Allan Kardec e o mistério de uma fidelidade secular
Hermínio C. Miranda
Reformador
(FEB) Abril 1973
Junto ao dólmen que marca o túmulo de
Allan Kardec, no cemitério Père Lachaise, em Paris, está a sepultura "tão
austera, assustadora e deserta" de Gérard de Nerval. "Que há de comum
entre esses dois mortos - pergunta Jean Vartier -, entre a recordação duma fria
divagação e a messe de uma loucura ardente? Eu daria todos os livros de Allan
Kardec por um soneto do amoroso de "Sylvia". Mesmo no além-túmulo, a
injustiça triunfa. Os cortesãos menos talentosos do maravilhoso são os mais adulados
pela multidão e as rosas não vão para aqueles que as amaram."
Com essa frustração, encerra-se o
livro "Allan Kardec - La Naissance du Spiritisme" ("Allan
Kardec - O Nascimento do Espiritismo"), do jornalista Jean Vartier, edição
da Livraria
Hachette, 1971, 25 francos.
O autor se declara, pois,
inconformado ante a tremenda "injustiça" da posteridade, cobrindo
diariamente de flores o túmulo de um "desaparecido", enquanto o poeta
jaz esquecido e abandonado. Deixemos aqui um pensamento de fraterna afeição para
Gérard de Nerval e os votos de que a sua "loucura ardente" se tenha
convertido, no mundo espiritual, na doce tranquilidade da paz interior.
"Durante as horas em que o Père
Lachaise permanece aberto - prossegue Vartier -, jamais
está deserta a vizinhança desse túmulo”. Verdadeiramente incompreensível o fenômeno,
quando se pensa que mais de um século já decorreu desde que foram ali
depositados os "restos mortais" do codificador do Espiritismo. Mais
incompreensível ainda que, após um século, haja quem se dedique a um trabalho
enorme de pesquisa para escrever um denso volume de mais de 300 páginas
dedicado à tentativa inglória de destruir o que o autor julga um mito.
Na esperança de compreender o
mistério de uma secular fidelidade à lembrança de Kardec,
Vartier passou algumas horas no Père Lachaise. "Vi desfilarem alguns Jovens diante do dólmen. Não eram bretões, mas do
tipo mediterrâneo inequívoco, operários italianos ou espanhóis. Gente sem
raízes, que tudo deixou para trás: a miséria, as lembranças, o túmulo dos pais."
Na sua opinião, portanto, uns pobres diabos que, graças a Deus, nem são
franceses.
Isto é apenas o eco de outra
constatação (permitam o galicismo, já que o livro é francês) não menos
surpreendente e não menos inexplicável, para o autor. A páginas 164, ele
escreve isto: "Poderia Allan Kardec ter previsto que "O Livro dos
Espíritos" (sempre em circulação
nos países francófonos) seria, no século XX, mais vendido no Brasil do que em qualquer
outro lugar? Bryan Wilson, no seu estudo sobre as Seitas Religiosas, nos
informa que
as teorias de Kardec são propagadas naquele país (1) por Chico Xavier e que centenas de
milhares de espíritas o adotaram. (2) Não é preciso, sem dúvida, procurar razões
outras senão as de ordem sociológica, para esse êxito de um velho livro no
além-mar." (O grifo é meu.)
(1) Na verdade, a expressão do
original é "la bas", lá embaixo.
(2) Não são milhares; são
milhões...
Veja, então, o leitor, pela amostra,
a posição do Sr. Vartier: o Brasil é um país atrasado, "la bas", onde
um velho livro inútil ainda encontra quem o leia. As razões do êxito contínuo
da obra de Kardec são de ordem sociológica, isto é, por causa mesmo do atraso intelectual
de um povo subdesenvolvido. Não são os desenraizados e miseráveis que lhe visitam
o túmulo? E ainda mete o Chico nessa história, por informação de segunda mão de um
certo Bryan Wilson, pesquisador de "seitas religiosas".
"Isto prova - diz ainda à mesma
página 164 - que uma obra na qual inexiste qualquer traço de gênio pode, às
vezes, ser testemunho de uma radioatividade (palavra sua) vivaz e alcançar
vitórias memoráveis contra o esquecimento."
Essa é uma das tônicas do livro: a
atitude superior de condescendência, diante de assuntos desprezíveis como são a
vida de Kardec e o Espiritismo. Há outras dominantes menores nessa polifonia de
paixões desatadas sobre a comunidade espírita mundial que não busca senão
entender melhor a natureza humana e seus vínculos com o poder supremo que,
evidentemente, criou e mantém o Universo. Há de tudo no livro: a ironia, a
galhofa, a meia-verdade, a insinuação, o trabalho sutil - e às vezes não tão
sutil - de levar tudo ao ridículo, tanto quanto a interpretação maliciosa de
posições e atitudes assumidas por Kardec. Enfim, tudo serve, desde que resulte
em instrumento de demolição. Há momentos, mesmo, de inverdade total, que
somente pode prevalecer para aquele que não conhece o assunto. Aqui vai um
exemplo. A "Revue Spirite", de novembro de 1928, denuncia como
impostor "um indivíduo que se faz chamar Doutor Kardec e se diz neto do
ilustre espírita Allan Kardec". Como se descobriu depois, o homem era, na
realidade, um certo Louis-Henri-Ferdinand Dulier, nascido em Schaerbek, em
1873, segundo informa Vartier. Agora, vejam a crueldade: "Ele se dizia
doutor - diz o autor - sem possuir o diploma correspondente (o que constituía,
afinal de contas, um ponto comum entre ele e Allan Kardec). "A expressão
entre parênteses é, evidentemente, de Vartier, mas onde e quando Allan Kardec
se declarou doutor? Diz ainda o autor, alhures (pág. 27), que Kardec se
apoderou do título de Doutor em Medicina, "que figura ainda na edição de
1954 de "O Livro dos Espíritos". Nossa pesquisa na riquíssima
biblioteca da FEB não revelou nenhum livro de Kardec que contivesse o suposto
título de Doutor. Não sei que edição é essa em que se baseou Vartier para dizer
o que diz, ainda mais acrescentando maliciosamente que figura ainda o título,
dando a impressão de que todas as anteriores o traziam, o que, definitivamente,
não é verdade.
* * *
O livro de Jean Vartier começa mal
ao chamar Allan Kardec de "papa do
Espiritismo", logo na segunda frase do prefácio e prossegue mal
informado, ao declarar que “tudo quanto
ele escreveu de 1855 em diante “foi ditado pelos Espíritos", o que
também não é verdade. Como sabem os espíritas bem informados, nem mesmo "O
Livro dos Espíritos" foi totalmente ditado. Não só a introdução e os comentários,
como toda a sua estrutura e a formulação das questões, é trabalho pessoal de
Kardec. Esse, aliás, foi o plano da obra, dado que as perguntas deveriam ser
suscitadas do ponto de vista humano, para que não fosse a doutrina mais uma
revelação unilateral, ditada apenas de cima para baixo mas sim a resultante de
uma estreita colaboração entre homens e Espíritos.
Também não é verdade, como afirma
Vartier, ainda no prefácio, que Kardec "acreditava haver encontrado sobretudo a demonstração científica da
existência de Deus e da imortalidade do espírito - sua palavra aliás é
perenidade do espírito -, demonstração capaz de fazer
recuar o materialismo".
Isto é o que chamo de meia-verdade. É certo que Kardec
deixou demonstrada a "perenidade" do Espírito. Quanto à "demonstração científica" da
existência de Deus, não me parece exata a expressão. O que vemos em "O
Livro dos Espíritos" é uma discussão de caráter filosófico sobre Deus, Sua
natureza e Seus atributos. Deus está presente em cada linha da obra do Codificador,
sendo mesmo sobre Ele as primeiras questões suscitadas; não obstante, mesmo
aspectos de muito menor relevância do que o problema de Deus os Espíritos
informam que ainda estão fora do nosso alcance e apreensão intelectual.
* * *
O livro de Vartier se apoia
bastante, a julgar pelas inúmeras e frequentes citações, na
obra de Madame Claude Varèze que "teve
o mérito... de colocar sob justa claridade a personalidade de
Allan Kardec",
na coleção "Os Grandes Iluminados". (Mais uma vez aviso
ao leitor que os grifas são meus.) O que ele quer dizer é que a Sra. Varèze
também se
empenhou na tarefa de reduzir Kardec a uma figura indigna de atenção dos
homens.
Quanto ao êxito espetacular da
Doutrina Espírita, em geral, e da obra escrita de Kardec, em particular, a
explicação para Vartier é tão simples quanto grosseira: Kardec foi "o pioneiro, na França, dos métodos de
propaganda à americana e, ao mesmo tempo em que praticava a
religião dos Espíritos, adotava o culto da eficiência. Um reformador superado
quanto à doutrina, mas prodigiosamente atual quanto à escolha dos meios de
fazê-la prosperar".
A esse ridículo comercialismo publicitário
fica reduzido o espírito metódico e objetivo de Kardec, segundo Vartier.
Exatamente os traços mais característicos da personalidade de Kardec,
que nos garantiram uma doutrina purificada, isenta de fantasias e cautelosa,
surgem das páginas de Jean Vartier transformados em defeitos humanos, que vão
da candura à esperteza, da mediocridade ao cinismo, da ausência de cuidados
científicos ao oportunismo mais vulgar e imediatista. Vale tudo!
* * *
A primeira parte do livro, até à
página 56, o autor dá o título de "Cinquante ans de vie cachée"
("Cinquenta anos de vida oculta"): o nascimento em Lyon, os anos
formadores em
Yverdon, sob a direção de Pestalozzi, e o mais que sabemos. A propósito, o
grande pedagogo suíço também leva de raspão alguns safanões e irreverências
gratuitas, pois não passava
de um mestre-escola, por procuração de Jean-Jacques Rousseau. Quem não pode ver
os grandes na sua estatura normal, trata de reduzi-los a anões.
Nada escapa à fúria demolidora de
Vartier. O casamento de Kardec com Amélie? Simples
interesse. "Hippolyte tomou
alegremente sua decisão. Tinha ele boas razões para isso: filha única
de um proprietário, antigo tabelião, Amélie herdaria, mais cedo ou mais tarde, uma bela fortuna;
versada em pedagogia, ela era professora, titular dum diploma de primeira classe.
Acrescente-se a isso que se amavam."
O amor vem no fim, incidentalmente,
como fator de ordem secundária. O que teria predominado
na decisão foi o interesse!
De longe em longe, uma afirmativa
mais amena, como esta: "A vontade de
superar suas dificuldades
financeiras não impedirá jamais o casal Rivail de dedicar uma parte de suas vidas ao
ensino gratuito, considerado como um apostolado" (pág. 32).
Ou esta, que é
preciso conservar em mente: " ... a
reconstituição de sua fortuna se deve sobretudo à venda maciça de
suas obras pedagógicas, que haviam sido adotadas pela Universidade" (pág. 33).
O que predomina, porém, é a
exploração maliciosa de qualquer episódio que, a juízo do autor, pareça
equívoco. O fato de Kardec ter trabalhado como guarda-livros de um teatro,
segundo depoimento de Leymarie, levou os caluniadores a dizerem que ele foi
diretor de uma "casa de mulheres". Vartier menciona o desmentido de
Henri Sausse e a palavra de Leymarie, confirmando a ocupação de Kardec como
guarda-livros, num período difícil de sua vida, mas prossegue declarando que
aquele "insólito intermezzo" teve sua importância. "Não foi isso que permitiu ao futuro papa do
Espiritismo aproximar-se desses leais fazedores de ilusões, que são os
prestidigitadores, e medir, dessa forma, as aptidões do homem a enganar o seu
semelhante com as aparências?"
Vê-se que nada fica afirmado,
taxativamente, nem desmentido, mas permaneceu no ar
o veneno de uma ridícula insinuação, segundo a qual, ao tempo em que prestava
serviços de guarda-livros a um teatro, para se manter, Kardec talvez tenha
aprendido a enganar
o próximo...
Para Vartier, Kardec é herdeiro do
magnetismo animal de Mesmer, o que evidência bem
seu desconhecimento do assunto, a despeito de tantas pesquisas. Eis como
manifesta sua
opinião: "Há entre Mesmer e Kardec
toda a diferença que existe entre uma "vedete" internacional de
cinema e um oficial do Exército da Salvação, que teria sido o legatário universal da vedete" (pág. 42).
Frequentemente, os ataques a Kardec
buscam apoio em pronunciamentos do médium escocês Daniel Dunglas Home. No livro
"Luzes e Sombras do Espiritualismo", de Home, Vartier vai buscar o
seguinte: "Sabe-se que Allan Kardec
não foi médium. Ele nada fazia senão magnetizar ou "psicologizar"
pessoas mais impressionáveis do que ele."
Vartier promove esse texto, exíguo e
mal informado, a uma "revelação
capital da qual Home tira imediatamente a consequência: ele nos deixa entender
(grifo meu) que os médiuns, através dos quais Allan Kardec pretendia interrogar
os Espíritos, não eram mais, em suas mãos, e sob o império de sua vontade, do
que sonâmbulos prontos a traduzirem seu próprio pensamento e não a captarem mensagens
do além" (pág. 55).
A despeito da citação, classificada
como "revelação capital", e
da qual Vartier inferiu ideias
que Home não expressou, nem por isso Vartier tem em boa conta o dito Home, que ele
considera cruamente um charlatão da pior espécie. "Nem sempre Kardec teve a circunspecção que o levou a se livrar de Home",
diz Vartier a páginas 237, atirando farpas em ambos, numa só frase.
Segundo Vartier, Kardec foi um dos
Espíritos mais disputados logo após a sua desencarnação. "A Dunglas Home, seu inimigo íntimo (grifo
meu), transmitiu, em primeiro lugar, a retratação
solene de seus erros. Renunciou a sustentar o dogma da reencarnação. Na condição de
Espírito, punha seu perispírito em forma (sic)... numa retratação honrosa aos
pés daquele que o havia contraditado."
Mas não é Vartier que vai assim
facilmente aceitar a "confissão" de Kardec-Espírito, através de tal
médium: "O procedimento foi um pouco
fácil demais, "monsieur" Home", diz
ele (pág. 289).
Dessa maneira, de Daniel Dunglas
Home Vartier somente aproveita a notável revelação de que Kardec é que impunha
aos Espíritos as respostas que deseja ouvir.
Acha mesmo que o Espiritismo já
existia desde 1848, por ocasião da fenomenologia mediúnica na casa da família
Fox, em Hydesville, nos Estados Unidos. E, no entanto, a Sra.
Fox, mãe das meninas, que primeiro conversou com os Espíritos, "não teve
seu busto esculpido por nenhum artista". É uma pena que só Kardec tenha
merecido essa honra... Acontece, porém, que as meninas também não escapam à
sanha demolidora do Sr. Vartier. Depois de ganharem muito dinheiro, diz ele,
afogaram-se em álcool e desmentiram tudo. Quem estudou o episódio de Hydesville
sabe que isso é outra meia-verdade e que, portanto, contém outro tanto de
inverdade. As moças eram realmente dotadas de mediunidade, e se deram mal com a
desenfreada comercialização das suas faculdades. Houve,
pois, fenômenos autênticos no início e fenômenos fraudados mais tarde. Perdidas
e confusas,
sem base alguma doutrinária, elas se retrataram do desmentido, mas, a essa altura,
quem estava interessado na retratação, se havia uma confissão de fraude?
Por outro lado, não foi o
Espiritismo que nasceu em Hydesville, em 1848, e sim a fenomenologia mediúnica
que, aliás, nem mesmo nascia, e sim renascia, pois a comunicação entre seres
encarnados e desencarnados sempre existiu. O Espiritismo, como doutrina
ordenada, clara, racional e coerentemente exposta, começa com a publicação de
"O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec, em abril de 1857.
Aliás, a preocupação do Sr. Vartier
com a família Fox deve ser meramente histórica, porque
ele "descobriu", para grande alívio seu, que nada havia de espírito
em Hydesville. Isso
porque um tal Doutor Austin Flint, professor de Clínica Médica na Universidade
de Búfalo,
que havia examinado as jovens Fox, "descobrira
que, pela contração rápida de certos músculos, é possível emitir, sem nenhum
movimento aparente, estalidos semelhantes a pequenas marteladas surdas. Para
ele, todo o mistério das Fox se concentrava nos joelhos." (pág. 62).
Ainda bem! Que alívio! Já imaginaram
que problema se essa história de Espiritismo fosse
mesmo verdadeira?
O que existe no episódio de
Hydesville é uma lição secular e muito repetida: mediunidade não é meio de
vida. E por isso o mediunismo desabrochado na América praticamente nada
produziu em matéria doutrinária, nem o perfil de uma filosofia espiritualista
digna de exame. O mesmo talvez teria acontecido na França se lá não estivesse,
vigilante e armado de bom senso, o professor Hippolyte Rivail. Segundo informa o próprio Vartier,
"dez mil pessoas comerciavam profissionalmente com o além, a serviço de
uma clientela que girava aí pelo meio milhão. Dois anos mais tarde, eram já
três milhões, de Boston a Manchester e de Long Island a Cincinnati".
Mas, isso é Espiritismo? Houve, no
entanto, gente de indiscutível probidade e capacidade intelectual que viu nos
fenômenos bem mais do que um exercício de "buena dicha", ou um
sistema de ligação interurbana (paga) para o Além. Robert Hare era professor da
Universidade da Pennsylvania; Mapes, um grande químico; Edmonds, juiz de
direito. Não foram
suficientes, porém, para conter a onda de industrialização da mediunidade, que
tudo avassalou.
Não é sem razão que a Doutrina Espírita, codificada por Kardec, condena
enfaticamente a profissionalização da faculdade mediúnica. E quantos médiuns
não têm verificado, reiteradamente, para sua desgraça, que as coisas se passam
exatamente assim: a mercantilização da mediunidade sempre deu problema.
* * *
A negação de Kardec por Jean Vartier
começa pelo próprio título da obra principal da
Doutrina. Pois bem. Há um livro "Dos Espíritos e suas Manifestações
Fluídicas", escrito em 1854 pelo Marquês de Mirville. Para maior suspense,
Vartier coloca os três pontinhos de reticência entre a palavra
"Espíritos" e a expressão "suas Manifestações Fluídicas". Sem
embargo da declarada e írredutível hostilidade de Mirville pelas ideias de
Kardec, Vartier
não perde a oportunidade para deixar mais um dos seus venenos na mente do
leitor desprevenido:
"O antigo pedagogo Rivail, que alguns fizeram passar como homem das
apropriações abusivas, não se teria apoderado até do título do seu famoso
livro?"
Veja bem a malícia... Não é Vartier
que acusa Kardec de apropriador de ideias alheias -
alguém disse isso, mas quem sabe ele não plagiou também o título da obra de
Mirville? Como
e por que, meu Deus? E ainda mais, para que confundir o seu livro com uma obra que
se lhe opunha radicalmente?
Muitas vezes encontramos em Vartier
o riso tolo que não chega nem a ser ironia. De uma
mesa que se quebrou sob uma pesada carga de pedras, numa sessão experimental de levitação
promovida por um Sr. Barbarin, Vartier diz que o móvel não escapou a martírio,
já que os pregadores espíritas não o tiveram. Qual a graça?
* * *
O inesperado sucesso da obra de
Kardec é uma fonte de constante especulação e interesse para o seu mais recente
biógrafo, o Sr. Jean Vartier. "O Livro dos Espíritos", informa ele,
admirado, foi reeditado quinze vezes durante a existência de Kardec e cinquenta
vezes em cinquenta anos. Isso dá uma edição por ano, durante meio século! É um
prodígio! E ele nem menciona as edições em português que, durante mais de
século, não mostraram sinais de diminuir; pelo contrário. Que o diga o confrade
Thiesen, que dirige o Departamento Editorial da FEB. E tem mais: não é só
"O Livro dos Espíritos" - são todas as
cinco obras básicas da Codificação, que já andam pelos milhões...
Mas a atenção de Vartier é solicitada
para os aspectos materiais do êxito e não para os benefícios espirituais daí
decorrentes. Fica ele a imaginar a fortuna que isso representa em direitos
autorais. E suspira: "Ah, se os precursores do Espiritismo tivessem sabido
disso!"
Assim, não é de admirar-se que
Vartier não consiga distinguir o genuíno do falso, no assunto
que examina. Coloca no mesmo pé de igualdade "O Livro dos Espíritos" é
uma obra "modestamente"
intitulada "Salvemos o Gênero Humano", ditada em 1853 por um Espírito
que se deu o nome de "Ame de la Terre" ("Alma da Terra"), a
um certo Senhor Victor Hennequin.
Segundo Vartier, que cita Louis Figuier, a Alma da Terra havia assegurado ao pobre
Hennequin que os originais do livro seriam adquiridos por 100.000 francos-ouro
pelo editor
Delahaye. Se Vartier tivesse um pouco mais de experiência do assunto sobre o
qual escreve,
saberia que Hennequin foi apenas a vítima inerme de uma obsessão. Por que
razão, então, Kardec "corria o risco considerável de publicar "O Livro dos Espíritos", à vista do trágico
precedente" da fantasia da Alma da Terra? Não há como comparar as duas
obras. Uma
é produto da aceitação cega de uma "revelação" espetacular, à qual o
próprio Espírito colocou um preço em dinheiro vivo, para melhor subjugar seu
pobre médium; a outra -
"O Livro dos Espíritos" - é obra realizada lentamente, cercada de
extraordinários cuidados, meditada, expurgada de fantasias, testada através de
vários médiuns, exposta por vários Espíritos, feita, enfim, com extrema
seriedade.
Acontece que, diante desse êxito
espetacular e que resiste tenazmente à passagem dos decênios, é preciso dizer
alguma coisa. Ei-la: "Terminada a
obra, era de seu temperamento e de seus hábitos explorá-la comercialmente, como
havia explorado tantas outras sob o nome de Rivail" (pág.128).
Meu Deus! Nenhuma exploração
comercial jamais existiu nem nas obras publicadas sob
o nome de Rivail nem nas que saíram com o pseudônimo. O que houve, pura e
simplesmente, é que esses livros encontraram inequívoca receptividade de parte
do públlco, ou seja, os livros de Rivail, como os de Kardec, vendiam-se aos
milhares, e os que cuidam da Doutrina vendem-se até hoje. Que exploração existe
aí? Se o livro do Sr. Vartier alcançar sucesso de livraria, não compete a
ninguém dizer que ele está explorando comercialmente o seu trabalho.
* * *
Nem tudo, porém, no livro de Vartier
está perdido. O capítulo VIII, por exemplo, transcreve o resumo da Doutrina
Espírita, do próprio Kardec, no seu opúsculo intitulado "Le Spiritisme
à sa plus simple expression". Mesmo aqui, no entanto, Vartier não perde
oportunidade para uma observação mordaz, dizendo que não poderia deixar de
"infligir" o
texto de Kardec ...
Depois dessa pausa, prossegue a
tarefa ingrata de atacar o homem e a obra. O título do
capítulo IX revela, mais uma vez, o seu desconhecimento de aspectos importantes
do Espiritismo:
"Os Espíritos nada inventaram." E quem disse que eles sequer tentaram
inventar? Ninguém inventa o que está escrito nas leis de Deus - apenas descobre.
Inventadas são, no entanto, muitas obras de pura fantasia, como a do pobre
"Monsieur" Hennequin, que acreditou piamente nas teorias da
"Alma da Terra". Felizmente, para todos nós, os Espíritos que
transmitiram a Doutrina a Kardec não eram daqueles que inventam, nem Kardec era
dos que aceitam as coisas sem exame. Ensinaram a lei da reencarnação, a
sobrevivência do Espírito, a lei de causa e efeito, discutiram discretamente a
questão da existência de Deus e demonstraram a comunicabilidade entre os
Espíritos (desencarnados) e os homens. Não se arriscaram a nenhuma especulação
para a qual a época e os homens ainda não estivessem preparados. Não há na
linguagem que empregam subterfúgios, nem obscuridades. Além disso, a obra não
se destina apenas aos eruditos e àqueles que disponham de sólida formação
filosófica - é livro para todos lerem e entenderem. O próprio Jean Vartier, com
toda a sua exuberante má vontade, não se furta a declarar que não nega a
"O Livro dos Espíritos" "o
mérito de uma relativa clareza, de unidade no tom e de lógica no encadeamento.
Sente-se que foi escrito por um vulgarizador profissional" (pág. 143).
Acha, no entanto, que, ao abordar os domínios científicos, o livro "se compromete francamente, correndo o risco
de se ridicularizar se (grifo meu) as descobertas posteriores vierem a fazer
ruir a sua tese" (pág. 144).
"O mais belo exemplo"
(palavras suas) desse compromisso é a questão da habitabilidade dos corpos
celestes. A pergunta "São habitados
todos os globos que se movem no espaço?" os Espíritos respondem:
"Sim, e o homem terreno está longe
de ser, como supõe, o primeiro em inteligência, em bondade e em perfeição.
Entretanto, há homens que se têm por espíritos muito fortes e que imaginam
pertencer a este pequenino globo o privilégio de conter seres racionais."
Vartier conclui vitorioso:
"Visitamos um desses globos depois disso. Ele não era habitado."
Calma. Primeiro, que ainda se sabe pouco a respeito da Lua. Segundo, que não
parece que os Espíritos tenham levado em conta a inclusão de miríades de
satélites de pequeno porte, ainda mais de um planeta como Terra, de reduzidas
proporções, quando se referiram aos "globos
que se movem no espaço". Em terceiro lugar, os corpos celestes podem
ser habitados por seres incorpóreos, ou seja, desprovidos de corpo físico, tal
como o conhecemos. E, finalmente, uma pergunta: é só isso que Vartier encontrou
em toda a obra de Kardec, quanto aos aspectos científicos, após mais de um
século em que o livro enfrentou, firme, a pesquisa mais avançada? É esse o seu
mais belo exemplo? Está fraco, porque onde estão as obras científicas de cem
anos atrás? De cem, não digo tanto, mas de 20?
A objeção levantada por ele, quanto
ao problema da "geração espontânea", é também inconsistente. É a
questão 46 de "O Livro dos Espíritos": "Ainda há seres que
nasçam espontaneamente?" A resposta: "Sim, mas o gérmen primitivo já
existia em estado latente." Como lhe convém, Vartier corta aí a citação,
mas os Espíritos disseram mais: "Sois todos
os dias testemunhas desse fenômeno. Os tecidos do corpo humano e do dos animais
não encerram os germens de uma multidão de vermes que só esperam, para
desabrochar, a fermentação pútrida que lhes é necessária à existência? É um
mundo minúsculo que dormita e se cria."
Portanto, nada de geração
espontânea, como a entendiam os sábios da época de Kardec,
que achavam que seres vivos podiam sair do nada, o que os Espíritos negam
enfaticamente, pois o poder de criação é exclusivamente divino.
Vartier volta a discorrer sobre a
falta de originalidade das teorias transmitidas pelos Espíritos,
o que revela, na melhor hipótese, seu desconhecimento do problema, porque os Espíritos
sempre advertiram que o trabalho de pesquisa científica ou filosófica cabe ao
homem. Se tudo nos viesse pronto, meditado, resolvido, final, que mérito nos
restaria, e como aprenderíamos a resolver as nossas dificuldades?
Acha o autor, por isso, que os
conhecimentos revelados não ultrapassam o nível intelectual e cultural de
Kardec. "Os frequentadores dos tribunais - diz ele - sabem muito bem
que a maneira de interrogar determina, com frequência, as respostas (por
sugestão ou provocação)"
(pág. 146). Quer dizer que, no seu entender, o próprio Kardec sugere o que deseja
obter como resposta, tese, aliás, de Daniel D. Home. É o fim! Será que o Sr.
Vartier leu mesmo "O Livro dos Espíritos"? Será que ele tomou
conhecimento daquelas respostas inúmeras em que os Espíritos, bordejando, às
vezes, pela rudeza, contestam com veemência pontos de vista de Kardec?
* * *
Às vezes o Sr. Vartier vai mais
longe do que seria de admitir-se. Veja-se, por exemplo, o
caso da reencarnação que, evidentemente, ele não aceita mesmo. Incapaz de
admitir a intervenção
dos Espíritos nos ensinamentos contidos na obra principal da codificação, e negando
a Kardec qualquer valor intelectual, formula uma pergunta que ele próprio
classifica de brutal: " ...que me perdoem de pôr de lado os Espíritos e
colocar brutalmente a questão: "Quem introduziu a reencarnação no
"Livro" (dos Espíritos) e de quem ele (Kardec) a tomou?"
Não creio que o Sr. Vartier ignore
que a doutrina da reencarnação é antiquíssima, especialmente entre os povos
orientais e, neste ponto, como em tantos outros, os Espíritos se imitaram a
reafirmar, com a sua chancela, a doutrina das vidas sucessivas como lei
universal, essencial ao processo evolutivo do ser.
É ridículo, além disso, afirmar que
Kardec "tinha um fraco pela reencarnação" e que somente se decidiu a
"entrar no Espiritismo militante (!) depois de convencido, por Zéfiro, de
que havia vivido outra vida terrestre".
Essa opinião é também a de Claude
Varèze, cuja obra detratora sobre Kardec tanto serviu
aos propósitos do Sr. Vartier. Não obstante, a própria Sra. Vareze foi descobrir num
discurso de Kardec, ou melhor, do professor Rivail, em 1834 - portanto, cerca
de 20
anos antes de se engajar na pesquisa espírita - a seguinte frase: "A fonte
das qualidades se encontra nas impressões que a criança recebe ao nascer,
talvez antes."
Vartier acha, porém, que Kardec apenas
antecipava, nesse ponto, a doutrina freudiana do conhecimento intrauterino, o
que já não seria de pouca monta.
Também a ideia do perispírito deseja
ele provar que é anterior a Kardec, e realmente o
é como sabemos. E a razão de tudo isso é sempre a mesma - é que "O Livro
dos Espíritos" não é obra de fantasia; ele contém o resumo da sabedoria
milenar dos povos, as grandes ideias e descobertas que os homens fizeram ao
longo de muitos milênios de especulação e depois ordenaram no mundo espiritual,
para nos ensinarem apenas a essência.
* * *
O trabalho do Sr. Jean Vartier
consiste, pois, em mostrar o Espiritismo, em geral, e Allan
Kardec, em particular, através das suas lentes deformadoras. Tudo o que elas
filtram tem
aparência de interesse material, cheira a esperteza ou é fantasioso, quimérico,
medíocre.
Há exemplos dos mais gratuitos e
cruéis desvirtuamentos.
Uma ocasião Kardec foi visitado por
dois repórteres russos de um jornal de S. Petersburgo. Como se mostraram interessados
apenas em se instruírem, foram generosamente acolhidos por Kardec e até
convidados, excepcionalmente, para uma sessão. E aqui começam as farpas. Os
espíritas praticantes sabem que as sessões devem ser realizadas reservadamente,
sempre que possível com as mesmas pessoas, às mesmas horas, no mesmo local.
Ignorando, deliberadamente ou não,
os cuidados que cercam o trabalho mediúnico, o Sr.
Vartier informa que as sessões eram reservadas aos "cotistas da Sociedade
de Paris", isto
é aos contribuintes, mesmo sabendo da declarada e repetida condenação de Kardec
à remuneração
de tarefas mediúnicas.
Mas, os dois repórteres presenciaram
os trabalhos, que começaram pela leitura de um capítulo do Evangelho. Em
seguida, "tiveram a desopilante
satisfação de assistir à intrusão de um Espírito galhofeiro, que foi
preciso admoestar e excluir do círculo". Por que desopilante? E por que
tão grande satisfação em presenciar as tolices de um pobre Espírito desorientado?
É que a ignorância sempre acha engraçado aquilo que não entende. A certa
altura, os russos perguntaram a Kardec por que não interrogava os Espíritos a cerca
de política. A resposta de Kardec é a que sabemos: os Espíritos não se ocupam
de tais coisas. E sabem daí o que conclui Vartier? Que, realmente, os Espíritos
usavam de discrição no assunto e, assim mesmo, na intimidade. "Eles eram
bem do estofo de seu mestre. Quem dispõe de rendimentos, não se
compromete."
Fica sem comentário ...
Um modesto soldado de Napoleão, que
se identificou como tambor durante a passagem do Berezina, é alvo predileto de
galhofas, e o autor várias vezes se refere a ele. O drama contínuo e doloroso
dos Espíritos aflitos, desorientados e infelizes é motivo de desopilante e
inconsciente alegria por parte do Sr. Vartier. O avarento que não compreende
por que ninguém o ouve quando ele tenta, inutilmente, impedir que seus
herdeiros abram o cofre onde guardou "em vida" seu precioso dinheiro.
O pobre camponês que, sabendo-se em Paris, "acredita bestamente" que
veio de trem. O guloso, ainda preso à sua imperfeição, que vive a gemer de
aflição em torno de mesas fartas de que não pode servir-se. O Sr. Vartier acha
tudo isso divertidíssimo. "Os mortos do Sr. Allan Kardec, diz ele, não são
mesmo felizes."
Para ele é também motivo de ridículo
S. Luiz transformado em "teórico da reencarnação", ou Sto. Agostinho
em "um dos maiores vulgarizadores do Espiritismo". Tudo muito
engraçado!
Quando Kardec previne, em "O
Livro dos Médiuns", que "o médium pode alterar a resposta (do
Espírito) e assimilá-la às suas próprias ideias", é porque ele (Kardec),
"sem nada
perder da sua fé, teria perdido a sua segurança".
Quando Kardec deseja saber de um Espírito
sua opinião acerca da "Vida de Jesus", recentemente
publicada, é porque o livro de Renan "bateu" "O Livro dos
Espíritos" em vendagem
e Kardec está enciumado.
Se Kardec lembra que o Espiritismo é
científico, mas não se esquece de dizer que também
é cristão, ele o faz "conforme a natureza do seu auditório".
"Tinha ele - diz o autor
- um seguro senso psicológico. Chamem a isso de oportunismo se pensam (como eu) que
a aventura espírita de Allan Kardec guarda certa semelhança com uma aventura eleitoral."
(A expressão entre parêntesis é, obviamente, do original.)
Para o Sr. Vartier, a capacidade de
organização e disciplina de Kardec, sua objetividade e liderança apenas revelam
as virtudes de um excelente "businessman" à moda americana, um
notável homem de relações públicas que, na divulgação da Doutrina dos
Espíritos, só visava à promoção pessoal e aos lucros. Por isso, declara Vartier
que "Allan Kardec sucumbiu, talvez, de um enfarte, como um Industrial de
1970". A causa, então atribuída ao aneurisma, seria mera ignorância dos
médicos da época.
***
No capítulo XV, páginas 249 e
seguintes, é traçado um retrato impiedoso de Kardec, sob o título:
"Portrait d'un Reformateur" ("Retrato de um Reformador").
Os termos são estes:
"Seria pouco convincente fazer o retrato de Allan Kardec sob forma de
litania:
“Ele não era um
sábio. Orai por ele.
Ele não era um
livre-pensador. Orai por ele.
Ele não era um
herói. Orai por ele.
Ele não era um
poeta. Orai por ele."
Era, porém, um reformador, reconhece
Vartier. "Homem aplicado, benévolo, praticava o esquecimento das injúrias,
tanto por natureza, como por estratégia ... " (tinha de ter o ferrão para
o veneno!), E prossegue: "Sabia ser discreto, quando necessário. Era
otimista, mas também "um negociante da felicidade", um
"administrador de sociedade anônima". "Explora o que acredita
ser uma descoberta (que as mesas giram e que os Espíritos a fazem girar), em
benefício do que ele acredita ser a felicidade da humanidade." Os
parêntesis são do Sr. Vartier.
"Com um cinismo tão
inconsciente que raiava pela candura, o reformador identificava o apostolado
com uma operação publicitária." O seu trabalho de divulgador nato, que
consegue colocar ao nível de qualquer pessoa medianamente instruída as verdades
mais elevadas, é tido por Jean Vartier não como notável poder de síntese e
espírito analítico, mas como sinal de "uma bela inconsciência".
A atração que a nascente doutrina
exerce sobre os trabalhadores de condição social mais humilde é objeto de
atenta especulação por parte do Sr. Vartier. Acha ele que tudo se resumia num
processo de fuga, dado que ver as mesas girarem era diferente de vigiar
engrenagens, motores e correias transportadoras ou aguentar as impertinências
do contramestre.
Logo a seguir, informa que, no
decorrer das sessões, Kardec deixava de ser o "grande mestre"
- coisa que ele jamais pretendeu ser - "para tornar-se um espírita entre
outros" em
torno dos médiuns. Pura demagogia, pois. "Estou convencido de minha parte
- diz Vartier a seguir - que existe uma conexão entre o êxito prodigioso do
Espiritismo nas camadas populares, no final do Segundo Império, e a eclosão da
sociedade industrial." Acha ele que isso foi devido à urbanização, a uma
certa liberdade de pensar e agir, ao anticlericalismo que visava a uma igreja
que nada tinha mais a oferecer. "Allan Kardec e suas mesas foram os
beneficiários de tal situação: da desorientação espiritual dos proletários sem
raízes..."
Quanto pouco caso pela inteligência
e pela inata intuição dos estóicos trabalhadores anônimos!
Vartier, porém, não identificou as razões profundas e verdadeiras do fenômeno que,
aliás, tem raízes históricas inequívocas, pois aconteceu a mesma coisa com o
advento do
Cristianismo. É que o Espiritismo chegou no momento exato, com uma mensagem
renovadora, quando mais evidente ia se tornando a falência das religiões
estabelecidas. Os homens das classes mais sofisticadas sempre se entregaram ao
falso brilho do materialismo "blasé",
propalado pelos pensadores e cientistas de todos os tempos, desde a Grécia ...
As camadas
mais profundas do povo, porém, sem acesso fácil ao negativismo da moda,
acolheram com entusiasmo uma doutrina que, em linguagem simples e acessível,
mas não vulgar, lhes falava de uma vida após a morte e de outras vidas antes da
vida. E que falava de Deus sem tentar explicá-Lo por meio de incompreensíveis
ginásticas intelectuais. As razões que sempre levam o Espiritismo ao coração do
povo são as mesmas que o tornam inaceitável aos orgulhosos, aos pretensiosos,
aos sabichões: é a sua simplicidade, é a sua exigência de uma transformação
moral e de uma reformulação de ideias e de atitudes. Não adianta
nos plantarmos em nossa tola superioridade e esperarmos desafiadoramente que a
Doutrina nos convença e nos tire da nossa ignorância. A palavra é essa mesma,
porque a
ignorância pode coexistir com a mais avançada cultura. Temos que nos aproximar
da Doutrina
desarmados de preconceitos, com humildade intelectual, dispostos a desaprender muito
do que pensávamos que sabíamos para poder aprender aquilo que ignoramos. O
homem de coração simples vai mais rápido porque a simplicidade da Doutrina
ressoa logo no seu espírito. Aquele que está vazio de esperança e carregado de
desencanto reencontra razão para continuar vivendo e até mesmo seguir sofrendo
as suas dores. O intelectual não precisa, porém, renunciar à sua lógica, à sua
inteligência e à sua cultura, mas certamente terá
muito que reformular no seu acervo de conhecimentos, rever sua hierarquia de
valores e trocar algumas posições...
Por tudo isso, o povo chega primeiro
à Doutrina Espírita, como chegou primeiro ao Cristianismo.
Basta lembrar a frustrada tentativa de Paulo em Atenas. Também na Roma orgulhosa
aconteceu o mesmo. Enquanto os intelectuais ridicularizavam a doutrina de Jesus
os poderosos a perseguiam e os nobres a desprezavam, os escravos morriam por
ela de
sorriso nos lábios.
* * *
Mas vejamos, para concluir, as
palavras finais do Sr. Jean Vartier, no seu livro infeliz. Ignorando
todo o trabalho de pesquisa realizado no século que passou, acha ele que o
Espiritismo - e aqui inclui a Teosofia - está superado. A interpretação dos
fenômenos "forjada" pelo Espiritismo "não atende nem à lógica,
nem ao bom senso, muito menos ainda ao rigor científico". O movimento das
mesas - o Sr. Vartier ainda está pensando nas mesas girantes - é realmente uma
"evidência física", mas mesmo descontados as fraudes e os
"movimentos inconscientes e ruídos musculares" - ele ainda acredita
nisso -, não há sentido em continuar em torno das mesas girantes e
"cultivar mais longamente a confusão de valores".
Essa expressão é um achado! Parece
que, para o Sr. Vartier, essa história de Espiritismo é muito incômoda, porque
nos leva a uma reformulação muito grande de ideias que nos são muito caras e
que por certo alimentam nosso orgulho. O
Espiritismo ensina que o homem não é o único ser inteligente no universo, nem
mesmo o mais inteligente. Que somos totalmente responsáveis pelos nossos atos
perante a lei divina. Que podemos, amanhã, renascer miseráveis, aleijados e
infelizes, se isso for necessário ao nosso reajuste. Que a dor é instrumento de
resgate, aperfeiçoamento e advertência. Que acima de nós há um poder superior,
ao qual devemos respeito e amor. Que o nosso próximo não é um inimigo que
cumpre ignorar, desprezar ou eliminar, mas um companheiro na belíssima aventura
da vida imortal, que devemos aprender a amar. Não há confusão de valores
coisa alguma; o que há é que precisamos colocar nossos valores em nova sequência,
com novos arranjos, sob nova hierarquia.
* * *
Entende, ainda, Jean Vartier que nem
tudo deve ser rejeitado na doutrina coordenada por Kardec e - aí vai novamente
a farpa - "notadamente entre os dogmas (!) de que
ele se apropriou em outros". Entre as coisas que se salvam, está o
perispírito, "herdeiro do corpo astral, em razão mesma dos seus
antecedentes ocultistas' (pág. 294). Cita, a propósito, o professor Jean
Lhermitte, que, em 1956, no colóquio de Parapsicologia em Royaumnont,
"descreveu fenômenos de bilocação que afetam certos doentes. Tais doentes tem
a consciência perfeita da separação entre perispírito e corpo físico".
Nessa mesma oportunidade, um
antropólogo chamado Pierre Barrucand declarou que o corpo astral conta com
"certo número de argumentos a seu favor, por mais incômodo que seja isso à
nossa concepção do mundo" (grifo meu).
Tudo isto parece muito certo ao Sr.
Jean Vartier, porque assim o disseram os sábios em quem ele confia. O problema
é que "a divagação espírita começa quando se faz desse elemento o
invólucro dos desencarnados ou das almas dos vivos em plena vagabundagem
durante o sono do corpo".
Enfim, o perispírito pode existir,
sim senhor, pode separar-se em certas doenças, conta
vários argumentos a seu favor, vai ao extremo de invalidar "nossa
concepção do mundo",
mas isso de envolver encarnados e desencarnados, essa não! O Sr. Vartier não quer!
Longe dele, porém, sustentar que a
ciência de 1970 já tenha "dominado todos os fenômenos sobre os quais Allan
enxertou suas fantasias pseudocientíficas". Concede ele, generosamente,
que ainda há alguma coisa a elucidar "no domínio, por exemplo, da
atividade premonitória e das percepções a distância" (sic). O resto, para
Vartier, está "elucidado". Afinal de contas, diz ele pouco adiante
(pág. 296), é preciso salvaguardar o meio ambiente. "Não somente na luta
contra a poluição do ar e das águas, mas também pelo respeito a algumas regras
elementares de defesa contra a poluição mental."
Aí está, pois, a chave do livro do
Sr. Jean Vartier. Na sua opinião, o Espiritismo não tem feito outra coisa senão
espalhar poluição mental, e o Sr. Vartier elegeu a si mesmo inflexível defensor
do meio ambiente.
Orai por ele. Não no tom irônico da
sua litania anti-Kardec, mas a sério, pedindo a Deus que, quando chegar a hora da reconstrução, possa
ele dispor da mesma energia, da mesma coragem e do mesmo ardor de que agora se
utiliza na ingênua e melancólica tentativa de demolir o que não entendeu
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