Fé
por Marcílio
Gonzaga
Reformador (FEB) Junho 1946
Um Espírito de grande elevação
moral pode descer de alta esfera, em missão, e encarnar-se na superfície da
Terra. Pela sua afinidade com o Mundo Espiritual superior, terá ele, mesmo
durante a encarnação, grande poder, mas não saberá explicar aos homens de onde
lhe provém essa força invencível que lhe permite realizar coisas impossíveis aos
outros homens. Não saberá explicar, porque não tem lembrança analítica de sua
ligação com Deus, com os Espíritos superiores que movem as forças cósmicas; em
vez de consciência analítica, conserva apenas intuição, que é uma espécie de
memória sintética que se manifesta em forma de pendores, confiança em si e em Deus,
certeza inexplicável do triunfo final do bem. Por falta de outra palavra que
melhor o dissesse, damos a esse poder o nome de Fé.
A Fé perfeita, portanto, só
existe nos grandes Missionários e realiza prodígios; na palavra de Jesus, ela
transporta montanhas. Para o comum dos homens, a Fé é ilógica, insensata,
porque não segue os caminhos tradicionais, não respeita princípios consagrados,
realiza ou luta para realizar coisas utópicas, abre caminhos novos que parecem
loucuras. Para os contemporâneos do Missionário, sua Fé é cega e por vezes
perigosa, pode levar os homens a grandes lutas. Não raro o homem de Fé termina
sua encarnação pelo martírio, mas sem fraquejar, sem esmorecer, sem se
arrepender de tudo que fez. Para as massas, ele é um louco, um fanático, do
qual a Sociedade se deve libertar pelos seus meios normais de repressão: prisão
ou morte. Um exemplo: Joana d'Arc, uma jovem analfabeta, da aldeia de Domrémy,
nunca tinha visto um exército; tinha certeza de que poderia vencer os exércitos
ingleses e expulsá-los da Pátria, sagrar o Rei e assim salvar a França. Tudo
isso era uma série de absurdos, pensamentos ilógicos. Então iriam confiar o
comando supremo dos exércitos àquela menina ignorante de arte militar, sem força
alguma para se fazer obedecer? Seria evidente que cairia em ciladas e pereceria
com todas as tropas; seria o suicídio da França em muito boa lógica. Impossível,
portanto, obter a posição de Comandante em Chefe dos exércitos franceses. Sua
fé em si mesma e em Deus era rematada loucura diante do bom senso. Seria inútil
deixar suas ovelhas no campo e partir para Vaucouleurs, porque ninguém lhe daria
ouvidos. Era isso que em boa lógica deveria pensar qualquer pessoa sensata.
Porém, ela partiu. O governador de Vaucouleurs, Roberto de Baudricourt, achou
absurda a sua pretensão e não quis atender-lhe: ela, porém, não desistiu e por
fim foi atendida, foi levada à presença de Carlos VII que também se opôs à sua
pretensão, mas teve que ceder. Aos 17 anos de idade comandava ela as forças;
levantou o cerco de Orléans, bateu os ingleses em Patay, fez sagrar o rei
Carlos VII em Reims. Estava terminada sua missão. Foi traída pelos seus,
vendida aos ingleses, julgada por um tribunal eclesiástico sob a presidência do
Bispo de Beauvais, Pedro Cauchon, condenada como feiticeira e queimada viva, em
1431, aos 19 anos de Idade. Em 1920 foi canonizada e hoje é Santa Joana d'Arc.
A Fé de Joana d'Arc operou
milagres.
Outro exemplo da vitória da Fé
de um grande Espírito: Lázaro Luiz Zamenhof, nascido em 15 de dezembro de 1859,
em Bialystok (cidade do oriente da Polônia), cuja população fala quatro línguas
diferentes e vive em lutas de raça, de religião, de língua. Aos cinco anos de
idade compreendeu ele que todas aquelas divergências partiam da incompreensão
recíproca e que sua cidade era apenas a miniatura do mundo; porém, que ele
poderia elaborar uma língua artificial, comum de todos, e fazê-la aceitar pelo
mundo para compreensão e confraternização dos homens. Fazer o mundo egoísta
aceitar uma língua artificial e inútil nos primeiros tempos, quem seria o
primeiro a tomar esse trabalho? É evidente que o mundo só aceitaria tal língua
quando ela fosse útil, porém, ela só seria útil depois que o mundo a aceitasse.
Impossível romper esse círculo vicioso. Sensatamente
deveria desistir logo da empresa; mas a Fé lhe dizia que não, que era
necessário elaborar a língua artificial e divulgá-la no mundo. Trabalhou com fé
dez anos na elaboração e a obra chegou à sua conclusão teórica, mas, para iniciar
a divulgação? Não encontrou editor para a primeira brochura de 40 páginas que
tinha de publicar de início e essa brochura teria que ser traduzida e publicada
em todas as línguas do mundo para começar a divulgação. Dois anos andou o jovem
à procura de editor para a primeira das mil brochuras que teria de publicar e
não encontrou. Finalmente, revelou toda essa penosa história à sua noiva e esta
a expôs ao pai, um negociante de pouca cultura mas foi este que entendeu todo o
alcance da iniciativa e promoveu a impressão do primeiro e de outros opúsculos.
Depois dessa publicação e de toda a zombaria do mundo e ataques de toda sorte,
Zamenhof perseverou trinta anos sem esmorecer um momento, com a mesma Fé
inicial. Já são decorridos 61 anos do tempo em que anelava ele pelas ruas de
Varsóvia mendigando inutilmente um Editor, e hoje em todos os países há
Editores, os esperantistas contam-se por milhões, milhões de cruzeiros
gastam-se anualmente com livros em Esperanto. A Fé de Zamenhof venceu o mundo;
já não existe uma só pessoa sensata que negue a existência e a utilidade do
Esperanto.
Desnecessário multiplicar os
exemplos. Cada leitor conhecerá e juntará outros. Um preferirá Colombo, outro
se lembrará de Edison, um terceiro conhecerá a vida de Pascal, alguém incluirá
Paulo de Tarso sem nos atrevermos a lembrar de pôr na lista o Divino Modelo,
Jesus - o Cristo.
Se a Fé perfeita só pertence aos
grandes Missionários e só eles podem operar esses prodígios, é porque não
perdem, durante a encarnação, a afinidade que os liga ao Mundo Espiritual superior;
e nós, pobres pecadores que nunca fomos a esferas superiores da espiritualidade?!
De onde vamos haurir Fé? E como havemos de viver sem a luz da Fé?
Ficaremos nas trevas
da negação e da dúvida? Como havemos de obter a Fé sem a qual nada se faz, nada
se move?
Efetivamente não podemos
adquirir aquela Fé de Joana d' Arc, de Zamenhof e de outros grandes
Missionários, porque não viemos das altas esferas espirituais; mas não
necessitamos dela por enquanto, porque não nos foram confiadas as grandes
Missões que reclamam aquela força moral. Nossas missões - porque todos nós as
temos - são pequenas, são guiadas por Espíritos bons, porém, mais próximos da
Terra e com estes nós temos inteira afinidade, conservamo-nos em contato
durante toda a nossa encarnação. Tenhamos boa vontade em nossas pequenas
tarefas e para elas não nos faltará Fé; teremos todo o auxílio de bondosos
Irmãos invisíveis que são igualmente executores dos desígnios de Deus nos
trabalhos menores, ao nosso alcance. Não há diferença essencial, mas apenas de
grau, entre nós e os grandes Espíritos.
Zamenhof cumpriu, ou está
cumprindo ainda Iá do plano espiritual em que se acha, uma missão que tem de
vencer séculos e milênios e transformar o mundo. Joana d'Arc teve a missão de
libertar a França e elevá-la à nação líder do pensamento humano, ao ponto de
onde deveriam partir todas as grandes ideias durante séculos. São missões
imensas, para a quais desceram à Terra Espíritos elevadíssimos.
Outro terá a missão de construir
ou orientar uma cidade e virá de uma esfera menos elevada, mas ficará em
afinidade com essa esfera, dela haurirá a Fé necessária a cumprir sua missão
(se não se desviar da tarefa que trouxe).
Ainda um terceiro
terá por missão construir prédios; e tudo ocorre do mesmo modo, em escala menor.
Desde que se conserve fiel à sua tarefa, não lhe faltarão Fé, auxílio,
perseverança.
Este terá nascido para exercer
pequena função pública, ou para agricultor, ou operário, porque todas essas
tarefas são necessárias e ajudam o progresso, mas não reclamam o mesmo grau de
Fé necessário a um reformador social, a um inventor, a um sacerdote, a um sábio.
O cumprimento fiel de um pequeno
dever é ato que conserva a afinidade com os nossos Guias e, portanto, fortalece
a Fé. Contrariamente, a desonestidade, a irritação, a impaciência, a rebeldia
no cumprimento do mínimo dever, rompe a afinidade com os bons Espíritos e nos
projeta nas trevas da dúvida.
O estudo honesto do Espiritismo
- não o estudo com finalidades de crítica e polêmica contra as Igrejas (1) - é excelente
fonte de Fé. Aprendemos a lei das afinidades que governa o Mundo Espiritual e
ficamos certos que estamos sempre atraindo Espíritos para nos ajudar a
praticar o bem ou o mal, conforme nossos próprios sentimentos e aspirações; mas
que só os bons nos podem dar Fé e conduzir à felicidade real. Ficamos cientes
de que cada pensamento nosso encontra sua afinidade no Mundo dos Espíritos e
atrai um parcela de força para nos ajudar, ou infelizmente , para nos
prejudicar, se o pensamento for egoísta e mau.
Pelo cumprimento honesto dos nossos
deveres, vamos recebendo tarefas maiores e com elas o aumento de Fé para
executá-las. Por esse crescimento lento através das sucessivas encarnações, um
dia chegaremos à Fé que transporta montanhas e desloca mundos.
(1) É evidente que o estudo de uma
doutrina somente com finalidade de combater outras, não é obra de amor, porém,
de orgulho, de ódio, e não atrai o auxílio dos Espíritos bons; chama apenas os
violentos e combativos, aos quais só a luta interessa. Assim, compreende-se que
alguns intelectuais, mesmo com bons conhecimentos da Doutrina, nunca chegam a possuir
Fé; permanecem sempre combativos e sem afinidade com ninguém, vendo unicamente a
parte má da coisas, dos homens e até de seus companheiros de ideal. A Fé sabe
esperar com a certeza de que o bem triunfará do mal tão fatalmente como a
criança tem de crescer, tornar-se adulto e abandonar as travessuras infantis:
não declara guerra à criança para que se transforme repentinamente em adulto.
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