Um estranho caso de
obsessão
Frederico
Francisco / Yvonne A. Pereira
Reformador
(FEB) Abril 1976
De um jovem que
se assinou J. S. P., em carta que nos escreveu, recebemos a seguinte
interrogação:
- "Será
condenável um homem se tornar noivo de uma jovem, marcar a data do casamento e
depois verificar que é a outra que ama, e, por isso, desejar romper
o compromisso com a primeira? Este é o meu problema. Que devo
fazer? Sinto que ambas gostam de mim, embora de minha parte já exista uma
definição."
*
Isso faz-me
lembrar o episódio ocorrido com Jesus, citado pelo evangelista Lucas, no
capítulo 12, vv. 13 e 14:
- "Então, no
meio da turba, um homem lhe disse: "Mestre, dize a meu irmão que divida
comigo a herança que nos tocou." Ao que Jesus respondeu: "Ó homem!
quem me designou para vos julgar, ou para fazer as vossas partilhas?"
Não acreditamos
que esse gentil correspondente esteja dizendo a verdade. Deve tratar-se apenas
de uma curiosidade, uma investigação que ele faz, a fim de obter resposta, à
luz do critério doutrinário, para casos a que, infelizmente, tantas vezes
assistimos em nossa vida de relação. Não nos sentimos, aliás, no direito de
opinar sobre ocorrência tão melindrosa, na hipótese de se tratar de uma
realidade que o amigo J. S. P. viva no momento. Não obstante, o bom senso
indica que o fato de jogar com os sentimentos do nosso próximo é grave, e pode
resultar em consequências muito desagradáveis, mesmo dramáticas. Muitas vezes,
a leviandade praticada por alguém, em casos de amor, pode refletir-se em
Além-Túmulo e arrastar a uma obsessão aquele que feriu um coração com a traição
ou o desprezo. A lei de caridade manda-nos respeitar o coração amigo que se nos
devota, e procurar não iludi-lo com falsas promessas ou atitudes levianas. Uma
solicitação de casamento deve ser refletida, amadurecida, antes de realizada,
observando o pretendente se, com efeito, o seu sentimento de amor é sincero, é
fiel para enfrentar um compromisso de tal responsabilidade. Porque tal
compromisso não é apenas social, mas também moral, e o homem de bem deve honrá-lo,
consultando a si próprio antes de tomar a resolução. Este, vale dizer, é um
problema, exclusivamente de consciência, o qual, por isso mesmo, não foge às
necessárias buscas de inspiração na prece sincera e vibrada. Uma ingratidão,
uma traição de qualquer natureza, assim como a hipocrisia diante de um coração
que ama, é erro que poderá reverter sobre quem o pratica, senão de momento,
mais tarde, e, mesmo, em futuro remoto. Responderemos, no entanto, narrando um
fato típico de traição de amor, por nós assistido há cerca de quarenta anos,
fato real e não fantasia de romance, que se passou em certa pequena cidade do
Estado do Rio de Janeiro, a qual era por nós visitada periodicamente. E o nosso
correspondente, se, realmente, estiver envolvido pela própria leviandade,
compreenderá que necessita muita cautela no modo de agir, recorrendo a Evangelho,
a fim de orientar-se.
*
O jovem Sr. A. G.
tornara-se noivo de uma jovem de excelentes qualidades morais, muito delicada
de sentimentos e leal aos afetos íntimos, mas de condições sociais muito
modestas. Era uma boa filha para sua mãe a qual, por sua vez, era viúva e
adorava a filha única entre ternura infinita. Chamava-se Elisa a jovem noiva e,
sua mãe, Madalena. O noivado corria normalmente e o casamento fora marcado para
seis meses depois. Elisa entregava-se ao seu amor com todas as forças da alma,
o coração repleto de esperanças e confiança no futuro. O noivo, por sua vez, mostrava-se
dedicado e atencioso. Não passava um único dia sem visitar a noiva e o idílio
fazia crer à nossa Madalena que a filha seria felicíssima no casamento.
Um dia, no
entanto, o Sr. A. G., que era comerciante e lutava a fim de prosperar,
necessitou viajar a uma cidade próxima - a cidade de A. R. -, lá passando três dias.
Em um baile, a que fora convidado por um colega de comércio, conheceu uma jovem
por nome Terezinha. Dançou prazerosamente com ela, reconheceu-a educada, alegre,
amável, elegante, muito sociável, e enamorou-se. Voltando à sua cidade natal,
meditou em que Elisa era bem inferior a Terezinha, pois não frequentava a sociedade,
vestia-se modestamente, e nem possuía aquela irradiante personalidade da outra.
Elisa notou-o silencioso triste, falando o mínimo, demorando-se menos em suas visitas,
mas de nada desconfiou, porque seu coração era puro e não podia acalentar
suspeitas contra aquele que lhe merecia toda a confiança. Na semana seguinte, A. G. voltou à
cidade de A. R., e Terezinha pareceu-lhe mais sedutora do que no primeiro dia.
Prosseguiu o namoro com a moça a corresponder-lhe ternamente, com imensa
alegria. Finalmente, passou a viajar para a velha cidade de A. R. todos os
sábados, pretextando negócios e lá ficava também aos domingos, deixando a casa
comercial ao cuidado do sócio. Mas, não confessava a Terezinha que era comprometido em sua cidade natal nem rompia o
noivado com Elisa. Faltava-lhe coragem para esclarecer a ambas a própria
situação.
Chegara, no
entanto, a época indicada para o consórcio com Elisa. Mas A. G. desculpou-se, e
pedira mais dois meses de espera. Os negócios não iam bem... enquanto
continuavam as visitas à cidade vizinha, e Elisa, fiel e confiante, e sua mãe
continuavam preparando modesto enxoval. Até que, de uma das visitas a A. R., o jovem
Sr. A. G. voltou casado com a graciosa Terezinha, sem jamais haver desfeito o
noivado com Elisa.
Numa cidade
pequena como aquela, tais acontecimentos, há quarenta ou cinquenta anos
passados, repercutiam como raios que explodissem entre a população. Elisa
soubera do fato logo após o desembarque do casal, que vinha ali mesmo residir.
Mas não pode, nem quis acreditar no que amigos lhe vieram informar. Mas, investigando,
logo se inteirou da realidade, e adoeceu. Adoeceu de paixão, de surpresa, de
choque nervoso, de humilhação, de desespero, de decepção, de desilusão, de
vergonha, de traumatismo moral. Adveio embolia cerebral e, um mês depois, Elisa
morria nos braços de sua inconsolável mãe. Nesse dia, houve revolta entre as pessoas
afeiçoadas a Elisa e sua mãe, e Terezinha foi por elas informada do
procedimento desleal do homem que a desposara. Confessou ela, então, ignorar o
compromisso de A. G. com alguém daquela cidade, e não se sentir culpada pelo
passamento da jovem. Discutiu calorosamente com o marido nesse dia. Mas tudo
passou logo depois, e não mais tocaram no assunto. A hora em que, porém, saia o
féretro de Elisa, sua mãe, desolada, em desespero, exclamou - e suas palavras
repercutiram tão tragicamente pelo ambiente mortuário da sua pobre sala de
visitas que as pessoas presentes estremeceram de impressão e pavor:
- "Minha
filha, vai em paz para junto de Deus, porque eras um anjo que mereceu o Céu! E
fica descansada, porque o miserável que causou a tua morte há de me pagar! Ele
não será feliz, porque eu não o deixarei ser feliz!"
E, três meses
depois, Madalena, sempre inconsolável, inconformada, morria também. A pobre
mulher era cardíaca e não resistiu à dor de perder a filha naquelas
circunstâncias.
*
Cerca de três ou
quatro meses após o passamento de Madalena, Terezinha começou a beber e
embriagar-se. Das primeiras vezes em que o fato se verificou, o marido repreendeu-a energicamente. Houve discussões graves, cenas
lamentáveis. A. G. acusava-a de ter o vício desde o tempo de solteira, e
encobri-lo hipocritamente; que aquela alegria permanente dos seus modos, aquela
vivacidade que todos lhe conheciam, outra coisa não era senão reflexos do
álcool ingerido às ocultas. Chorando, Terezinha afirmava que jamais bebera, que
somente agora uma necessidade irresistível de beber levava-a a procurar, em
qualquer parte, algo com que aplacar aquele terrível desejo que a prostrava. Os
melhores médicos da cidade, e até facultativos de São Paulo e do Rio de
Janeiro, trataram dela. O marido gastava o que certamente não possuía, a fim de
libertá-la do nefando vicio. Mas, era tudo em vão. Terezinha continuava a beber, e cada vez
embrenhava-se no vício com mais ardor. Mas não era vinho, não era cerveja que a
atraíam. Era a cachaça, a cachaça! O terrível veneno que os obsessores preferem
para sugerir aos seus desafetos. Terezinha, dantes tão graciosa, agora se
embebedava até sair à rua, na ausência do marido, e fazer tolices, e dizer
inconveniências, até cair na calçada e entrar em coma alcoólico, como os ébrios comuns. A. G. passava pela vergonha de ser avisado, por
qualquer transeunte, de que sua mulher se encontrava caída, completamente
bêbeda, numa calçada ou numa esquina de rua.
Vieram quatro
filhos desse malogrado matrimônio. E Terezinha não deixou de beber, e não
atendia aos deveres para com os mesmos. Era preciso, então, que o marido se
repartisse entre os próprios negócios e as atenções aos filhos, auxiliado por
criadas. Os filhos cresciam verificando a desgraça em que caíra a própria mãe.
A. G. arruinou-se como comerciante, sendo necessário submeter-se a um modesto
emprego de administrador do cemitério local. E, finalmente, Terezinha já não usava a cachaça
pura, mas temperada a cravo e a canela. No ano de 1940, as circunstâncias da
vida levaram-me à dita cidade. Visitei o casal, pois o conhecia desde há muitos
anos. Ela, então, convidou-me a uma conversa particular, já embriagada, e falou-me, debulhada em lágrimas:
- "Sr.
Frederico, sei que o senhor é espírita e conhece muitas coisas que os outros
desconhecem ... Pelo amor de Deus, liberte-me desse desejo de beber... é uma
força indomável que me arrasta para a bebida! Eu não quero beber! Mas sou
forçada a beber!"
Nessa visita, contemplei, então, um casal desajustado, filhos
infelizes, um homem vencido pela adversidade, uma mulher arruinada por uma
desgraça inconcebível!
Regressando à
minha terra, orei durante algum tempo, e, nas reuniões que fazíamos no nosso
templo espírita, suplicávamos ao Alto socorro para ela. Mas Terezinha continuou
a beber durante mais cinco anos, da mesma forma. Bebeu durante quatorze anos,
sem um só dia de trégua!
Certo dia em que
o Sr. A. G. se lamentava numa roda de amigos, um deles aconselhou:
- "Por que
você não leva sua esposa ao Centro Espírita Bittencourt Sampaio? O Sr. Z, seu
diretor, é um grande médium, apóstolo do Bem, tem curado muita gente, de
variadas doenças ... "
A. G. não era
espírita, mas, impelido pelo desespero, levou a esposa ao Sr. Z, e explicou-lhe
o que acontecia.
Reunidos os três
em gabinete apropriado, o médium Z, que, de imediato, compreendeu o que se
passava, orou e suplicou a Jesus a presença de um dos seus mensageiros a fim de
socorrer a paciente. Apresentou-se, então, à sua vidência, o grande, o iluminado
Espírito de Bittencourt Sampaio, que lhe disse, através da intuição:
- "Chama o
teu médium... Trata-se de uma obsessão... e faremos o que o Senhor
permitir."
Veio o médium --
a própria esposa de Z -. Este, incorporado pelo generoso Protetor presente,
espalmou uma das mãos sobre a cabeça de Terezinha e a outra sobre a médium.
Qual uma faísca
elétrica, o obsessor apresentou-se, incorporando-se na médium. Era Madalena, a
mãe da pobre Elisa, noiva atraiçoada de A. G. Conversaram os dois, como de praxe
em tais reuniões, sob a assistência de Bittencourt, sempre incorporado em Z.
Madalena terminou por submeter-se, não ainda convertida, a
perdoar, mas à irresistível autoridade de Bittencourt. Abandonou a presa, que
subjugara durante quatorze! Terezinha ficou
radicalmente curada da embriaguez em uma semana, pois fora necessário ainda
fortifica-la através de passes, que Z lhe aplicava, ainda sob a
influência curativa de Bittencourt Sampaio.
Mas ...
perguntará o leitor: Por que o Espírito Madalena não obsidiou antes A. G., que
foi o traidor de Elisa, e não Terezinha, que ignorava o compromisso por ele
mantido com aquela?
E nós ousamos
confessar que não sabemos. É possível, porém, que a pobre Madalena, despeitada,
odiando aquela que roubara o coração do prometido de sua filha, preferisse
ferir Terezinha, para que a dor de A. G. fosse mais cruel. É possível que
Terezinha, de algum modo, tivesse tendência para a bebida, sem mesmo o saber;
e, certamente, se esta foi, realmente, inocente da ação reprovável de A. G.,
devia, por alguma remota falta, à lei de Deus e, por isso, teria mais
possibilidade de "dar passividade" a um obsessor, por ser, com
certeza, frágil, além de ser médium, assim expiando um erro do passado,
enquanto o marido expiava o crime cometido no presente. Porque foi um crime o
que ele praticara contra EIisa Madureira certamente, errou. Mas... "quem estiver sem pecado atire a primeira
pedra" nessa pobre entidade que, sob o cuidado do grande e iluminado
Bittencourt Sampaio, encontrou, sem sombra de dúvida, o verdadeiro caminho a
seguir, a fim de redimir-se.
*
Caro Sr. J. S.
P.: No capítulo 18 do evangelista Mateus, v. 10, há esta advertência de Jesus,
o Mestre da Humanidade:
- "Vede, não desprezeis a qualquer destes
pequeninos; porque eu vos declaro que os seus anjos, nos céus, incessantemente
veem a face de meu Pai, que está nos céus", e essa advertência é muito
significativa para todos nós, porque, muitas vezes, poderemos desprezar ou
ferir verdadeiros anjos do Céu exilados na Terra...
Nenhum comentário:
Postar um comentário