O pensamento filosófico
do Dr Geley
Hermínio C. Miranda
Reformador (FEB) Novembro 1971
O
pensamento e as experiências do Dr. Gustave Geley acham-se contidos
nos
seus três livros básicos, nenhum, ao que eu
saiba, traduzido para a nossa língua, São eles:
L'Être Subconscient ("O Ser Subconsciente"),
cuja quarta edição é de 1919, De L'Inconscient
au Conscient ("Do Inconsciente ao
Consciente"), 4ª edição, de 1921, e L'Ectoplasmie et Clairvoyance,
("Ectoplasmia e Clarividência"),
publicado em 1924. A segunda das obras citadas traz uma referência a outro
livro do Dr. Geley intitulado Les Preuves du Transformisme et tee
Enseignements de la Doctrine Evolutioniste ("As Provas do Transformismo e os Ensinamentos da Doutrina Evolucionista").
Não tenho conhecimento dessa obra. Por sua vez, em L'Ectoplasmie et Clairvoyance
o autor anuncia um volume complementar intitulado Genèse et Signification des
Phenomènes Métapsychiques ("Gênese
e Significado dos Fenômenos Metapsíquicos"). Ao que me consta, esta
obra não chegou a ser editada; o Dr. Geley morreu pouco depois da
publicação de L'Ectoplasmie et Clairvoyance, num desastre de aviação, ao
retornar de uma viagem de estudos à Polônia.
A
partida algo prematura do eminente médico foi uma perda considerável para o
desenvolvimento dos aspectos científicos e filosóficos da Doutrina Espirita.
Certamente que há razões superiores para isso, mas não podemos deixar de
lamentar a ausência de tão valoroso cientista, num momento em que trabalhava
ativamente no coroamento da sua obra de pesquisador e de pensador profundo,
lúcido e competente.
Pretende
este modesto artigo proporcionar ao leitor uma ideia geral, certamente que
incompleta e superficial, do precioso trabalho do respeitável médico francês,
de vez que seus livros são hoje raridades bibliográficas, mesmo na língua
original em que foram escritos. Por uma feliz sequência de circunstâncias,
consegui adquirir dois deles e obter de um bom amigo e confrade, por
empréstimo, L'Être Subconscient, 5ª edição, 1926, lançada pela Félix Alcan.
*
GUSTAVE GELEY nasceu
em Nancy,
na França, em 1865. Formado em Medicina
pela Faculdade de Lyon,
clinicou
até 1918 em Annecy, onde alcançou
grande reputação. Interessando-se pelos
fenômenos paranormais, a respeito deles
publicou, em 1897, um “Ensaio
de
revisão geral
e de interpretação
sintética do
espiritismo”.
Suas melhores investigações,
porém,
datam de 1916, com a médium Eva
C.
(Carrière). Mme. Bisson colaborou
também nesses trabalhos. Em
1919 assumiu a direção do Instituto
Metapsíquico
Internacional, onde
obteve fenômenos extraordinários
com o médium polonês de
materializacões Franck Kluski.
Em 1922 e 1923 promoveu outra
série notável de sessões de ectoplasmia,
com o médium Jean Guzik, do
que
resultou o histórico Manifesto dos 34,
assinado por eminentes homens de ciência,
médicos, escritores e peritos da polícia.
(A rigor, o Manifesto tinha 35 e não 34
assinaturas, o que se deveu a um erro
tipográfico). De 1921 a 1923 realizou,
quer em Varsóvia, quer em Paris,
experiências irrefutáveis com o
médium polonês Stephan
Ossowiecki. A obra
experimental e
filosófica de Geley acha-se contida nos
seguintes livros, além do “Ensaio” acima
citado: “O Ser Subconsciente”, Paris,
1899; “Monismo Idealista e Palingenesia”,
Annecy, 1912; “A
Chamada Fisiologia
Supranormal e
os Fenômenos de
Ideoplastia”, Paris, 1918; “Do
Inconsciente
ao Consciente”, Paris, 1919;
“A Ectoplasmia e a Clarividência”, Paris,
1924. Geley desencarnou num acidente
de avião, em 1924, quando regressava a
Paris, após haver assistido, em Varsóvia,
a várias sessões com Franck
Kluski.
Retirado dos destroços, ainda segurava
sua valise, na qual se
continham
fragmentos de moldes em parafina.
O avião era especial e fora fretado por Geley,
porque o piloto da linha Varsóvia-Paris se
negara a transportar a valise por conter
objetos “diabólicos e maléficos”.
L. A.
Vê-se,
pelas datas de publicação, que a obra do Dr. Geley fica a meio
caminho, no tempo, entre nós e Kardec. De fato, quando, no fim da primeira
década deste século, o genial médico iniciou a publicação de seus trabalhos,
fazia exatamente meio século que Allan Kardec partira para o mundo espiritual.
Estamos, agora, a meio século da quarta edição de De L'Inconscient au Conscient. É bem verdade que há uma contínua
aceleração no processo evolutivo, pois que as conquistas científicas contém
fatores de multiplicação geométrica, ao trazerem no bojo inúmeras tomadas para
novas experimentações, inferências e combinações. Nesse ponto, é de justiça
reconhecer, em certos aspectos a obra do Dr. Geley envelheceu, se comparada
com a de Kardec. É natural que assim
seja, pois a codificação lançou a estrutura do pensamento espírita, enquanto
que os livros do Dr. Geley procuram particularizar alguns aspectos científicos que
servem de suporte à belíssima concepção doutrinária do Espiritismo. Em outras
palavras, o Dr. Geley estava condicionado ao contexto da sua época, como se
diria hoje. Ele próprio lamenta, com frequência, o precioso tempo que perdia na
contestação das mais pobres e ridículas doutrinas que, de vez em quando,
entravam na moda e passavam a ser discutidas nos meios intelectuais como
conquistas dignas do mais alto, apreço. Todas as suas obras, exceto L'Ectoplasmie
et Clairvoyance, começam com uma crítica brilhante, irresistível, às doutrinas da
época. O interesse do Dr. Geley pelo
Espiritismo não ocorreu muito cedo. Pesquisador e pensador essencialmente objetivo e frio, foi atraído, de
início, pelo Positivismo de Auguste Comte, que exerceu profunda influência na
sua formação intelectual. Não foi inútil a passagem do Doutor Geley pelo
Positivismo. A doutrina de Comte é bem ordenada e boa disciplinadora do
pensamento. Sua classificação das ciências - a conhecida escala enciclopédica -
é inteiramente válida e permanente, faltando-lhe apenas o encaixe da Psicologia,
que ele, teimosamente, recusou admitir no seu esquema, a despeito da insistência
de John Stuart Mill, seu amigo e correspondente. O Positivismo despertou em Geley
o hábito da segurança na exposição de suas ideias, nas quais não se encontra um
pensamento supérfluo ou que não esteja bem escorado no fato pesquisado e
observado. O verdadeiro horror que tinha Comte pelo improvado e pelo improvável
levou-o à extrema aridez da sua doutrina, não obstante tantos méritos que ela,
inegavelmente, possui. A exclusão da Psicologia, por certo, é um reflexo dessa
ojeriza por tudo quanto pudesse cheirar a metafísico. Essa também a razão pela
qual a ideia de Deus está ausente no pensamento de Comte. Daí porque falhou: Comte
mostrou a casa, descreveu-a, morou nela, mas não quis, nem por um instante,
tomar conhecimento da existência do Arquiteto que a projetou, construiu e
mantém.
Assim,
quando o Positivismo começou a parecer-lhe insatisfatório, o Dr.
Geley dele se retirou, utilizando-se, no entanto, do que tinha ele de
aproveitável. A própria concepção básica de Geley, ou seja, a sua
doutrina evolutiva da conscientização progressiva do ser, é conceito de grande
pureza doutrinária espírita, que pode ser colocado numa estrutura positivista. É
o que vemos nitidamente na escala enciclopédica a marcha continua do processo de alertamento da consciência espiritual. A escala comtiana
está montada da seguinte maneira: Matemátioa, Astronomia, Física, Química,
Biologia, Sociologia e Moral. O encaixe da Psicologia está certamente
entre a Biologia e a Sociologia, mas Comte vivia obcecadamente ligado ao número
sete e por certo não desejou admitir um oitavo degrau na sua escala, ainda mais
que introduziria, a seu ver, condições metafísicas na sua doutrina. De qualquer
maneira, sua classificação é uma escalada na direção da vida oonsciente.
Com
essa introdução, que já vai ficando um tanto longa, passemos ao exame da obra
do Doutor
Gustave Geley.
.........................................
O
seu primeiro trabalho, em ordem cronológica, é um resumo da Doutrina Espírita,
que ele organizou para seu próprio uso, ou, como disse, para fixar suas
próprias ideias a respeito do Espiritismo. Tão bom ficou, que alguns amigos
convenceram-no a publicá-lo sob a forma de ensaio. Ao que eu saiba, é o único
escrito do Dr. Geley traduzido para o português.
O livro L’Être Subconscient chamou-lhe o
autor "Ensaio de síntese explicativa
dos fenômenos obscuros da psicologia normal e anormal".
Depois
de uma introdução à metodologia e à evolução da filosofia científica, entra. ele
no estudo dos fenômenos psíquicos que constituem o objeto da psicologia normal
e da anormal, no primeiro caso, as diferenças intelectuais e morais entre os seres
humanos, as diferenças entre aquilo a que chamou hereditariedade ou atavismo
psíquico e físico, a permanência da personalidade, os fenômenos psíquicos
inconscientes e o sono. Quanto à psicologia anormal, estudou as neuroses, o
chamado fenômeno das personalidades múltiplas, o hipnotismo, os fenômenos de
materialização e desmaterialização, a telepatia e a mediunidade. Em seguida, no
capitulo 3º, trabalha na interpretação das novas hipóteses que emerjam dos
fenômenos observados, expondo, no capítulo 4º, uma teoria sintética de psicologia
à base das novas noções. No 5º capítulo, examina as objeções levantadas, com a
de Grasset, com que termina a
primeira parte do livro. Na segunda, oferece o esboço de uma filosofia
idealista à base das novas ideias contidas na fenomenologia observada. O capítulo
primeiro cuida da doutrina palingenésica, e o segundo apresenta algumas
induções - ele não lhes chamaria jamais de conclusões metafisicas. Seria
impraticável, num trabalho de síntese como este, contido por rígidas limitações
de espaço, aprofundar o estudo da obra de Geley; mas não podemos deixar de dar
uma espiada nas suas conclusões, às páginas 134 e seguintes, da edição de 1926
de L'Être
Subconscient.
Acha
o autor que o psiquismo humano dispõe de um “substrato fluídico" que serve
de veículo à força, à sensibilidade e à inteligência subsconscientes. Geley
chama a esse substrato ser subconsciente exteriorizável, porque, nas experiências
e observações que teve oportunidade de estudar e realizar, verificou que essa
contraparte fluídica do ser pode desligar-se do corpo físico sob condições e
circunstâncias bem caracterizadas: hipnose, magnetização, sono, drogas ou
desarranjos psíquicos, Vemos, assim, que o ser subconsciente não seria mais do
que o perispírito da doutrina espírita, ao qual o Dr. Geley talvez
desejasse emprestar uma terminologia mais neutra, que pudesse interessar o
homem de ciência de seu tempo. A substância que compõe o ser subconsciente é
"homogênea, inacessível aos sentidos
normais, imponderável, capaz de atravessar obstáculos materiais, suscetível de
ser projetada parcialmente, bem longe da pessoa" (pág. 83). Por outro lado, “é visível aos sensitivos em estado de hipnose", e “no estado normal, a substância fluídica
exteriorizável se irradia mais ou menos distante da periferia do organismo, mas
não se exterioriza notavelmente senão nos estados hipno-mediúnicos"
(mesma página).
Qual
seria, porém, a origem, a gênese do ser subconsciente? “O ser subconsciente exteriorizável - diz Geley, à pág. 94 - é o produto sintético duma série de consciências
sucessivas que se fundem nele e que pouco a pouco o constituem". Em
outras palavras: resulta de uma contínua estratificação de experiências, ao
longo de inúmeras encarnações. Mais adiante, à pág. 101, o autor acrescenta
alguns informes, ao declarar que o “ser
subconsciente (alma e seu psiquismo superior) seria o eu real, a
individualidade permanente, síntese das personalidades sucessivas transitórias,
produto integral da dupla evolução terrestre e extraterrestre". Numa
chamada, em seguida à palavra individualidade, Geley - sempre
muito lúcido, claro e objetivo - esclarece bem o seu pensamento dizendo que “a palavra individualidade designará sempre o
ser subconsciente, em oposição à personalidade, que representará o ser consciente
normal". “Se desejamos, agora, resumir em poucas linhas a nossa
concepção da psicologia - escreve à pág. 135 - diremos: a síntese psíquica é
constituída de dois psiquismos de natureza e origem diferentes: “o psiquismo
inferior", produto do funcionamento cerebral, e "o psiquismo
superior", independente do funcionamento cerebral. Ao que chamamos consciência
normal é o resultado da colaboração dos dois psiquismos, colaboração na qual o
psiquismo superior desempenha o papel diretor e centralizador. Ao que chamamos
consciência anormal é o resultado - da atividade isolada do psiquismo inferior
(subconsciência inferior) ou do psiquismo superior; (subconsciente
superior)".
Nada
impede, pois, que o psiquismo superior - ou seja, o Espírito - sobreviva à
morte do corpo físico, pois ele independe do
funcionamento cerebral, é capaz de funcionar sem o cérebro físico.
Na
segunda parte, no capitulo sobre a filosofia palingenésica, o Dr.
Geley explica o problema do mal, obstáculo que nenhuma outra concepção
é capaz de situar logicamente no pensamento humano. O mal, segundo o eminente
médico francês, "é a medida da
inferioridade dos mundos e dos seres", sendo no entanto, "condição que favorece a evolução”, pois
que representa “a sanção dos atos
individuais.”
O
livro termina com algumas páginas sobre o problema da evolução, que seria
desenvolvido em maior profundidade no livro seguinte, De L'Inconscient au Conscient
.
É
o que veremos a seguir.
...............................
O
objetivo dessa obra, nas palavras introdutórias do autor, é o de "compreender, numa síntese mais completa e
mais vasta, a evolução coletiva e a evolução individual".
"Pretendi, antes de tudo - prossegue - fazer obra de síntese, e esta síntese deve
ser considerada nela mesma, abstraídos os pormenores negligenciados ou
voluntariamente omitidos. Não há, na verdade, uma só das questões aqui
examinadas que não necessitasse, para ser aprofundada, do esforço de toda uma
existência. Essa é obra própria dos analistas e eu a deixo nas suas mãos. A
minha é completamente diferente, pois que visa, antes de tudo, à pesquisa ideal
de uma vasta concepção de filosofia geral, baseada nos fatos."
Esse
é o programa de trabalho que ele desenvolve neste livro magnifico.
A
primeira parte da obra é dedicada ao estudo critico das teorias naturalistas
clássicas da evolução, demonstrando de maneira irrespondível a insuficiência
que elas revelam para fazer compreender a origem das espécies, a origem dos
instintos, as transformações bruscas, criadoras de novas espécies, e a
cristalização imediata e definitiva dos caracteres essenciais às espécies
novas. Além disso, as doutrinas clássicas da evolução não resolvem a
dificuldade geral, de ordem filosófica, que faz sair do simples, o complexo, e,
do menos, faz sair o mais.
Na
segunda parte são tratadas as concepções clássicas da individualidade
fisiológica e psicológica.
Depois
de analisar metodicamente as principais doutrinas evolucionistas propostas
pelos pensadores do seu tempo, o Dr. Geley expõe a sua concepção do
evolucionismo como um processo contínuo, no sentido da progressiva
conscientização do Espirito.
Para
abreviar este trabalho expositivo e meramente informativo acerca da obra do
grande médico francês, passaremos, sem nos deter, sobre sua critica às
doutrinas de Darwin e Lamarck (ele considera esta última
"infinitamente mais satisfatória"
do que a de Darwin, ainda que com
algumas lacunas e insuficiências).
Crítica
mais profunda e maciça é a que faz à obra de Bergson, especialmente (mas não unicamente) L'Evolution Créatrice
("A Evolução Criadora") , do eminente filósofo francês, seu
contemporâneo. Aliás, quem desejar uma interpretação resumida e muito clara da
obra de Bergson deverá recorrer ao
texto de Geley, neste livro.
Feitas
as criticas mais importantes, começam a aparecer as primeiras conclusões
preliminares, sempre em linguagem simples, desataviada, precisa, inequívoca.
"Tudo se passa em Biologia - diz
ele, à pág. 67 - como se o ser físico fosse
essencialmente constituído por uma substância primordial única, da qual as
formações orgânicas não são mais que simples representações."
Isso
porque, não apenas a formação do corpo físico, mas também a coordenação das diversas
funções e a manutenção orgânica do ser exigem um comando único inteligente,
imaterial, superior ao organismo físico e a ele sobrevivente. O perispírito é,
pois, esse organismo superior, através do qual atua o Espirito sobre a matéria
inerte.
Aqueles
que atribuem a genialidade a uma deformação, disfunção ou doença psíquica - e
muitos ainda assim acreditam hoje - responde Geley de maneira
irrefutável: "É contrário a tudo
quanto nos ensina a fisiologia declarar que um órgão doente é capaz de dar produtos
superiores aos do órgão sadio, sobretudo de maneira constante e regular. Há uma
contradição insustentável, por exemplo, em declarar que a força intelectual
genial é função da doença" (página 115).
E,
mais adiante (pág. 143), uma declaração positiva e sem rodeios ou
meias-palavras: "Há, no ser vivo, um
dínamo-psiquismo que constitui a essência do eu e que não pode absolutamente se
reportar ao funcionamento dos centros nervosos. Esse dínamo-psiquismo essencial
não é condicionado pelo organismo; muito ao contrário, tudo se passa como se o
organismo e o funcionamento cerebral fossem condicionados por ele."
Ampliando
essa ideia apresenta, já à página 220, outra conclusão preliminar ao dizer o
seguinte:
"Numa palavra, temos de nos render à
evidência: o complexo orgânico, o corpo, não possui qualidades definitivas e
absolutas nem especificidade própria. Por sua origem, por seu desenvolvimento,
por suas metamorfoses embrionárias e pós-embrionárias, por seu funcionamento
normal, como por suas possibilidades ditas supranormais, pela manutenção da
forma habitual, como pelas desmaterializações e rematerializações metapsíquicas,
esse organismo é determinado por um dinamismo superior que o condiciona. Ele
surge não mais como o indivíduo todo, mas simplesmente como um produto
ideoplástico do que há de essencial no individuo, um dínamo-psiquismo que
condiciona tudo, que é tudo. Em termos filosóficos, o organismo não é o
individuo: ele não passa de sua representação."
Quanto
às origens do ser, "a individualização
começa sempre que aparece, no inconsciente primitivo, um rudimento de
consciência." "Desde que esse
rudimento de consciência é adquirido, ele se torna indelével, e irá, dai em
diante, se expandindo sem cessar, ao infinito."
Quanto
ao futuro, é lógico que, com o "derramamento
do consciente no inconsciente, clareando este cada vez mais, chegará necessariamente
um momento em que nada mais haverá de misterioso nem obscuro".
Nesse
ponto não haverá mais a separação entre consciente e inconsciente. "Tudo o que constitui o ser, como capacidades
e como conhecimentos, todo o seu formidável passado lhe serão imediatamente
acessíveis, integralmente, regularmente, normalmente. Mesmo as capacidades
supranormais serão submetidas à vontade consciente. O ser subconsciente terá
desaparecido: não existirá senão o ser consciente." (pág. 249).
A
sobrevivência do Espirito e a comunicabilidade entre encarnados e desencarnados
é estudada a seguir, em algumas páginas lamentavelmente curtas. Evidente que
era intenção do autor estudar o problema particular da mediunidade, da
sobrevivência e da comunicação espírita em obras posteriores, mas antes que
isso fosse possível desencarnou o eminente médico e cientista. Vejamos, porém,
algo do que disse a respeito: "A
manifestação de um "espírito desencarnado" no plano material, com a
ajuda dos elementos dinâmicos e orgânicos sacados ao médium, surge
imediatamente como uma inegável possibilidade." Hodgson, saído dum ceticismo absoluto, declarou,
após doze anos de estudo, "que não havia mais lugar no seu espírito nem
mesmo para a possibilidade de uma dúvida sobre a sobrevivência e a realidade
das comunicações entre vivos e mortos; Hyslop,
Myers e, recentemente (1920), O. Lodge proclamaram bem alto a mesma
convicção" (pág. 277).
E
as conclusões, sempre presentes, sempre claras e lúcidas, em todas as obras de Geley:
"Que importa, então, a morte? Ela não destrói
senão a aparência, uma representação temporária. A individualidade verdadeira,
indestrutível, conserva, assimilando-as, todas as aquisições da personalidade
transitória; depois, banhada de novo por algum tempo nas águas do Lete (*) ,
vai materializar uma personalidade nova e continuar assim sua evolução
indefinida. Sim, isso é o que a natureza nos ensina, muito claramente; e a
natureza jamais mente!"
(*)
Lete - rio em que, segundo os gregos, se banhavam as almas dos mortos que se
dirigiam às regiões infernais: o banho apagava as lembranças da vida. (Nota do
autor do livro).
Convém
repetir aqui uma citação de Schopenhauer,
feita lá no principio do livro pelo Dr. Geley: "Não compreendemos a linguagem da natureza
porque ela é simples demais." O homem tem o péssimo hábito de complicar aquilo
que é simples.
O
esquecimento do passado, um dos argumentos principais daqueles que procuram
negar a reencarnação, é explicado nas seguintes observações: "A ignorância do passado, como a ignorância
do presente, é um bem, um grande bem. Somente o ser idealmente evoluído poderá,
sem inconveniente, conhecer toda a formidável acumulação de experiências, de
sensações e de emoções, de esforços e de lutas, de alegria e de dores, de amor
e ódio, de sentimentos baixos ou elevados, de sacrifícios ou de atos egoístas,
de tudo, enfim, que se constituiu pouco a pouco sob suas personalidades
múltiplas e as distinguiu e especializou passo a passo. Se tivesse, ainda que
num clarão súbito, esse conhecimento formidável, o homem comum seria fulminado.
Já lhe pesam bastante os seus erros e preocupações presentes. Como suportaria,
por acréscimo, o peso das dores passadas, da tolice, da baixeza, das paixões
animais que o agitaram, da monotonia incomensurável das vidas banais; os
pesares das existências privilegiadas ou os remorsos das existências criminosas?" (pág. 319).
Diante
dessa imagem evolutiva da vida espiritual, no seu progressivo e incessante
processo de alargamento da consciência à custa da redução, também gradativa, do
inconsciente herdado do animal, a visão filosófica do Dr. Gustave Geley é uma
visão otimista e feliz, segundo a qual "a realização progressiva do bem supremo emerge como evidência indiscutível".
Nesse quadro, o mal tem apenas uma importância relativa e é sempre reparável;
"a morte perde totalmente a característica
de maldição que lhe foi cegamente atribuída pelo ser humano, na limitação de
seus órgãos grosseiros e fechado no circulo da ilusão material". Ao
contrário de ser a distribuidora de terrores insuportáveis, a morte é a grande
libertadora, porque sem ela não seriam rompidas as cadeias que prendem o ser
dentro das limitações de uma só existência. "Ela força o ser a abandonar, com um organismo usado, hábitos
transformados em rotina estéril" (pág. 331).
Examinaremos,
por último, L'Ectoplasmie et Clairvoyance.
....................................
Nos
dois livros precedentes de que acabamos de dar notícia, o Dr. Geley limitou-se praticamente
à derrubada das doutrinas evolucionistas e psicológicas de seu tempo e à
meticulosa montagem de seu sistema de concepções. Suas conclusões são as da
Doutrina Espírita: preexistência e sobrevivência do Espírito; evolução através
de uma série de encarnações; o inconsciente como depósito indelével das
memórias de passadas vidas, independente das funções cerebrais; existência do
perispírito, organismo vivo constituído de uma substância fluídica levíssima,
mas com todos os recursos necessários à formação e manutenção do corpo físico; a morte, como simples
processo de dissociação entre corpo e Espírito, de vez que o corpo não é mais
do que a representação visível do ser real que é o Espírito imortal.
Essas
conclusões, de tão elevado alcance filosófico e moral, tinham seus suportes
sólidos e irrecusáveis nos fatos constatados através de uma riqueza muito
grande de fenômenos bem observados ao longo do tempo. Já àquela altura,
primeira década do nosso século, dizia o Doutor Geley, com a sobriedade e
convicção que o caracterizavam, que se dispensava de repetir monotonamente os
fatos psíquicos, porque os tinha por suficientemente documentados e
estabelecidos com muito critério na copiosa literatura científica da época. Foi a época de Crookes, William Barret, Oliver Lodge,
Conan Doyle, Richet, Bozzano,
Santoliquido e muitos outros. Época de
bons médiuns e bons pesquisadores. Tanto no L'Être Subconscient como
no De
L'Inconscient au Conscient, o Dr. Geley informa que deixou à
margem a narrativa dos fatos não apenas por julgá-los suficientemente
comprovados em outros livros que mereciam fé pública, como por entender que a
intercalação de tais narrativas interferia com o fluxo e a unidade da sua
exposição.
Nisto
se agarraram os críticos de sua obra para declarar que o grande médico,
respeitável por todos os títulos, tinha concebido uma teoria muito complexa, de
muito largo alcance, até mesmo revolucionária, baseada em “fatos
insuficientemente estudados e estabelecidos". Sem argumentos nem
conhecimentos para contestar a doutrina exposta - que é uma tradução, em termos
estritamente científicos, das linhas mestras da Codificação Kardequiana - os
críticos apelaram para a insuficiência da comprovação. Perguntavam, em última
análise, onde e em que fatos fora o Dr. Geley buscar apoio para as suas
teorias.
Daí
a razão de L'Ectoplasmie et Clairvoyance. Querem fatos? Aí os têm os críticos. E foram tão
abundantes e tão bem documentados, que as conclusões filosóficas e os
raciocínios científicos tiveram de ser diferidos para outro volume. L'Ectoplasmie
et Clairvoyance é, pois, uma coletânea minuciosa, exata, irrespondível
de fatos psíquicos observados pelos mais rigorosos métodos de controle
científico: é uma verdadeira montanha de fatos. Ninguém mais poderia ignorá-los,
a não ser por manifesta e teimosa má fé.
Por
isso, na introdução do seu livro, o Doutor Geley se refere à “oposição sistemática e apaixonada"
que sofrem todas as descobertas científicas que surgem de repente e fazem
explodir o tranquilo conhecimento adquirido, catalogado, consagrado e
armazenado nas academias.
Ia
mais longe, porém. Seu livro, como repositório de novos fatos devidamente
comprovados, era totalmente confiado ao público
sem nenhuma observação que procurasse atrair o leitor para conquistá-lo. Ele que
julgasse por si mesmo, diante dos relatos, das fotografias, dos depoimentos,
das atas, dos testemunhos mais insuspeitos dos homens, mas eminentes e
desinteressados.
“Minhas pesquisas - diz Geley
- Tem sido apaixonada e violentamente
contestadas;. jamais foram seriamente examinadas nem discutidas pelos
adversários dos nossos estudos." (Grifos no original, à pág. 11).
Aos
que invocaram a ausência de documentação metapsíquica na sua obra, o Dr.
Geley respondia assim: “Esse argumento repousa num erro de
interpretação: a filosofia exposta em “Do Inconsciente ao Consciente"
não assenta em fatos metapsíquicos. Esses fatos confirmam a minha filosofia,
emprestam-lhe um apoio, a meu ver, decisivo. Eles não a condicionam de maneira
alguma. Se eles fossem falsos ou inexistentes, minha filosofia poderia
subsistir inteiramente tanto quanto a metafísica ou o sistema científico."
Assim,
“A
Ectoplasmia e a Clarividência" não passa de “uma simples exposição de fatos. Não contém teoria, nem indução
filosófica". Estas ficariam para o segundo volume que, ao que sabemos
e infelizmente, não chegou a ser concluído, muito embora prometido para dentro
de alguns meses.
O
plano do livro é simples. Uma parte cuida dos fenômenos que ele incluiu na
Metapsíquica Subjetiva: telepatia, clarividência, premonições, escrita
automática (psicografia), etc. A segunda parte do livro - a Ectoplasmia -
cataloga os fenômenos a que hoje chamaríamos efeitos físicos, principalmente as
materialização de seres humanos e de animais, fenômenos luminosos, moldagens,
etc.
O
livro é abundantemente ilustrado com excelentes fotografias - 53 clichês fora
do texto e 103 outras gravuras.
Para
os objetivos deste trabalho não há realmente muito que comentar acerca do
livro, a não ser que dispuséssemos de espaço para examinar os fenômenos mais
notáveis. Como já ficou dito, o livro é um maciço imponente e esmagador de fatos
bem documentados, uma verdadeira mina para quem deseja um fenômeno bem
comprovado, bem relatado e muito bem testemunhado. Existem atas assinadas por
uma verdadeira constelação de gênios: Geley, Lodge, Flammarion, Santoliquido, Osty, Marcel Prevost , René Sudre e muitos outros.
Além
desse fabuloso interesse documental, a obra oferece preciosas observações acerca
da mediunidade, das condições de bom rendimento do médium, como se devem portar
os experimentadores, como tratar o problema da iluminação das sessões, as
medidas de controle que devem ser adotadas, o cuidado com as fraudes, etc.
Tais
conselhos e sugestões, de quem tão meticulosamente estudou a fenomenologia, são
de grande interesse e inteiramente válidos até hoje. Pelo menos, esse texto
deveria ser traduzido e divulgado, porque, com recomendações de tão seguro
teor, muito teríamos todos nós que aprender na disciplinação das nossas
experiências e contatos com o mundo espiritual, nas sessões práticas de
Espiritismo.
Na
introdução a L'Ectoplasmie et Clairvoyance, começa o Dr. Geley por dizer que “A
fase “heróica" da metapsíquica parecia ter chegado ao fim. Sem dúvida, a
realidade dos fenômenos mediúnicos não é ainda aceita sem discussão nem
reservas, mas não é mais negada sistematicamente."
Passados
quase cinquenta anos, a roda do tempo chegou mais perto da marca final do
milênio, que se encontra a apenas 29 anos: o espaço aproximado de uma geração.
E não sei se, a despeito da dramaticidade da hora e da urgência
que todos tem de, pelo menos, ter notícia desses fenômenos para decidir o rumo
do pensamento, não sei se já chegou ao fim a fase heroica da fenomenologia
psíquica. O que aconteceu foi que novos cientistas, com novos métodos, novos
aparelhos e novas doses de ceticismo, recomeçaram tudo no terreno da
experimentação psíquica e para isso inventaram também um novo termo mágico,
ainda e sempre sacado ao velho e sempre belo idioma grego: Parapsicologia. E
que adiantou? Depois de quarenta anos de pesquisa, retomada do ponto em que a
deixou a antiga Metapsíquica de Richet,
vieram dizer-nos que sim, que o ser humano possui realmente faculdades que
escapam ao rígido enquadramento no tempo e no espaço e que, ao contrário do que afirmavam até há pouco
muitos filósofos respeitáveis, há informações que vão ao intelecto ou de lá
emergem sem a passagem obrigatória pelos sentidos físicos. Mas, meu Deus, disso
já sabemos há 1 século! Desde a fase heroica - esta sim - em que Allan Kardec escreveu os livros da
Codificação Espírita. Quem, depois dele, produziu algo melhor em Metapsíquica
ou em Parapsicologia do que o excelente tratado intitulado «O Livro dos
Médiuns"?
Quanta
luta, Senhor, para convencer o homem de que ele é muito mais do que parece, de
que a morte não existe, de que o Espírito evoluí, sem cessar, do inconsciente
para o consciente na direção de Deus!
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