiritismo
encara o problema, podemos passar à frente.
*
* *
Osterreich dividiu o seu livro em
duas partes, a primeira para cuidar da natureza dos estados de possessão,
reservando a segunda para um extenso e minucioso relato histórico a que chamou "Distribuição
da Possessão e sua Importância do ponto de vista da Psicologia Religiosa".
Depois da conclusão, apresenta um apêndice sobre a Parapsicologia.
A intenção revelada no prefácio é
a de oferecer aos filósofos a oportunidade de uma abordagem nova aos problemas
suscitados pelo fenômeno.
Seu ponto de partida são as repetidas
referências dos evangelistas à possessão, das quais escolheu algumas, como em Marcos 5:2-10 (o possesso de
Gerasa), Marcos 1:23-27 e 9:17-27, Mateus 12:22, Lucas 13:10-13, Atos 19:13-16 e vários
outros, bem como narrativas dos mesmos episódios nos diferentes evangelistas.
“É impossível - observa o ilustre professor - evitar a impressão de que estarmos tratando de uma tradição autêntica."
Fenômenos idênticos são relatados
igualmente por inúmeros autores leigos através dos tempos, o que empresta aos
fatos observados uma aura de veracidade que seria impossível deixar de admitir,
como assinala o autor.
Luciano (nascido no ano 125 de
nossa era) descreve um cidadão que praticava profissionalmente a forma de
exorcismo então conhecida: era um sírio que dialogava inteligentemente com o
Espírito possessor, perguntando-lhe como havia entrado no corpo.
O paciente - escreve Luciano em
"O Amante da Mentira" -
permanece silencioso, mas o demônio responde em grego ou em línguas bárbaras e
diz quem é ele, de onde vem e como entrou no corpo do homem: este é o momento escolhido para
conjurá-lo a retirar--se; se ele resiste, o sírio o ameaça e finalmente o expulsa.
Um certo Flávio Filostratos, na
biografia que escreveu de Apolônio de Tiana, conta um episódio de possessão e
um curioso exorcismo. Uma senhora apresentou-lhe o filho possesso, explicando
que o demônio gostava dele porque tinha uma aparência muito agradável e
acrescentou:
"Ele (o suposto demônio) não
lhe permite o uso de sua própria razão, impedindo-o de ir à escola, de aprender
a manejar o arco e a flecha e até mesmo de permanecer em casa; leva-o para
lugares ermos. O menino não tem nem mesmo sua própria voz; emite sons graves e
profundos como os de um homem adulto. Os olhos pelos quais ele vê não são os
seus."
Mais adiante, a mulher informa ao
sábio que de suas conversas com o possessor este a informou, pela boca de seu
filho, que era o Espírito de um homem morto na guerra e que muito sofria com a
saudade de sua esposa. Além do mais, a ingrata traíra impiedosamente sua
memória três dias após sua morte, casando-se novamente. Havia mesmo tentado uma
"barganha" com a mãe do menino. Se ela não o denunciasse, ele faria
muitos benefícios ao jovem, de quem muito gostava. Cedo, porém, ela descobriu
que suas promessas eram enganadoras e que o possessor continuava a agir com
leviandade e egoísmo.
Como o menino se recusara a ir ver
o sábio, Apolônio de Tiana entregou à mulher uma carta contendo "as mais
terríveis ameaças" ao demônio.
Não ficamos sabendo se o Espírito
levou a sério as ameaças.
Cirilo de Jerusalém, autor cristão
do século quarto, também tinha noção exata do fenômeno da possessão, descontada
naturalmente a sua crença de que o possessor era o próprio demônio:
“Sua presença é das mais cruéis e opressivas; a mente fica obscurecida:
seu ataque é
também uma injustiça e uma usurpação de recursos alheios. Pois ele usa tiranicamente
o corpo dos outros e seus instrumentos como se fossem de seu próprio domínio;
atira no chão os que estão de pé: perverte a língua e contorce os lábios.
Emerge espuma em lugar de palavras; o homem fica envolto em trevas; seus olhos
estão abertos e contudo sua alma não vê através deles e o miserável estremece
convulsivamente até morrer:"
Relato quase idêntico faz Zeno de
Vernona (morto pelo ano 375 da nossa era). Descreve a terrível cena da
possessão, acrescentando que o possessor informa acerca de seu sexo, "o momento e lugar onde entrou na pessoa, diz
o seu nome e a data da sua morte".
Este escritor não chama o possessor
de demônio, como muitos, e sim de "espírito
impuro".
Um texto recolhido por Kerner
refere-se a um caso do século XVI: Uma jovem apresentou os sinais
característicos da possessão. Muitos sacerdotes foram falar com ela, tanto os
do lugar como das vizinhanças, "mas
a todos o diabo replicou, com um desprezo que excedia a todos os limites e, quando
questionado acerca de Jesus, respondeu com tal desprezo que é impossível reproduzir".
Outra narrativa do século XVIII
historia um caso também tratado por um sacerdote que dialogou com o
"demônio", mas sem grande sucesso:
“A despeito de que a possessa uma vez mais recuperou sua razão
naquela oportunidade sem se lembrar do que havia Satanás falado por sua boca,
ele não a deixou por longo tempo em paz depois que eu parti; atormentou-a tanto
quanto antes... "
Osterreich encerra a narrativa
desses e de outros episódios admitindo francamente que a concepção psicológica
da possessão ainda é bem pouco conhecida. Realmente o é, para aqueles que
desconhecem ou recusam os ensinamentos e as experiências acumuladas pela prática
espírita há mais de cem anos.
Ao examinar as fontes da
possessão, o ilustre professor tem oportunidade de enunciar de passagem uma das
suas teorias prediletas: depois de confirmar que a possessão tem sido um
fenômeno abundante na história das religiões, "desaparece ou recua para as sombras", sempre que prevalece um
elevado grau de civilização. Lamento discordar do eminente autor. O que
acontece é que as sociedades primitivas, a despeito de toda a generalizada
ausência de cultura, tal como entendemos modernamente esse termo, sempre
demonstraram um conhecimento bastante realista do fenômeno da possessão, tanto
quanto da sobrevivência do Espírito e até da reencarnação, ao passo que, na
sociedade moderna, uma porção de nomes sofisticados e "científicos"
foram inventados para rotular e mascarar legítimos casos de possessão, como
esquizofrenia, psicose, neurose, fuga, dissociação dupla ou múltipla
personalidade, etc. Isso não quer dizer, porém, que a possessão deixou de
ocorrer somente porque o homem se "civilizou". Compulsando os
impressionantes levantamentos estatísticos mundiais, diríamos até que, ao
contrário, a interferência dos Espíritos desencarnados através da obsessão e da
possessão, é cada vez mais ativa, dominadora e vigorosa, dado que, vivendo numa
época de tensões insuportáveis e desorientação moral e filosófica nunca esteve
o homem tão facilmente à mercê dos desencarnados igualmente desorientados e
confusos.
Em rápido exame crítico das fontes
de referência, Osterreich admite que "os
relatos mais interessantes e pormenorizados vem precisamente de autores que
acreditam na realidade da possessão e quando combinam a observação exata com
boa capacidade descritiva (o material) pode ser bem utilizado, a despeito do
ponto de vista dos autores”.
O grifo é meu, evidentemente. Quis
apenas destacar o fato de que, sem querer, o ilustre professor reconhece
implicitamente que tem melhor visão do fenômeno aqueles que o interpretam como
ação de uma entidade estranha ao possesso.
Luiz J. Rodriguez, no seu livro
"God Bless the Devil" (edição Bookman, 1961), observa que está mais
perto da realidade aquele que encara a possessão como invasão da personalidade
pelo demônio do que aquele que insiste em enquadrar o fenômeno no quadro clínico
de origem interna, caracterizando-o como distúrbio psíquico inteiramente livre
de influência externa direta. O demônio seria, pelo menos, uma personalidade
estranha à do possesso e, ao tratar o fenômeno como tal, há muito mais
"chance" de êxito do que se apenas o considerarmos como doença mental
originada no próprio paciente.
Aliás, o professor Osterreich
inicia o segundo capítulo de sua obra, ao estudar os sinais externos da
possessão, com a afirmativa de que "a
primeira e mais notável característica é a de que o organismo do paciente
parece invadido por uma nova personalidade e é governado por uma alma estranha".
Profundas alterações ocorrem,
então, no timbre da voz, na expressão fisionômica, nos gestos, no vocabulário,
em toda a personalidade, enfim, naquilo que ela possui de essencial e característico.
Neste ponto do livro, transcreve
ele um longo trecho da obra de Theodore Flournoy "Des Indes à Ia Planête Mars", que comentamos em
"Reformador" de novembro de 1972. No trecho citado, Flournoy descreve
as alterações de personalidade ocorridas em Helène Smith, quando se incorporava
nela o Espírito que se identificava como Cagliostro. Aqui, porém, o leitor
espírita já está de sobreaviso, pois sua formação doutrinária o informa de que
neste exemplo estamos falando sobre mediunidade e não possessão. Ainda que o
fenômeno da possessão exija um componente mediúnico da parte do possesso, é
claro que não pode ser colocado lado a lado com o do exercício normal da
mediunidade controlada e disciplinada. O professor Osterreich, porém, não se
atrapalha por tão pouco, pois classifica o fenômeno mediúnico puro e simples
como possessão voluntária... com o que admite, nitidamente, a participação de
entidade estranha à do médium que cede seu corpo físico ao Espírito
manifestante. Ele não vai, no entanto, ao ponto de expressar tal concessão, que
seria muito para a rigidez de suas concepções.
Suas citações estão, porém,
continuamente a desmentir suas próprias teorias. Podemos tomar qualquer uma
delas, que se acham disseminadas às centenas por todo o livro. Esta é retirada
do livro "Névroses et idées fixes" (Neuroses e Ideias Fixas) de
Pierre Janet:
"Era um espetáculo extraordinário para nós que ali estávamos, ver aquele
Espírito mau falar pela boca da pobre mulher e ouvir ora o timbre da voz masculina,
ora da feminina, mas tão distintas uma da outra que era impossível acreditar
que havia apenas uma mulher falando."
A perplexidade dos observadores
leigos é compreensível, pois sem admitir a independência da personalidade
invasora, o mecanismo não faz sentido. É o que vemos também em F. von Baader:
"Se dois estados poderiam até então ser observados nela, o
estado comum de vigília e o
magnético (sonambúlico), era agora necessário distinguir três: o estado comum
de vigília, o bom estado de vigília magnética e o mau estado de vigília
magnética. A voz, os gestos, a fisionomia, os sentimentos, etc., eram nos dois
últimos estados citados exatamente como céu e inferno. De modo particular as feições
se alteravam tão rapidamente que dificilmente se poderia confiar nos próprios
olhos ou reconhecer no estado satânico a mesma pessoa do bom estado magnético.”
Coloquemos isso em terminologia
espírita para entender: a mulher era médium e nada fazia senão produzir
fenômenos mediúnicos. Apresentava-se alternadamente em estado de vigília lúcida
e ora incorporada por um Espírito turbulento, ora por um Espírito tranquilo e
equilibrado.
*
O mesmo von Baader menciona caso
em que o possesso falava de si mesmo na terceira pessoa. Muito simples: não era
o possesso que falava e sim o possessor, e cada vez que este se refere ao seu
médium é claro que tem de chamá-lo de ele ou ela, na terceira pessoa, e não eu.
Kerner, muito alarmado, ao relatar
outro caso informa que “tudo quanto esses
demônios dizem pela boca daquele homem é inteiramente diabólico em sua natureza
e completamente oposto ao caráter do indivíduo possuído. Consiste em zombarias
e maldições contra tudo quanto é sagrado, contra Deus e nosso Salvador e
-particularmente em zombarias e maldições dirigidas contra as pessoas que se acham
sob seu domínio, a quem eles ultrajam pelas suas próprias bocas e batem com
seus próprios punhos".
Ao estudar os "estados subjetivos do possesso"
(capítulo 3), o professor Osterreich informa, à pág. 26, que, em tempos mais
recentes, especialmente aí pelo século XVIII e bem mais no século XIX, "a crença no demônio está diminuindo"
e, em consequência, acredita-se que são as "almas dos mortos que não se acham em paz que entram nos vivos".
(O estaque é do original.) Acrescenta, porém, que já em tempos muito remotos
encontramos indícios dessa mesma crença, ou seja, de que não são demônios os
obsessores e possessores, mas almas dos mortos, isto é, Espíritos
desencarnados, como diríamos nós. Segundo Osterreich, os povos primitivos
admitiam também as possessões "boas", ou seja, de Espíritos mais
esclarecidos que vinham voluntariamente trazer sua contribuição de afeto. Donde
se conclui que, nessas matérias, como dizia Luiz J. Rodriguez, que cito
novamente, antigos, rudes e ignorantes xamãs (1) revelavam mais sólido
conhecimento do problema espiritual do que muitos dos que ostentam hoje
pomposos títulos acadêmicos.
(1) Não dispomos de espaço para um estudo mais aprofundado do xamanismo.
A palavra é de origem asiática e entrou na Europa através do inglês
"shamam". O xamã era ao mesmo tempo médico, sacerdote, exorcista,
curandeiro, mágico, adivinho, enfim, um médium.
Nos tempos medievais, quando a
ignorância em torno do assunto foi praticamente geral, os obsessores tiveram
sua época de ouro, manobrando livremente suas vítimas do anonimato invisível do
mundo espiritual. Vejamos um diálogo entre o Espírito manifestado, que
evidentemente passava por ser o próprio demônio e um despreparado
"doutrinador". Certo David Brendel acompanhou dia e noite, durante onze semanas,
o caso da possessão de uma menina. Duas de suas conversas com "Satã"
foram preservadas. Vejam como o Espírito se diverte à custa da ignorância e
ingenuidade do seu perguntador:
- Você esteve também com a filha do ferreiro, lá em Meissen?
- Sim - respondeu o Demônio -,
havia cem companheiros meus lá; eu ajudei a levar o velho para o inferno.
- Você também conhece Judas, o traidor?
- Ele está sentado comigo, no inferno.
- Você conheceu o Mau Ladrão, Pilatos, Herodes, o Dr. Johannes Faustus,
Cristoph Wagner
e Johannes de Luna?
- Oh, são meus melhores amigos. Tenho no inferno a carta de
Faustus escrita com seu
Sangue.
- Mas ela não queima?
- Oh, não!
- Para que serve ela?
- Preciso tê-la à mão para
exibi-la e condená-lo.
- Você, que sabe tantas coisas,
sabe também orar?
Esta é a primeira pergunta
inteligente, mas a resposta é irreproduzível. O perguntador insiste noutra
direção:
- Se você me tivesse em seu poder o que faria?
- Quebraria o seu pescoço, e minha face ficaria contorcida de
raiva.
O professor Osterreich reproduz
mais um desses diálogos, extraído do livro "Un cas de possession", de
Van Gennep, publicado em 1911, e conclui, muito seguro de si:
"A individualidade estranha frequentemente relata uma espécie
de história de sua vida. É quase desnecessário acrescentar que tais histórias contribuem
para imaginação ou reminiscências (memórias do paciente?) da vida real da
personalidade que supostamente entrou no organismo."
O assunto é de tão pouca monta que
o professor nem acha necessário dizer que se trata de fantasia. Vemos, assim,
como excelentes e bem intencionados pesquisadores se deixam arrastar facilmente
pelos seus preconceitos e perdem oportunidade de valioso aprendizado.
Observações de grande interesse ficam soltas pelo texto como se flutuassem desligadas
do verdadeiro contexto do estudo. Como estas, por exemplo: a de que os
Espíritos possessores são sempre idênticos em admitirem que fizeram algo
errado, ou seja, que cometeram crimes; os lapsos de memória, pois, ao despertar, o
possesso não se lembra do que se passou enquanto esteve entregue à
personalidade invasora; ou ainda o fato de que quase sempre o possesso fala e
age de olhos fechados (característica da mediunidade na grande maioria dos
sensitivos "tomados"); movimentos desordenados nas manifestações mais
violentas, e outros tantos, como, ainda, o fato de que no estado de possessão a
vítima somente se refere a si mesma na terceira pessoa:
"No estado demoníaco - escreve o muito citado Kerner - ou no
início da possessão, a
paciente sempre fala de si mesma na terceira pessoa e não é possível naquele
momento conversar com ela; quem desejar ser entendido terá de falar com o
próprio demônio:"
Lógico, meu Deus! O Espírito do
paciente está impedido de manifestar-se através do seu próprio corpo, que se
encontra sob o domínio da entidade possessora. Já era tempo de saberem disso os
observadores, pelo menos os mais modernos. Uma vez que toda a fenomenologia
aponta irresistivelmente para a hipótese - chamemo-Ia assim - de uma invasão
externa da personalidade do paciente e que a doutrina do demônio está
completamente desmoralizada, por que não admitir que a entidade possessora é um
Espírito desencarnado, ou seja, Espírito de uma pessoa que aqui viveu na carne
e se acha agora desembaraçado do corpo físico?
Para fugir a essa admissão, que
explica facilmente os fatos, o professor Osterreich elabora uma complexa teoria
de bifurcação ou divisão do ego original, como se o Espírito encarnado - cuja
realidade, aliás, ele não admite também - pudesse dividir-se em dois, três ou mais entidades a partir da mesma origem, a que ele chama de
fisiológico-metafísica. Sua teoria, no entanto, é tão inaceitável, que ele
próprio confessa, logo adiante (pág. 37), que "o fenômeno da separação da segunda (personalidade) a partir
da primeira é, para nós, inescrutável. Seria
mesmo, na realidade - prossegue ele -, duplamente incompreensível, em primeiro lugar
porque escapa inteiramente ao nosso conhecimento e, em segundo lugar, porque, tanto
quanto sabemos, a primeira personalidade nada tem com isso”.
O fenômeno é incompreensível para
o eminente autor porque, tomando as analogias no plano físico a confusão é
total, pois quando uma célula se desdobra em duas a primitiva deixa de existir,
ao passo que, no fenômeno que ele deseja classificar como divisão da
personalidade, a primitiva continua a existir com todas as suas
características, ignorando a existência da outra, a não ser que lho digam. Daí
conclui o professor, algo desalentado, mas profundamente honesto:
"Tocamos aqui, deliberadamente um ponto em que a hipótese da
divisão entra em contradição com a lógica."
Qual a saída? Acha o professor que
tem a "explicação". A nova personalidade manifestante traria consigo
uma quantidade de ideias "inatas" e acrescenta:
“Nem tudo que ela diz será baseado na sua própria experiência; ela
saberia inúmeras coisas sem tê-las experimentado e teria comando da linguagem,
além de numerosas capacidades complexas sem nenhum aprendizado.”
Surpreendente afirmativa essa de
um cientista e pesquisador tão sério que, para fugir a qualquer preço da
hipótese espiritual da possessão, apresenta-se com uma teoria fantástica e
ilógica de que somos capazes de aprender coisas sem ter aprendido!
É difícil, porém, enquadrar os
fenômenos que ele próprio reproduz, das suas fontes, na sua complexa e
vulnerável teoria.
"Algum desses pacientes - escreve Kerner "-, quando o demônio se manifesta e começa a
falar por eles, fecham os olhos e perdem a consciência, tal como no sono
magnético; o demônio então fala por suas bocas sem que eles o saibam. Com
outros, os olhos permanecem abertos e a consciência lúcida, mas o paciente é
incapaz de resistir, mesmo com toda a força de sua mente, à voz que fala nele;
ele ouve a si mesmo expressar-se como se fosse outra e estranha individualidade
alojada nele, mas fora de seu controle."
Vemos aqui a mediunidade chamada
inconsciente e a consciente. O fenômeno é sempre o mesmo e só em termos de
Doutrina Espírita podemos entendê-lo e explicá-lo.
“A moça retém a consciência enquanto a voz fala - escreve outro
observador meticuloso e atento, por nome Eschenmayer -, mas não pode evitá-lo, mesmo tentando com toda a sua vontade; ela ouvia
a voz ressoar externamente como a de um indivíduo estranho, alojado dentro
dela, sem que estivesse em condições de controlá-lo ou fazer qualquer coisa."
A despeito de tudo isso, o
professor insiste, à pág. 47, que "uma análise mais exata revela que os
estados mentais, aparentemente pertencentes a um segundo ego, são realmente
parte do indivíduo original".
E estamos conversados. É a
persistente e insustentável doutrina da divisão da personalidade.
Quanto ao documentadíssimo e
famoso caso de Joana dos Anjos, acha o professor Osterreich que deve ser
examinado com grande reserva, porque tem sua gênese numa pessoa altamente
histérica e de moral algo frouxa. Este caso, aliás, se presta a observações
muito interessantes que esperamos poder fazer sem alongar demais o artigo.
Madre Joana deixou um valioso
depoimento pessoal na sua autobiografia, além de existirem outras obras e
relatos pessoais de autenticidade indiscutível. Descreve ela os estágios
iniciais da sua possessão referindo-se a uma perturbação mental que durou cerca
de três meses. Nesses períodos de perturbação ela perdia a consciência de si
mesma.
“O demônio - diz ela - obscureceu-me
de tal modo que eu mal podia distinguir seus desejos dos meus; provocou-me,
além disso, forte aversão pela minha vocação religiosa."
Mais adiante, descrevendo com
extrema precisão o lento processo de invasão diz ela:
”Acho que ele não teria assumido esse poder sobre mim se eu não me
tivesse aliado a
ele. Tive experiências como essa em várias ocasiões, pois quando eu resistia com
firmeza descobria
que todas aquelas fúrias e cóleras se dispersavam como tinham vindo, mas, infelizmente,
com muita frequência acontecia que eu não me continha com suficiente força para
resistir, especialmente em pontos nos quais eu não via -pecado grave. Nisso,
porém, é que eu me enganava, porque como eu não me continha nas pequenas
coisas, minha mente era arrastada, depois, sem perceber, para as grandes..."
Que notável lucidez nessas
observações! O processo da obsessão se desenrola exatamente assim: sutil e
lentamente, aos poucos, a partir das pequenas e aparentemente inócuas
concessões. Destas, passam as vítimas às maiores e depois às grandes. Neste
ponto há mais como retornar e facilmente a obsessão vai aos extremos da
possessão.
O professor Osterreich faz
restrições, como vimos, ao caráter de Madre Joana e, em tese, está certo, porque os obsessores desencarnados encontram
maiores facilidades para os seus propósitos funestos quando a vítima se acha desguarnecida
moralmente e, portanto, exposta ao ataque e ao envolvimento; mas é preciso
lembrar que não há imunidade total contra a obsessão a não ser nos seres que
além de se apegarem a rígidas práticas morais, se achem quitados com seus
compromissos cármicos. Também sob esse aspecto o famoso e muito citado caso de
Loudun contém ensinamentos preciosos, pois os obsessores não respeitaram nem
pouparam os exorcistas, por mais bem preparados que estivessem eles. O padre
Surin, é de justiça assinalar, estava moralmente credenciado para o trabalho de
que o incumbiram as autoridades eclesiásticas da época. É difícil, porém, a
esta distância no tempo - os fatos ocorreram no século dezessete - e ante
informações incompletas, do ponto de vista espírita, produzir uma análise
crítica balanceada da sua posição no caso, a despeito da notável narrativa que
ele próprio deixou. Que sabemos, porém, de seus compromissos espirituais ou de
suas ligações cármicas com o grupo de freiras implacavelmente assediadas por uma
legião de obsessores? Num livro que eu muito gostaria de ler, Osterreich vai
buscar a transcrição do depoimento do padre Surin. Chama-se a obra "Cruel Effets de Ia Vengeance du Cardinal
Richelieu ou Histoire des Diables de Loudun", ou seja, "Efeitos Cruéis da Vingança do Cardeal
Richelieu", de- autor anônimo que assinou simplesmente Aubin.
Ao narrar o que poderíamos chamar
de sua própria contaminação, diz o padre Surin:
“As coisas foram tão longe
que Deus permitiu, creio que por causa dos meus pecados, o que talvez nunca foi
visto na Igreja, ou seja, que no exercício de meu ministério (exorcismo), o demônio
deixou o corpo da possessa e entrou no meu, me assaltando, confundindo,
agitando e perturbando visivelmente, fazendo de mim um endemoninhado por várias
horas. Não lhe posso explicar o que acontece dentro de mim nessa ocasião e como
esse Espírito se une ao seu sem me privar nem da consciência nem da liberdade
da minha alma, tornando-se contudo como se fosse um outro eu, tal como se eu
tivesse duas almas, uma das quais desalojada de seu corpo e do uso de seus
órgãos, assistindo afastada às atividades da outra que se apossou do corpo. Os
dois Espíritos lutam no mesmo campo que é o corpo e a alma parece dividida. Uma
dessas partes fica sujeita a impressões diabólicas e outra com os impulsos que
lhe são próprios ou vem de Deus."
Mais adiante:
“Quando desejo, pelo impulso de uma dessas duas almas, fazer o sinal da cruz
sobre minha boca, a outra me desvia a mão com grande rapidez e prende meu dedo
entre seus dentes, mordendo-me raivosamente."
E uma conclusão melancólica e
impotente:
“Quando os outros possessos me veem nesse estado é um prazer assistir ao
seu triunfo e como os demônios se divertem dizendo: Médico, cura-te a ti mesmo;
sobe agora ao púlpito; será um belo espetáculo vê-lo pregar depois que ele rolou
pelo chão."
Em pós-escrito nesse mesmo
documento, que é uma carta dirigida a íntimo amigo espiritual, padre Surin pede
preces, das quais se confessa muito necessitado, pois a influência dos possessores
já está durando dias inteiros e semanas, durante os quais ele se sente "obtuso com relação às coisas do céu",
de tal forma que não pode nem recitar a mais conhecida das preces que é o
Pai-Nosso.
Em seguida, informa:
“O demônio me disse: "Hei de privar-te de tudo. Não precisarás nem
da tua fé, pois eu
o farei um idiota."
O obsessor cumpriu implacavelmente
suas ameaças. Os tormentos do pobre sacerdote duraram cerca de 25 anos. Não
podia mais pregar e nem mesmo conversar. Perdeu a voz durante sete meses,
ficando incapaz de celebrar a missa, ler e escrever e até mesmo vestir-se;
enfim, fazer qualquer movimento. Nesse período de aflições inomináveis, nenhum
médico conseguiu minorar seus sofrimentos. Ao cabo de mais de 20 anos, segundo
depoimento de Osterreich, padre Surin livrou-se daquelas aflições, mas caiu em
outro estado anormal, que o ilustre professor estuda em profundidade em outro
livro seu por nome "Phanomenologie des Ich" (Fenomenologia do Eu).
Do ponto de vista espírita, vemos,
portanto no caso do padre Surin, o doloroso processo de envolvimento de um
exorcista com os Espíritos que pretende expulsar com fórmulas canônicas e ritos
inadequados. Ele próprio narra, com inegável realismo, a ridícula posição em
que os Espíritos o colocam, divertindo-se com quem, incapaz de se curar,
pretende curar os outros. A técnica espírita tem um "approach"
inteiramente diferente. O problema não é expulsar
o demônio; é dialogar e esclarecer um Espírito em grave estado de
desequilíbrio, que se apoia no desenvolvimento de seu tenebroso plano de ação
vingativa, em fatos e compromissos às vezes remotos no tempo, mas ainda não
resolvidos satisfatoriamente. Tais processos se arrastam de século em século,
porque não é pela vingança que se parte o círculo vicioso da dor e sim pelo
perdão. Na sua terrível cegueira espiritual, os obsessores não percebem que o
exercício do perdão é mais do que um mero preceito evangélico - que não tem
sentido, infelizmente, para muitos desses Espíritos endurecidos para alcançar a
força de um princípio científico no campo da Psicologia, dado que o perdão
realmente liberta. Sentimos, também, na prática espírita, que é invariavelmente
pelo amor frustrado que nos perdemos na treva da dor e é pelo amor
reconquistado que adquirimos condições para retomar os caminhos da paz. Outro
aspecto importante: por mais que se revista de ódios e rancores, o Espírito
atormentado preserva sempre o germe do amor no seu coração e inconscientemente
anseia pela volta do amor. Se o doutrinador - ou seja, aquele que conversa com
o obsessor - consegue convencê-lo dessa tese, começa ali mesmo o longo processo
da recuperação.
Vejamos, porém, como o eminente
professor Osterreich encara o fenômeno.
Acha ele evidentemente falsa a
concepção de que existem dois Espíritos ou duas almas na posse do mesmo corpo.
Aliás, ele nem emprega a expressão alma ou Espírito e sim ego. Lamenta ele que
esse "erro" venha sendo cometido sistematicamente por muitos autores,
inclusive ele próprio, antes de estudar adequadamente o fenômeno. Nada disso. O
que ocorre, segundo o ilustre professor, é que a individualidade, que o padre
identifica como a de Satanás, é "um novo e complexo estado de si mesmo,
tanto quanto sua personalidade original". O padre endemoninhado teria,
pois, o direito de dizer que "assumira uma personalidade satânica".
O argumento parece óbvio ao
professor: como poderia Surin dizer que sente a raiva e a irritação do demônio, que se encontra num duplo estado afetivo
ou que tem outra alma além da sua? Como poderá ele experimentar sentimentos que não são
os seus? Como é possível imaginar outro ego entrando nele? Acha ainda o
professor que, sendo impossível a interpenetração da mente pela mente, "começamos a perceber as coisas",
pois que "ninguém jamais experimenta
algo fora de seus próprios estados emocionais".
O que vemos aqui é o alinhamento
de uma série de impossíveis dogmáticos a impedir uma abertura para a verdade,
através de uma aproximação desinibida, com a mente aberta, ainda que, e
necessariamente, vigilante, crítica, alertada. Partindo de impossíveis
preconcebidos, daremos inapelavelmente em conclusões que nada explicam,
representando apenas mais uma opinião pessoal sobre o assunto em discussão. E
isto nunca foi ciência. Osterreich, porém, não deseja de forma alguma admitir a
hipótese de interferência espiritual externa e autônoma. Lamenta mesmo que
Ludwig Staudenmaier, no seu livro "Die Magie als Experimentelle
Naturwissenchaft", tenha tratado como seres autônomos personalidades que
se desenvolveram num processo de "escrita automática", ou seja, um
caso comum de mediunidade psicográfica.
Para Osterreich, o possesso se
convence de que está sob influência de outro ser e age como tal... E por isso é
que temos o curioso espetáculo segundo o qual duas pessoas parecem falar
através do mesmo corpo físico. Os argumentos do autor são, às vezes, de
comovente ingenuidade. A certa altura, por exemplo, reproduz alguns diálogos
entre o que chama de "egos" e os exorcistas ou outras testemunhas. E
acrescenta que sua desconfiança com relação ao fenômeno é bastante acentuada
"pelo fato de que o demônio responde
muito cautelosamente às questões mais críticas".
- Se ele dispusesse de um acervo
de observações pessoais, em primeira mão, colhidas na prática mediúnica, não
faria tantas afirmativas gratuitas e ingênuas. O obsessor é quase sempre um
Espírito voluntarioso, decidido, artificioso, dissimulado e, muitas vezes,
culto, inteligente e invariavelmente informado por um conjunto de fatos que nós
ignoramos, quanto às razões profundas do seu assédio àquela específica pessoa
humana. Que sabemos nós de suas ligações anteriores, de seus mútuos
compromissos, de suas verdadeiras motivações? Por outro lado, sabemos pela
Doutrina Espírita que as faltas cometidas contra o próximo armam automaticamente
o mecanismo da cobrança e é como instrumentos cegos da reação, provocada pela
ação negativa, que os obsessores agem. Não podemos esquecer, por certo, que
mesmo cobrando o que a lei lhes permite e, portanto, agindo como agentes do
resgate alheio, os obsessores não fogem à dura contingência de assumir novos
compromissos que, a seu turno, terão um dia que resgatar. Daí o terrível
círculo vicioso dentro do qual Espíritos rebeldes marcam passo dolorosamente,
alternando suas posições, ora como obsessores, ora como obsidiados mas sempre
sofrendo. Sem conhecer esse mecanismo e sem agir segundo sua lógica férrea, o
exorcismo ritualístico é de uma ingenuidade trágica e de uma inocuidade
lamentável. A misericórdia divina é tão grande, no entanto, que mesmo esse
processo totalmente inadequado sucede às vezes em desatar o no cego das paixões
e libertar os sofredores de suas angústias, ao conseguir que o obsessor
abandone sua vítima. Como se dá isso, a despeito do despreparo dos exorcistas?
Há muitas razões. Em primeiro lugar - e isto Luiz Rodriguez já havia observado
em seu livro - o sacerdote parte de uma
premissa mais válida do que a da ciência oficial, ou seja, ele encara o
fenômeno como invasão de um agente externo, autônomo, consciente, Independente
da personalidade do possesso. Seu engano está apenas em identificar esse agente
externo com o demônio teológico, do que, aliás, os obsessores têm tirado bom
proveito, desempenhando o papel como se de fato o fossem. Nessas condições, o
diálogo com a personalidade invasora, conduzido por um sacerdote inteligente e,
principalmente, de rígidos padrões morais, pode produzir resultados excelentes,
porque, por mais que se esforce num terrível jogo de cena, o obsessor, no
fundo, respeita a força moral daquele que o enfrenta com paciência e amor.
Dificilmente ele cederá pela força bruta ou pelo mero comando de um ritual sem
sentido, conduzido numa língua morta que na maioria das vezes ele nem entende.
Há ainda outra observação. É a de que, de outras vezes, o sacerdote interfere
naquele momento em que a própria lei divina já determinou o fim do processo.
Sabemos, ainda, e sempre segundo a Doutrina Espírita, que há um ponto além do
qual a "cobrança" da falta se torna impraticável, seja por quem for,
pela simples razão de que o sofrimento, a renúncia ou o amor já redimiram o
culpado. Ainda que o obsessor continue inabalável e irredutível no seu
propósito de perseguir e fazer sofrer, a vítima lhe escapa irremediavelmente
das mãos. Ninguém paga aquilo que não deve; do contrário, a lei seria injusta.
Por conseguinte, quando
interrogado a respeito de questões que poderão levar à libertação de sua
vítima, o possessor se revela cauteloso e mais dissimulado do que nunca. Todos nós que ao longo dos anos temos frequentado grupos mediúnicos
de desobsessão testemunhamos o esforço e a habilidade que o chamado doutrinador
deve pôr em prática para extrair as informações que lhe permitam montar o
quadro das razões antecedentes que levaram os Espíritos em tratamento àquele
estado de comprometimento e angústia. A imantação do obsessor ao seu
monoideísmo parece irredutível, alcança o ponto da mais terrível obstinação.
Ele não quer por nada neste mundo abandonar a sua vítima; seu único propósito é
vingar-se implacavelmente, esquecido de que ele próprio, fazendo parte
integrante daquele círculo vicioso, tornou-se vítima exatamente porque
anteriormente também fez vítimas, e que, perseguindo para vingar-se, reabre o
círculo. Com isto, arma o dispositivo que virá fatalmente sobre ele com todo o instrumental
da dor que vai gerar nova revolta e, assim, indefinidamente.
Para fugir, portanto, às óbvias
implicações da perfeita autonomia das personalidades envolvidas, Osterreich
busca saídas por outros canais, propondo hipóteses que podem ajustar-se a
alguns aspectos da questão, mas não às demais ou a todas.
Observa, por exemplo, que frequentemente
o "demônio" responde a perguntas que não chegaram a ser enunciadas,
ou, por outra, foram apenas pensadas pelos circunstantes. Como é que o
professor explica isso? Muito simples: o processo é idêntico àquele que se
desdobra quando conversamos mentalmente com alguém e em nossa imaginação o
"ouvimos" responder ... No caso da obsessão haveria apenas uma
extraordinária exacerbação do fenômeno, que levaria a uma excitação do aparelho
vocal, levando-o a uma ação compulsiva. Assim, o fato de que o
"demônio" responde sempre de maneira evasiva e cautelosa às questões
delicadas deve ser interpretado, segundo Osterreich, da seguinte maneira: a
pessoa imaginária age exatamente como a real, pois, definitivamente, não pode
existir uma segunda pessoa e sim "uma
mera aparência enganadora".
E, com isso, está encerrado o
assunto e resolvido o problema, na opinião do eminente professor.
Aqui precisamos de uma pausa. O
livro do Dr. Osterreich é realmente fascinante e contém um acervo preciosíssimo
de fatos e de informações. Não podemos ter a pretensão de examiná-lo todo e na
profundidade necessária, nos rígidos limites de um artigo. Com todo o trabalho
de síntese que tenho procurado desenvolver até este ponto, observo desalentado
que apenas chegamos até à página 70 das suas 400! Vamos, pois, sumarizar para
concluir, mesmo ao custo de abandonar inúmeras observações de elevado interesse
humano, como o caso de Madre Joana dos Anjos.
O capítulo 4.° do livro é
dedicado, segundo informa o título, à gênese e extinção da possessão. É aqui
que mais divergimos das ideias e sugestões do professor Osterreich, que desdobra
em novos aspectos a sua teoria da divisão da personalidade. Menciona ele, a
certa altura, a natureza por assim dizer "contagiosa" do fenômeno que
atinge circunstantes e, com frequência impressionante, os próprios exorcistas.
“Sacerdotes exorcistas - escreve
ele à pág. 92 - estão particularmente expostos a essa “infecção" e raros
são os que têm conseguido escapar completamente."
Reportando-se ainda ao caso das
freiras de Loudun, informa que outros exorcistas, além do padre Surin, foram
também atingidos, como os padres Lactance, Tranquille e Lucas. O primeiro deles
morreu em consequência dos sofrimentos impostos pela possessão, depois de ter
conseguido expulsar (o termo é altamente inadequado, a meu ver) três demônios,
ou seja, três Espíritos da prioresa de Loudun.
Acha mesmo Osterreich que o
próprio ritual do exorcismo contribui poderosamente para propagar o fenômeno pelo poder de sugestão que contém. Essa
observação não tem o valor absoluto que o autor lhe atribui, mas certamente há algo
de verdadeiro nisso, no sentido de que as pessoas que assistem ao complicado
ritual, evidentemente em atitude de concentração e recolhimento, oferecem condições
propícias à incorporação dos Espíritos ali presentes, quando possuem em estado
latente ou ostensivo faculdades mediúnicas.
Por isso, na opinião de
Osterreich, o exorcismo é a contraparte exata da gênese da possessão e explica:
“Da mesma maneira que a possessão surge, no homem, da crença de que ele
está possesso, contrariamente desaparece, quando o exorcismo é bem sucedido,
por meio da crença de que a possessão não subsistirá." (!)
A coisa não é tão simples assim,
pois não se trata, aqui, como acredita o professor Osterreich, de um fenômeno
de auto sugestão, que pode ser desfeito por outra sugestão. O próprio autor não
parece tão certo da sua doutrina ao afirmar, logo adiante, que "a natureza íntima deste efeito de convicção
no fenômeno psíquico não é conhecida e não pode ser elucidada".
Sempre dogmático e sem aceitar a
contribuição da Doutrina Espírita, ele acha que a coisa não só é desconhecida como não pode ser esclarecida. Mais um
dos seus impossíveis...
Estuda, a seguir, uma série de
fórmulas exorcistas, coletando judaicas, egípcias, católicas e outras. Algumas
são estranhíssimas, outras ridículas - como o exorcismo para o leite, a fim de
expulsar (sempre a ideia da expulsão) as criaturas malévolas alojadas no líquido
-, todas inócuas, porque o que vale diante do obsessor não são as fórmulas e os ritos, mas a autoridade e o sentimento de quem lhe fala.
Descreve os vários recursos, como
as ameaças, os gestos, as palavras que o exorcista deve utilizar e lembra o
principal exorcismo, do Rituale Romanum, publicado por ordem
do papa Paulo V, que recomendava, entre outras coisas, abanar a estola do padre
em torno do pescoço do possesso e fazer a imposição das mãos, ou seja, o passe
magnético.
Menciona um caso citado por Eschenmayer
em que o exorcista "esforçou-se formalmente
por converter o demônio", no que estava absolutamente certo, pois na
realidade ele está se dirigindo a uma entidade espiritual tão livre e autônoma
como qualquer outro ser humano e que precisa ser esclarecida de sua verdadeira
posição para poder compreender e não ser expulso sem nenhuma explicação que o
convença. Por isso, o próprio Osterreich informa que o sucesso do exorcismo
depende da autoridade e do poder de sugestão de quem o pratica.
“É, ainda mais importante, especialmente em períodos religiosos -
acrescenta o autor -, que o exorcista deva estar, ele próprio, convencido da
realidade da possessão, se isto contribuir para fortalecimento de sua fé no exorcismo.”
Claro! Se mesmo convencido dessa
realidade, muitas vezes o exorcista se dá mal o que pode ele esperar se vai
cuidar do caso como de um simples fenômeno de sugestão ou de múltipla
personalidade, como querem certos cientistas? A evidência da autonomia da personalidade
manifestante é gritante, mas o pior cego ainda é aquele que não quer ver. Não adianta!
Em vários casos - a observação é de Osterreich - o "demônio" impõe condições para abandonar sua vítima, isto é,
"negocia" com o
doutrinador, cedendo um pouco em troca de algo que deseje. Por tudo isso,
principalmente, e porque suas teorias explicam alguns casos mas não se adaptam
a outros, o professor observa aí pela página 107:
“O exorcismo não é, contudo, eficaz em todos os casos, mas de modo geral
não dispomos ainda de evidência precisa que explique por que a sugestão dá resultado
em um caso e não em outro."
A segunda parte do livro é um
estudo meticuloso da possessão em todos os tempos e em todas as latitudes. Há
observações de alto interesse acerca dos oráculos gregos e muitas páginas sobre
os fenômenos mediúnicos modernos que o eminente autor se recusa a aceitar no
contexto espírita, insistindo em chamá-los de possessão artificial e possessão
voluntária. Lamentavelmente não podemos ir até lá sem alongar demais este
trabalho, que é apenas uma notícia sobre o livro do Dr. Osterreich. Vamos,
pois, concluir.
Em suma, a possessão é encarada de
três maneiras diferentes quanto à sua gênese e, por conseguinte, é tratada
também de três maneiras diferentes.
A ortodoxia religiosa -
especialmente a católica - considera a possessão como invasão do demônio e
trata-a por meio de um ritual cuidadosamente preparado, com gestos, fórmulas
canônicas, orações especiais, mas sempre com a intenção de expulsar o invasor,
sem tentar dialogar com ele para esclarecê-lo.
Para a ciência oficial, o fenômeno
resulta de uma doença mental e o tratamento é conduzido à base de análise ou
drogas, ou ambas.
O Espiritismo considera na gênese
do fenômeno da possessão a faculdade mediúnica desgovernada e trata o caso pelo
processo do diálogo com o Espírito possessor, buscando compreender suas razões
para esclarecê-lo e libertá-lo da sua própria ignorância e confusão mental.
As três posições são bastante
afastadas umas das outras, mas é preciso convir, sem paixões e com todo o
respeito diante de cada uma delas, que a atitude da ciência é a mais esdrúxula
e menos realista, procurando atingir as causas cuidando apenas dos efeitos. A posição religiosa é mais objetiva, porque admite a presença de uma
personalidade invasora. Seus erros estão em identificar essa personalidade
invariavelmente com o demônio e em tentar apenas expulsá-lo, quando deveria atraí-lo
amorosamente ao esclarecimento. A posição adotada pela Doutrina Espírita é a que
foi ensinada pelos próprios Espíritos. E quem melhor do que eles para nos dizer
das complexas realidades do mundo em que vivem? A prática espírita jamais
procura expulsar Espíritos e sim ajudá-los. Jamais os considera demônios que
cumpre fazer voltar ao inferno mitológico, mas irmãos em Deus que é preciso
libertar de suas próprias angústias e aflições.
E se o exorcismo é quase sempre
ineficaz e com frequência impressionante envolve também o exorcista no processo
da dor; se o tratamento clínico dos casos de possessão é longo, difícil e
duvidoso, a terapêutica do amor e do esclarecimento usada nas sessões de
desobsessão produz resultados espantosos, frequentes, abundantes e seguros. E
que alegria, Senhor, quando recebemos nos braços, agradecidos e de olhos
úmidos, o irmão que chora o seu arrependimento, lamenta o seu remorso e se
prepara para a reconstrução do seu mundo interior, iniciando a longa caminhada
para a paz.
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