A Casa do Caminhante perdido
José
Brígido
(Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Dezembro 1959
A pobre viúva
vivia, aflita, em orações comoventes, pedindo a libertação do filho, condenado
e recolhido há vários anos a uma penitenciária.
Ó Pai! Ele é
inocente, tenho a certeza de que ele é inocente! Porque, então, paga por um
crime que não cometeu, vendo sua mocidade poluída e arruinada?! Porquê, ó Pai?!
Sempre concluía sua
invocação a Deus forçada pelo pranto.
O processo que levara
o rapaz à prisão, por homicídio, fora minucioso. Todas as circunstâncias e a
falta de álibis concorreram para a sua condenação. De nada adiantaram os
argumentos de seu advogado, que se viu batido pela dialética de um promotor
talentoso, mas frio e cruel, cujas palavras impressionaram decisivamente os jurados.
Ela, pobre, sem recursos, doente, nem sequer podia viajar para ir vê-lo e
consolar a profunda paixão maternal. Dava pena ver aquela mulher de cabelos
brancos, de corpo minguado, a face emurchecida pelo sofrimento, como uma flor
exposta aos rigores do sol, depois de retirada sem cuidado da estufa protetora.
O admirável é que ela não perdia a fé. Quase
aos rastos, penetrava o pórtico da igreja, fazia "promessas",
multiplicava a contagem dos terços e regressava, cada vez mais triste e
exausta, ao aposento humilde, na esperança de que, na próxima vez, o milagre se
verificaria ... E tudo continuava na mesma...
Entretanto, que fé
prodigiosa, a que sustentava a vida quase exaurida de tão infeliz criatura!
Cada insucesso fazia renascer lhe na alma um raio de esperança nova e ela
voltava a rezar tornava às "promessas", aumentava o itinerário dos
dedos cansados nas contas gastas do rosário extenso, Certa manhã, ao levantar-se,
sentiu-se esgotada. Por instantes, o desânimo ensombreceu o espírito forte
dessa valorosa mulher, que dava tão grande demonstração de amor filial. E ela
chorou mais do que das outras vezes, porque talvez pensasse, num instante de
fraqueza, que os ecos dos seus gemidos e das suas orações se perdessem no longo
e lúgubre silêncio das noites de insônia.
*
Logo, porém,
recuperou a energia que parecera fugir-lhe. Não compreendia porque seu filho,
tão meigo e bom, experimentava as torturas dessa provação, embora inocente. Ele
não podia ser culpado! Ele não era culpado! Tinha absoluta convicção da sua
inocência e, enquanto tivesse forças, haveria de pedir por ele... Nesse dia,
sua enfermidade progredira, tanto que, para locomover-se, o fazia com extrema
dificuldade. Sua vontade, no entanto, era poderosa. Iria uma vez mais à igreja
e solicitaria a intercessão da divina justiça. Tudo lhe dizia que, dessa vez, seria atendida pelo Pai, que é bom,
magnânimo e compassivo.
Cambaleante,
afogueada pela febre, mas fortalecida pela esperança que lhe dava uma alegria
inusitada, partiu a caminho do templo. Cada passo exigia um sofrimento a mais,
porém todas as dores físicas eram bem menores que a dor moral que lentamente a
quebrantava. Entre o quarto em que morava e a igreja havia modestíssimo centro espírita, que ela,
presa aos preconceitos religiosos em que fora criada, evitava, cheia de
temores. E, à proporção que avançava, suas forças iam cedendo, até que uma dor
forte a derrubou bem à porta do centro espírita "Casa do Caminhante
Perdido". O frio e a chuva davam um tom fúnebre à noite que descia. Levando
a esquálida mão ao peito, ela gritou e desfaleceu. Imediatamente socorrida, foi
levada para o interior da "Casa do Caminhante Perdido", onde recebeu
carinhosa assistência. Quando, ofegante, a pobre mulher entreabriu os olhos,
tristemente profundos e marejados, seu olhar inquieto se encontrou com um quadro
simples, em que se via Jesus acariciando uma cabeça de
criança, Um suspiro profundo visitou lhe o colo ressequido. As lágrimas
cresceram e, céleres, abandonaram as órbitas anemizadas pela desventura.
- Minha irmã ainda
está sentindo dores? - perguntou-lhe o dirigente do centro.
- Quase nada, está
passando..., - murmurou ela, quase imperceptivelmente.
- Descanse um
pouco. Feche os olhos e tente repousar...
- Obrigada... foi a sua resposta apagada, por entre os
lábios descorados, onde não chegou a aflorar o sorriso de reconhecimento.
*
Enquanto a
socorrida dormia, Iniciou-se no Centro, por ser o dia fixado, a sessão espírita
de costume. Quase ao fim dos trabalhos, um Espírito se manifestou através do
médium da casa:
- Desejo falar com
a senhora X...
Consoante a praxe,
foi pedido o comparecimento à mesa da senhora mencionada. Ninguém respondeu.
Novo silêncio cobriu o apelo seguinte. O Espírito insistiu, ao ser informado de
não se achar presente a senhora X.
- Ela está
presente! Vocês acabaram de socorrê-la.
Assim dizendo, o
Espírito fez o médium aproximar-se do local em que a infeliz viúva se
encontrava deitada e já meio desperta, e lhe disse com a maior suavidade:
- Minha querida X...
Ao ouvir aquela
voz, que lhe devia ser muito familiar, ela descerrou os olhos e, esboçando um
sorriso, comentou, dirigindo-se ao médium:
- Ah! Interessante.
O senhor tem a voz tão parecida com a dele! Interessante...
O Espírito persistiu:
- Minha querida X...
Sou eu, o Leandro, teu marido, quem está aqui a teu lado... Não te assustes.
Queres uma prova? Lembras-te daquela moeda que, juntos, lançamos ao lago,
quando estávamos noivos? Lembras-te?
Ela, semi perplexa,
mas serena, pensou um instante e retrucou a seguir:
- Lembro-me sim,
mas esse exemplo nada prova. O senhor (sua palavra era dirigida claramente ao
médium) tem a voz muito parecida com a dele, não há dúvida alguma. Pode,
entretanto, ter sabido de tudo isso... Não! Não creio nessas coisas. Os mortos
estão mortos, não voltam! Isto é ....
Debulhada em
lágrimas, a infeliz cobriu o rosto com as mãos.
Nesse momento, o
médium se debruçou mais um pouco sobre ela e a voz do Espírito murmurou ao
ouvido da desditosa criatura alguma coisa que a fez estremecer, tanto que,
surpreendida, ela exclamou:
- Como pode ser! Se
é real que tu estás aqui, Leandro, porque não me apareceste antes, para
ajudar-me a vencer as tremendas dificuldades que tenho enfrentado até hoje?
Não! É o demônio que quer tentar-me!
Em derredor da
doente, as preces continuavam num ambiente de profundo silêncio. Todos procuram
confortá-la e os trabalhadores invisíveis não cessavam de fortalece-la com
adequados passes. Em volta de sua cabeça, divisavam os videntes um halo de luz...
E, assim, foi a pobre sofredora reagindo satisfatoriamente. Era compreensível a sua resistência, porque,
educado num mundo de preconceitos, era-lhe impossível aceitar logo a evidência
da verdade.
Depois de alguns
segundos, o Espírito de Leandro tomou outra vez a palavra:
- Acalma-te,
querida X. Esta é uma casa cristã. Nada aconteceu antes porque ainda não havia
chegado a hora, nem foi a toa que caíste diante de nossa porta. Nada sucede por
acaso. Tudo tem uma razão para acontecer e muitas vezes nos surpreendemos e
negamos a realidade, porque desconhecemos os motivos que a determinaram. É por
isto que tudo tem a sua hora: Quem está a teu lado é realmente Leandro, o teu
marido. Não morri totalmente, como pensas. Quem morreu, se assim podemos dizer
da transformação a que a carne é submetida depois de abandonada pelo Espírito,
foi o meu envoltório físico, a roupagem terrena. Minha alma permanece intacta e
desfrutando de todas as suas faculdades morais e intelectuais. Aludi à moeda
para demonstrar-te a sinceridade da minha afirmativa de estar presente. Sou agora
apenas Espírito, e para poder manifestar-me na Terra, de acordo com as leis que
regem as relações entre o mundo físico e o mundo invisível, tenho de valer-me
do corpo somático de algum irmão de boa-vontade e dotado de condições que são
denominadas "mediúnicas". Sem isto não me seria dado falar-te como te
falo agora, até com a mesma voz de que pude valer-me quando ainda no curso da
minha encarnação. Sem esse corpo a mim emprestado, continuarias ignorando a
minha presença, como sempre a ignoraste, apesar de jamais eu ter deixado de
estar a teu lado nos momentos agudos da tua vida, minha
querida X. Aqui não há demônios, conforme a calculada fantasia de velhas
religiões te ensinou. Estás cercada de amigos, de obreiros de Jesus, que lutam
pela conquista de graus evolutivos progressivamente mais altos. Mesmo que os
irmãos ainda em grau inferior de evolução moral pudessem ser qualificados de demônios,
mereceriam, como merecem, a nossa ajuda, porque, conforme as leis divinas,
nenhum Espírito poderá ser eternamente mau, pois a finalidade da vida, em
qualquer plano, é o Bem.
A senhora X,
atenta, compreendia o esclarecimento oportuno de Leandro. As mutações de sua fisionomia
denotavam que já começava a interessar-se pelo delicado assunto, novo e
maravilhoso para ela, embora cheio de mistérios, porque nunca soubera a verdade
sobre o Espiritismo.
E Leandro
prosseguiu:
- Tenho partilhado
de todas as tuas mágoas e procurado também confortar o nosso filho, preso por
crime que não cometeu. Mas, antes de continuar, volto a falar-te daquela moeda.
É muito importante para a tua orientação. Recordas-te de uma particularidade
que ela apresentava?
- Não - respondeu
ela, depois de pensar alguns instantes.
- Era uma moeda italiana.
Descobriste, já à beira do lago, que o “l” da palavra "Lire" estava
cortado ao meio... Comentamos juntos esse fato, antes de a atirarmos à água.
Lembras-te, agora?
Iluminou-se, então,
a face pálida da senhora X. A revelação era forte, mas necessária. Amparada
como se achava por irmãos invisíveis, ela não corria nenhum risco de
emocionar-se em demasia.
Apertando as mãos
do médium, expandiu-se:
- Lembro-me, sim!
Isso é verdade! Leandro, nunca pensei que fosse possível acontecer o que está
acontecendo! Durante anos tenho pranteado a tua ausência, pois julgava que
estivesses perdido para sempre. Sinto, porém, que és tu mesmo quem está a meu
lado. A tua voz, o teu jeito de dizer as coisas... Mas... e o nosso filho?
Leandro,
afagando-a, tornou:
- Prepara-te para
outra revelação. Nossa vida é entretecida de consequências pelo que fizemos e
fazemos. Há uma lei - de causa e efeito - que regula, baseada em existência
anterior, a nossa vida presente e futura. Não temos céu nem inferno, segundo a
concepção antiga de religiões superadas pela Razão. Assim como ninguém é
irremediavelmente condenado a castigos eternos, porque a todos é dada a oportunidade de reabilitar-se por si mesmo,
através de outras vidas, onde cada qual expia erros e faltas, preparando-se
para existências mais felizes, todos alcançam o prêmio do bem que praticam,
realizando as colheitas decorrentes de semeaduras abençoadas.
Nosso filho é
inocente nesta encarnação. Nada fez agora, mas está sofrendo no cárcere culpas
do pretérito, de outras existências. Isto não quer dizer que o deixemos sem
defesa. Continuaremos a pugnar por sua libertação, que está próxima. Seu nome
será redimido e o verdadeiro culpado, ferido pelo remorso, concorrerá para
restabelecer-lhe a honra maculada.
- Ah! Leandro! Como
Deus é bom! Alguma coisa me dizia que, hoje, minhas preces não seriam
infrutíferas. Será que nosso filho será libertado antes do Natal? Faltam tão
poucos dias... Se eu pudesse ir buscá-lo para consolar-me nele! Se eu pudesse
afagá-lo, alisando lhe os cabelos com a ternura das minhas mãos!
Nova crise de choro
sobreveio.
Leandro, como todos
os presentes, estava comovido. Procurou confortá-la:
- Paciência, minha
querida; paciência... Falta tão pouco. " A justiça de Deus não sofre
injunções. Confia, como tens confiado até aqui. Preciso partir. Sabes agora que
também trabalho pela salvação de nosso filho. Ele está distante, mas virá
ver-te logo que lhe soar a hora da remissão.
A senhora X,
lacrimosa, já sorria aquele sorriso simpático e triste dos sofredores que não
perdem a fé. Bendizia as circunstâncias que a haviam levado à "Casa do
Caminhante Perdido".
Se pudesse, nos
dias porvindouros voltaria para sentir a presença de Leandro e falar-lhe, se
possível. Aprendera que Jesus não marca previamente os lugares que percorre na
grande obra da caridade, nem reconhece divisões religiosas e sectárias. Para
Ele, todo ser humano é um irmão que deve ser envolto no Seu amor.
*
Decorreram alguns
dias e já se ouviam os ruídos alegres da véspera do Natal. A velha viúva, em
estado comatoso, fora recolhida a um hospital. Não pudera saber, portanto, que
os jornais anunciavam com estardalhaço que um homem se apresentara como culpado
do crime de que era acusado seu filho, As manchetes exploravam pormenores do
erro judiciário, que levara à prisão, por mais de dez anos, um jovem inocente!
...................................
Comprovada a
procedência da confissão feita pelo verdadeiro criminoso, foi a notícia levada
ao filho da senhora X. Sua alegria foi enorme mas não resistiu à comoção e
tombou fulminado por uma síncope cardíaca. Estava, contudo, com o nome limpo,
reabilitado, Resgatara a culpa de haver, em encarnação anterior, deixado que
outro inocente purgasse na prisão o crime que ele próprio consumara. O "carma'
não falha e a "pena de talião' sempre se exerce através da "lei do
retorno".
*
Naquele mesmo
Instante, já na madrugada do Natal, a senhora X transpunha o limiar do Além com
a mais santa serenidade. Vislumbrou diante de si dois vultos que para ela
caminhavam. Admirada, porque não se apercebera da transição, partiu,
fitando-os, como a querer identificá-los. Em seguida, louca de alegria, partiu
em direção a eles, exclamando; ao mesmo tempo que de seus olhos corriam lágrimas
de felicidade.
- Meu filho! Meu
filho!..
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