A religião em Espiritismo
Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) 1942
O
eminente mestre, Dr. Almeida Junior, baseou algumas de suas razões, num excerto
de George Dumas:
"A forma pela qual o homem recebe
as verdades religiosas é, inicialmente, a revelação,
secundariamente, a persuasão, que se
dirige, de preferência à personalidade afetiva: mantendo-se essas verdades no
espírito humano, em virtude da crença, alicerçadas na fé. Por isso, o conteúdo
subjetivo das religiões é fundo preponderantemente afetivo e modestamente
cognitivo."
Continuando,
escudado ainda no autor citado, ensina o catedrático paulista:
"Por isso, como assevera George Dumas, Traité
de Psychologie, II, 208, todas as Igrejas sempre protestaram contra a
subordinação da fé ao raciocínio."
Objetaremos
a George Dumas e ao digno professor Almeida, inicialmente, que as primitivas
religiões não se originaram de uma revelação, no sentido teológico do termo,
mas do fato. Foi o fato espírita, foi o fenômeno psíquico que encaminharam os
homens para as atitudes religiosas. A primeira ideia de religião surgiu com a
ideia do Espirito. Data da aparição dos Espíritos a aparição da religiosidade.
Segundo:
se a Revelação entra no conceito moderno de religiões, ou na gênese das
religiões modernas, dela não escapará também o Espiritismo, tido como a
Terceira Revelação, ou como o Consolador prometido, de que fala o Evangelho.
Finalmente,
há ainda equívoco no supor que as Igrejas sempre protestaram contra a
subordinação da fé ao raciocínio. Se tal protesto existe, as principais Igrejas
não se mostram fieis aos princípios de seus fundadores.
Mas,
tal não há, como provaremos.
E
teremos, assim, por terra, a opinião de George Dumas, ou um dos esteios a que
se firmou o honrado diretor do ensino.
Vamos
demonstra-lo.
Uma
grande autoridade em matéria religiosa, o prof. Oltremare, da Universidade de Genebra,
ensina na sua obra. - A Religião e a Vida
do Espírito:
“A I'origine le
divin est en quelque sorte diffus. Il est partout: Il n'est nulle part chez lUi.
Des dieux? Non pas, mais des "espirits", sans personalité, sans atributs, sans nom, qui révelent leur présence de Ia maniêre Ia
plus imprévisible" (1).
(1)
Paul Oltramare – La Religion et la Vie
de l’Esprit, pags 27 - 1925
Isto é, originariamente, o divino era difuso. Existia por
toda a parte. Não havia ainda deuses, senão Espíritos, sem personalidade, sem
atributos, sem nome, que revelavam sua presença de maneira imprevisível.
Está patente que naquelas sociedades inferiores, o que havia
era a manifestação de Espíritos inferiores, atribulados, perturbados, incapazes
de se identificarem, ou por deficiência do aparelho mediúnico, ou por
conturbação espiritual.
E temos, naqueles povos recuados, os sinais, embora
primitivos e rudimentares, do Outro Mundo, tais como são eles hoje descritos
nas obras de Allan Kardec. E se aqueles deram começo a religiões, também
primitivas e rudimentares, os de hoje, iluminados pela luz de uma grande
filosofia e observados com os rigores de uma nova ciência, abrem caminho a uma
religião, consoante o século que vivemos, de acordo com a aurora que sentimos
despontar.
Segundo de Vesme, nos povos selvagens, ainda os mais atrasados,
veem-se, por toda parte, invariavelmente, as mesmas crenças: espíritos
inferiores, fantasmas, etc. (2).
(2) Cesar de Vesme, Histoire du Spititualism expérimental,
pag. 9.
E mais adiante acrescenta o mesmo historiador:
"A crença na alma, na sobrevivência, nos espíritos
impõe-se ao homem, quer ele queira, quer não - bon gré, mal gré - independentemente dos seus desejos, pela
observação dos fatos" (3).
(3)
Idem, Idem, pag. 11.
Que foi a observação de tais fatos o que originou no espírito
humano a ideia religiosa, concluem, sem sombra de dúvida, os modernos
antropologistas, os pensadores, os etnógrafos, os filósofos, todos os que,
jogando fora o velho lastro, se aprofundam em tais estudos, com mira posta em
descobrir a verdade.
Folheemos, ainda, o autor citado, que vir sua obra laureada
pela Academia Francesa:
"A crença na sobrevivência, nos fantasmas nos
espíritos, na feitiçaria, se encontra em quase todos os povos, com uma
uniformidade impressionante" (4).
(4) Idem, Idem, pag.13
Já Herbert Spencer notava que as crenças eram tentativas de
interpretação de fenômenos (5).
(5) H. Spencer, Socio logie, V. II, pag. 689
Também assim opinava Maxwel:
"Os sonhos verdadeiros produzem-se em estados que a ciência
chama hipnóides, sonambúlicos, transes, extases. Eles favorecem certas percepções
de ordem instintiva ou supranormal. A origem das crenças religiosas é talvez,
devida a esses fenômenos" (6).
(6) J. Maxwel, La
Magie
Ernesto Bozzano, o afamado escritor, cuja vida vem sendo
dedicada ao mais acurado estudo dos fenômenos psíquicos, declara que: crença no
"Espírito" sempre existiu, sempre foi testemunhada e tem sido a base
das religiões primitivas.
Escreve o notável filósofo em sua obra - Das manifestações supranormais entre o povos selvagens:
"Basta consultar as obras dos mais eminentes antropologistas
e sociólogos para verificar que todos esses autores reconhecem, de comum acordo
que a crença na sobrevivência humana é universal.
E. B. Tylor em sua Primitive
Culture observa que "a fórmula mínima
para definir uma religião consiste na crença de entidades espirituais, crença que
se encontra nas raças humanas mais atrasadas, com as quais conseguimos entrar
em relações bastante íntimas."
Ele salienta, ainda, que a crença em entidades espirituais
implica, em seu pleno desenvolvimento, a crença na existência de uma alma
sobrevivente à morte do corpo, e prossegue:
"Essa crença é a base fundamental de toda a filosofia
das religiões, a partir da religião dos selvagens mais atrasados, para chegar à
dos povos mais civilizados; essa mesma crença constitui, aliás, a filosofia
mais antiga e mais universal" (7).
(7)
Ernesto Bozzano - Delle manifestazioni
Supernomali tra i Popoli Selvaggi Pag.
3 - 1926 - Roma.
Seguindo a mesma alheta, poderíamos citar com Bozzano vários
e notáveis publicistas, entre os quais Grant Allen (The Evolution of the idea of God), Brinton (Religions of Primitive Peoples), Goblet d'Alviela (Hibbert Lecture), Powers (Tribes of California), Huxley (Lay Sermons and addresses.)
Creio ter evidenciado, pelo testemunho de grande cópia de
pesquisadores, muitos de notável saber, que a crença nos Espíritos dominava
entre os povos primitivos e que foi essa a semente do espírito religioso.
Ora, como negar a religiosidade em Espiritismo, baseada na
manifestação dos Espíritos, e onde aquela semente, germinada através dos
tempos, floresceu e deu os frutos contidos na doutrina de Kardec, que é a
chave, que é a prova, que é a cúpula da lição evangélica?
*
Revelação, segundo o ensino dos seminários, tem duas
acepções: é o ato pelo qual Deus comunicou aos homens os mistérios e os
mandamentos; é o conjunto das verdades que Deus nos ensinou.
Revelação é, enfim, uma mensagem divina transmitida aos
homens, por intermédio de um profeta.
Missionários baixaram a este orbe de pecado e sofrimento com
a incumbência de trazer-nos a palavra de Deus, ou os seus ensinos, ou a sua
moral, ou os preceitos pelos quais nos devíamos guiar na senda do amor divino e
na senda do amor humano.
Foi assim que o verbo se fez carne.
Mas esses mensageiros entraram em contato com as potências
superiores pela vasta gama da fenomenologia espírita.
Diz-se que Moisés recebeu do Criador a lei das doze taboas:
aí, veríamos as manifestações de uma mediunidade vidente e auditiva.
Maomé fundou a sua religião do seu colóquio com o anjo
Gabriel. O profeta era sujeito a visões e a vários outros fenômenos.
Buda retirou -se para o deserto e lá, no silêncio e na
meditação, recebeu as lições que deveriam libertar o homem do desejo e do
sofrimento. Temos a mediunidade inspiradora.
As religiões oriundas do Cristianismo falam no Espírito
Santo, que é o símbolo da inspiração superior.
Temos, pois, ainda ai, o fato psíquico, o fato mediúnico, na
base das revelações.
Tal é, sem tirar nem pôr, a gênese de toda a Doutrina
Espirita. Em vez de um só Espírito, são muitos os Espíritos que nos vêm trazer
as revelações; é da concordância delas que estabelecemos a Verdade e, por cima
de todas, paira a sombra d' Aquele que no-Ia enviou.
Essa Verdade vem trazida periodicamente à Terra até que os
homens a compreendam, a sintam, a estimem. Ela promana de Deus, não importa os
vasos que a conduzam.
*
Nem a palavra Revelação faltou à nossa doutrina.
No dizer de Allan Kardec, o Espiritismo foi inicialmente uma
revelação, como quer Dumas que o sejam todas as religiões.
Veja-se a Gênese e logo no primeiro capítulo
encontrar-se-á o seguinte título: Caracteres
de Ia révelation spirite
E ainda da Gênese:
"Cristo e Moisés foram os dois grandes reveladores, os
quais mudaram a face do mundo, e aí se vê a prova de suas missões divinas.
Atualmente, importante revelação se nos apresenta: é a que
nos mostra a possibilidade de comunicar-nos com os seres do mundo espiritual (9).
(9) Idem, id. P.8
Desenvolvendo o tema, Kardec refere-se longamente às três
revelações e declara:
21. - Moisés, como profeta, revelou aos homens o
conhecimento do Deus único...
22. - Cristo, tomando à antiga lei o que é eterno e divino,
rejeitou o que não passava de transitório, de puramente disciplinar e de
concepção humana ...
30. - O Espiritismo, tendo seu ponto de partida nas próprias
palavras do Cristo, como o Cristo o tinha nas de Moisés, é uma consequência
daquela doutrina" (10).
(10) Idem, id. P. 19
E é essa a linguagem dos seus seguidores:
*
Vejamos, agora, se os fundadores das religiões protestaram
contra o raciocínio e se elas assumem, apenas, um fundo modestamente cognitivo.
Principiemos por aquela religião que mais parece pôr o
raciocínio de lado e leiamos esse luminar das letras católicas, que é o eminente
padre Franca:
Diz ele, referindo-se à Bíblia, em resposta a Eduardo Carlos
Pereira:
"Antes, porém, de
chegar a estas conclusões dogmáticas, cumpre-lhe resolver um sem número de
dificuldades preliminares. Dificuldades linguísticas... Dificuldades críticas...
Dificuldades gramaticais... Dificuldades exegéticas..."
Mais adiante, acrescenta o ilustre padre:
"Na escritura há
verdades que se devem crer e preceitos que se devem praticar; há prescrições locais
e temporárias e prescrições perpétuas e universais. Tudo isto deve ser
analisado, discutido, discriminado antes de se redigir um símbolo ou formular
um código moral" (11).
(11) Leonel da Franca - A Igreja, a Reforma e a Civilização,
pags. 248 e 249 – 3ª ed.
Como abstrair do raciocínio em meio ao cerrareiro de tais
dificuldades, sendo as Escrituras uma das fontes do ensino eclesiástico?
.
Se tudo deve ser discutido, analisado, discriminado, impossivel
abolir o entendimento.
Littera occidit,
spiritus vivificat. Para tirar a letra que mata o
espírito que vivifica. força é utilizar a cabeça, embora essa utilização seja
cometida, apenas, a um pequeno número, na religião católica.
Outro ramo do Cristianismo, o Protestantismo, estabelece o livre exame. Aí todas as cabeças devem
raciocinar.
Lutero proclamava: "A
todos os cristãos e a cada um em particular pertence julgar a doutrina”. (12).
(12) Martinho Lutero. - Werke. Kristiche Gesamtausgabe.
E o padre Franca comenta: "Era a teoria do sacerdócio universal. Todos os fiéis são reis e
sacerdotes, senhores absolutos na interpretação das Escrituras, livres de expor
e de ensinar a fé" (13).
(13) Franca, obra cit., p. 252.
Isto que é senão o uso franco da razão?..
O próprio S. Paulo a estabelece, quando manda:
''Examinai tudo e
escolhei o que for bom." (14)
(14) S. Paulo,
Epístolas.
Não poderia haver maior poder de síntese na prescrição do
raciocínio.
E é S. Paulo quem fala.
Buda, o Iluminado, ensinava aos seus discípulos:
"Não creias numa
coisa, só porque te hajam dito, nem em escritos de sábios, só porque estes os
escreveram; nem em fantasias que se digam inspiradas por anjos; nem em deduções
inferidas de alguma fortuita suposição, nem na meia autoridade de vossos
mestres e instrutores; temos que crer o escrito, doutrina e dito quando
corroborados por nossa própria razão ou consciência" (15).
(15)
Kolama Sutta. - Angutara Nikaia.
Breuster, que escreveu a vida de Buda, segundo as escrituras
palias diz, a respeito da doutrina do Mestre:
"Em compensação
ouvimo-lo também concitar seus adeptos a considerarem bem o valor moral de sua
doutrina, antes de a seguirem, e tomá-la a ela e não a ele como mestre, a serem
os guias de si mesmos, e não os cegos discípulos de um mestre qualquer"
(16).
(16) Breuster. - Vida de Buda, p. 8. Trad. Augusto
Sousa. S. Paulo.
Como se vê, nem todas as Igrejas e nem todos os seus
fundadores pregavam esse servilismo da consciência que o prof. Dumas tem como
um caráter da religião, e em cujas águas navegou, despreocupadamente, o prof.
Almeida.
Iríamos mostrar agora de como as religiões pregam o conhecimento,
mas o cumprimento deste já vai fugindo dos limites da tolerância.
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