Allan Kardec,
venerado Mestre e excelso Codificador do
Espiritismo
por Vianna de Carvalho
Reformador (FEB) pág. 108 ano 1908
Pairava
ainda nos âmbitos da Europa o estridor das demolições perpetradas pelo escopro
inexorável da Enciclopédia.
Os
horizontes da Civilização se afogavam na escuma dos ódios revolucionários.
A
França, para inscrever os direitos do homem no código sereno da Justiça,
desencadeara uma hecatombe horrível.
Caudais
de sangue tinham ensopado o solo, em que mais tarde a árvore da liberdade
deveria abrir a sombra amiga, protegendo os humildes e os fracos contra as
cóleras do despotismo.
Na
fauce hiante daquela voragem, assinalando o trágico expirar do século dezoito,
não se sumiu apenas a um trono, mas todo um passado coberto de labéus e ferido
de morte pela condenação das consciências
revoltadas.
As
crises históricas têm o seu cortejo pavoroso de iniquidades, as suas aberrações
e anomalias resvalando no crime, mas também resplandecências redentoras se
esparzindo gloriosamente por sobre o montão de ruínas que
semeiam na passagem veloz. A reforma das agremiações humanas, combalidas por vícios
tradicionais, aprisiona em seu bojo tempestades condensadas pela imprevidência dos
legisladores.
Se
o dinamismo irresistível da evolução arranca as raízes das tiranias, ao mesmo
tempo desfere golpes nas armaduras das aspirações de cuja vitalidade haure os
lauréis de seus triunfos.
O
poder esmagado de Luís XVI não valia a cabeça genial de André Chenier, rolando
do cadafalso ao tigrino clamor das multidões desvairadas.
Quando
Voltaire, Diderot, Montesquieu, Condorcet... faziam fermentar, com análises
perscrutadoras e audaciosas teorias, os gérmens de um cataclismo social, nem
pressentiam sequer a série tenebrosa de atentados,
desfraldada depois em nome da Ciência, do Progresso e da Fraternidade.
Por
isso, os alvores do século das luzes surgiam tintos dos funéreos reflexos
exalados ao crepitar das batalhas fumegantes.
A
torrente das agitações intestinas revolvera tumultuariamente os esteios da
ordem administrativa, econômica e intelectual de um povo se arremessando para o
futuro por um longo tirocínio de provanças e obscurantismo.
Destarte,
após aquele arrojo titânico, sob cujas ondas fragorosas tantas existências
naufragaram, persistiria, como persistiu, o frêmito de aniquilar quanto era
ainda vestígio das gerações caducas.
As
águias napoleônicas transpunham neves alpinas, sorridentes planícies da
romanesca Itália, franjas alvacentas do Mediterrâneo, e iam-se agasalhar no
topo das pirâmides petrificadas em plena vastidão dos areais infindos.
Os
prelúdios de uma glória, soerguida ao estourar das metralhas, já cobriam de
cinzas o cadáver das instituições, amparadas um momento pelo verbo flamívomo de
Mirabeau nas assembleias submissas à fascinação da eloquência.
Precursores
nimbos de borrasca vizinha mareavam o azul do Velho Continente.
Muito
em breve, legiões sombrias, devorando as distâncias com a impetuosidade das
avalanches soltas, tinham de assentar seus arraias em Austerlitz, Wagram, em Zaragoza...
ao som de músicas guerreias abafando as soluções das vítimas ceifadas.
Nessa
hora de suprema angústia, parecia que se cerravam as pálpebras divinas nos
penetrais do Infinito.
Não
formulemos, porém, conjetura tão blasfema; pois nesse mesmo ano em que Pio VII
esquecia as suntuosidades anti-religiosas do Vaticano, ao vir coroar Bonaparte
em Paris, um meigo Espírito se exilava das alturas felizes,
descendo à Terra no cumprimento de uma esplêndida missão altamente
regeneradora.
Sabeis-lo...
esse Espírito seria o insigne codificador de uma doutrina em cujo seio há
repouso para todas as fadigas, bálsamo para todos os infortúnios e esperanças
para todas as incertezas de nossa mísera existência.
Allan
Kardec, enviado pela misericórdia celeste, vinha renovar as promessas de Jesus,
restabelecer a pureza de seus ensinos, falseados através das idades, e erigir o
lábaro da Nova Revelação sobre o cairel de mil conturbadas
paixões.
A
tarefa assumia relevos verdadeiramente desanimadores.
Nas
épocas de transição, só os gigantes do pensamento envergam a enfibratura de
aço, personificada nesse herói da grega mitologia que estrangulou a hidra de
Lema, domou o touro da ilha de Creta e conseguiu subtrair os frutos de ouro do
jardim das Hespéridas.
Kardec
mediu a travessia eriçada de abrolhos, cavada de pélagos vorazes, com esse
olhar da águia que aprende, desde nova, a só fitar os alcantis alterosos.
A
sua responsabilidade era tão grande como a obra, a cuja edificação vinha
consagrar todas as energias e estremecimentos de uma alma que se devota
ardentemente à causa do bem comum.
Vacilar
ou esmorecer, seria o retardamento do progresso humano em sua marcha
ascensional aos páramos da luz.
Aquele
Titã do Espiritualismo contemporâneo, antes se deixaria esmagar ao peso de
desventuras imensas, do que retroceder em face das oposições levantadas pelo
egoísmo dos sistemas filosóficos e credos religiosos a se digladiarem encarniçadamente.
Iniciada
a trajetória que se traçara, obedecendo aos nobres impulsos de uma compleição
diamantina, seguiu-a sem discrepâncias até ao marco extremo, com a serenidade
dos justos e o desassombro dos fortes coroando-lhe a fronte em fúlgidos diademas.
As
farpas da inveja e da calúnia, a baba dos preconceitos, os gritos dos
interesses inconfessáveis feridos em seus redutos, debalde se insurgiram contra
os salutares princípios enfaixados possantemente por sua
lógica de bronze.
Esses
embates sem norte se estilhaçavam de encontro à couraça de suas convicções
luminosas.
É
que ele era a viva encarnação da tenacidade posta ao serviço de sentimentos puríssimos.
Por
fim as tubas do triunfo desatavam já as suas festivas notas, quando a morte o
surpreendeu no retinir das pelejas.
O
estrênuo lidador caiu como o cedro da floresta ao sopro dos furacões, mas o seu
Espírito ascendeu mais refulgente aos visos da imortalidade.
***
Mestre,
a esta hora, por toda a parte, hinos de gratidão se evolam em torno de tua
memória estrelejada de bênçãos.
A
família espírita universal curva-se agradecida pelos benefícios que nos
legaste, legando-nos também o exemplo fecundo de tantas abnegações dignas
somente dos missionários da Verdade.
A
doutrina que pregaste - a mesma de Jesus - continua de pé, como o rochedo que
no alto mar a fúria das vagas desafia.
Não
prevaleceram contra ela os golpes arremessados pelos ódios e injustiças
venenosas de teus contemporâneos.
É
a própria Ciência que se impõe o dever de proclamar, pela voz de seus luzeiros,
a inquebrantável solidez do Espiritismo.
Somente,
ainda não soou o instante de nossa completa regeneração.
Até
hoje os espíritas não se penetraram suficientemente desses raios vivificantes,
que são o amor, a justiça e o perdão...
Ajuda-nos,
pois, a transpor os abismos interpostos entre a nossa tristíssima condição de
degradados e a inalterável felicidade destinada a todas as criaturas pela
misericórdia sem términos do Pai Celestial.
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