A Interpretação da palavra de Jesus entre
os espíritas precisa ser cuidadosa, a fim de que não surjam dúvidas capazes de torcer-lhe o verdadeiro sentido. Em "O
Evangelho segundo o Espiritismo" está tudo muito claro, muito
compreensível, de fácil assimilação. Mas, há sempre aqueles que passam muito
rapidamente sobre os textos, relendo-os como quem se inteira das corriqueiras
notícias do dia, em vez de permanecerem atentos ao espírito das sentenças.
Não raro, encontramos pessoas desafeiçoadas
ou indiferentes ao Espiritismo que, pelas opiniões que emitem em determinadas
circunstâncias, supõem que a verdadeira atitude do espírita deve ser passiva,
para não desagradar a ninguém, para evitar julgar e não incorrer no risco de
vir a ser julgado. Então, se o espírita profliga um ato mau, um comportamento censurável ou um gesto digno de reprovação enérgica, simulam
surpresa e perguntam, com um certo ar de ironia:
- Você, um espírita, agir assim?
Esqueceu-se da tolerância? Não se lembra do que diz o Evangelho - "não julgueis
para não serdes julgados"?
Trata-se de um recurso um tanto solerte,
sem dúvida, porque o espírita não está desligado da humanidade. É um ser
humano, sujeito, como todos, às influências do meio em que vive e subordinado
às mesmas leis que regem a vida comum de outras pessoas. Não pode, nem deve,
figurar como uma múmia, incapaz de usar do seu direito de opinar, de criticar, embora conscienciosamente, o que não puder deixar de ser
criticado, de punir o que for necessário punir. Isso é claro como água.
Entretanto, a sua opinião, a sua crítica e o exercício da punição, quando for
imprescindível exercê-lo, terá de pautar-se pelo espírito do Evangelho. A
opinião, a crítica ou censura e a
punição devem conter, sempre e sempre, primordialmente, uma finalidade
educativa, corretiva, saneadora, nunca ferina, implacável ou odiosa.
O espírita não pode ser um
"maria-vai-com-as-outras", nem um piegas. É um ser integrado numa
realidade. Não é possível desvincular-se dessa condição, porque integra a
humanidade.
O Evangelho ensina-nos a todos que "a misericórdia é o complemento da brandura,
porquanto aquele que não for misericordioso não poderá ser brando e pacífico".
Se alguém persiste na prática de uma ação má, recalcitrante, portanto, o
espírita deve aplicar a energia compatível com a gravidade do ato consumado.
Mas essa energia não significa violência verbal ou física, mas uma sanção
moral. E disso Jesus nos deu exemplos expressivos, ele, a encarnação da bondade
e da doçura. Era preciso, porém, que o fizesse, quer ao defrontar os vendilhões
que ultrajavam o templo, quer ao proferir frases enérgicas, como "raça de
víboras", "hipócritas", etc. Mas Jesus tinha e tem autoridade
para isso. O essencial é que, ao adotarmos uma atitude que implique censura ou
advertência, tenhamos, mutatis mutandis, dentro da relatividade necessária,
autoridade moral para fazê-lo, sem desbordamento, sem excesso. A repressão do
mal não invalida a oportunidade do perdão, embora ,"o homem seja sempre
punido por aquilo em que pecou".
Não fora assim, o mundo se transformaria
num caos, num pandemônio, sem ordem, sem disciplina, sem respeito, por não
haver lugar para a autoridade, para a obediência, para a repressão do mal e o
incentivo do bem. A chamada "psicologia moderna", baseada na
liberdade total do indivíduo, deu "nisso" que se vê, hoje, na Terra:
desordem generalizada, deseducação de homens, mulheres, jovens e crianças. Criaram-se
pseudo teorias de educação. Todos estão sujeitos a adquirir "complexos",
"recalques" etc., segundo algumas teorias, de modo que cada qual deve
fazer o que entende, para poder ser uma criatura integral, com liberdade
ilimitada, etc., etc.
Não é condenável a censura que colima
coibir o mal e salvar o pecador, que deve ser esclarecido, orientado, educado,
para que reconheça a inconveniência do que disse ou fez, arrependendo-se e
mostrando-se disposto a não reincidir no erro cometido. "O reproche lançado à conduta de outrem pode
obedecer a dois móveis: reprimir o mal, ou desacreditar a pessoa cujos atos se
criticam. Não tem escusa nunca este último propósito, porquanto, no caso,
então, só há maledicência e maldade. O primeiro pode ser louvável e constitui
mesmo, em certas ocasiões, um dever, porque um bem deverá daí resultar, e
porque, a não ser assim, jamais, na sociedade, se reprimiria o mal. Não cumpre,
aliás, ao homem auxiliar o progresso do seu semelhante? Importa, pois, não se
tome em sentido absoluto este princípio: "Não julgueis se não quiserdes ser julgado", porquanto a letra mata e o espírito vivifica."
Ratificando essas palavras, assim termina o
comentário: "A consciência íntima,
ao demais, nega respeito e submissão voluntária àquele que, investido de um
poder qualquer, viola as leis e os princípios de cuja aplicação lhe cabe o
encargo. Aos olhos de Deus, uma única autoridade legítima existe: a que se
apóia no exemplo que dá do bem. É o que, igualmente, ressalta das palavras de
Jesus" ("O Evangelho segundo o Espiritismo", cap. X, item 13, páginas 180/1, 64.a ed., FEB, 1976).
Não deve, pois, o espírita ser um
excêntrico, um exótico na sociedade humana, à qual pertence e da qual não pode
marginalizar-se. Sempre que a indulgência não seja prejudicial ao faltoso nem a
terceiros, deve ser exercida, pois, adequadamente utilizada, será uma prova de
amor, e é de amor que o mundo precisa, é de amor que todos nós precisamos, a
fim de que se cumpra o mandamento do Mestre amado: "Amai-vos uns aos outros!" E não sete vezes apenas, "mas até
setenta vezes sete vezes".
A atitude normal do espírita-cristão tem de
ser a de uma criatura sintonizada com Jesus. Aprendamos a não ser
desagradáveis, a não vermos somente o lado escuro da vida. Pelo contrário,
busquemos dentro de nós a paz que precisamos transmitir aos nossos semelhantes.
Para isso, procuremos criá-la através da exemplificação da Doutrina e do
Evangelho. Só com os exemplos é que poderemos construir uma personalidade
espírita-cristã. Palavras, faladas ou escritas, são de valor relativo. O que
vale, realmente, é o exemplo. Não seremos nunca espíritas, e muito menos
cristãos, se adotarmos uma atitude hipócrita, aparentando virtudes que não
cultivamos. Poderemos enganar as outras pessoas, podemos enganar-nos a nós
mesmos, mas não enganaremos a Deus, a Jesus e aos Espíritos devotados que
cumprem mandatos do Alto. Dizer-se alguém espírita é fácil. Ser espírita,
porém, espírita de verdade, depende de sacrifícios a que teremos de submeter a
nossa alma, para livrá-la do orgulho, do egoísmo e de outros defeitos graves.
No Evangelho citado, cap. V, página 121, há
uma comunicação espiritual de Fénelon, cujo final, por expressivo, reproduzimos
a seguir: "Habituai-vos a não
censurar o que não podeis compreender e crede que Deus é justo em todas as
coisas. Muitas vezes, o que vos parece um mal é um bem. Tão limitadas, no
entanto, são as vossas faculdades, que o conjunto do grande todo não o
apreendem os vossos sentidos obtusos. Esforçai-vos por sair, pelo pensamento,
da vossa acanhada esfera e, à medida que vos elevardes, diminuirá para vós a
importância da vida material que, nesse caso, se vos apresentará como simples
incidente, no curso infinito da vossa existência espiritual, única existência
verdadeira."
Está claro que a tolerância mal
compreendida e pior aplicada pode servir de incentivo ao mal e, assim, em vez
de contribuir para a reparação de um erro e a regeneração de um faltoso, terá
efeito contrário. Demais, "não é
possível que Jesus haja proibido se profligue o mal, uma vez que ele próprio
nos deu o exemplo, tendo-o feito, até, em termos enérgicos. O que quis
significar é que a autoridade para censurar está na razão direta da autoridade
moral daquele que censura. Tornar-se alguém culpado daquilo que condena noutrem
é abdicar dessa autoridade, é privar-se do direito de repressão. A consciência
íntima, ao demais, nega respeito e submissão voluntária àquele que, investido
de um poder qualquer, viola as leis e os princípios de cuja aplicação lhe cabe
o encargo. Aos olhos de Deus, uma única autoridade legítima existe: a que se
apóia no exemplo que dá do bem. É o que, igualmente, ressalta das palavras de
Jesus."
Há mais: quando nos referimos a energia,
não sugerimos a atitude grosseira, violenta, desmedida. Não. Nada disso. Queremos
reportar-nos à necessidade da ação calma, serena, branda, a par de argumentos
firmes, que demonstrem, de maneira irrefutável, os inconvenientes do mal, suas
consequências imediatas ou remotas contra o autor da ação censurada. Não há necessidade de gritos, de frases contundentes, de gestos
agressivos, de censura ostensiva diante de outras pessoas, mas de persuasão.
Energia não significa brutalidade, mas serena e firme força moral, notadamente
nos casos de reincidência. O único sentimento capaz de vencer o mal é o
sentimento do amor, não do amor piegas, mas do amor fraterno de quem ajuda, até de quem pretenda salvar. Há ainda muita pieguice
em alguns setores do Espiritismo, porque se entende mal o que seja amor, o que
seja humildade, o que seja respeito à Doutrina.
Na repressão a um ato mau, é bom repetir,
não se estará apenas buscando recuperar o faltoso, mas também impedir que a sua
ação seja danosa a outrem. Portanto, não se pense que, por não sermos
perfeitos, devamos omitir-nos diante de erros e faltas passíveis de advertência
e retificação, pois, segundo São Luiz, na obra citada, p. 187, cada um de nós
"deve trabalhar pelo progresso de todos e, sobretudo, daqueles cuja tutela
nos foi confiada.” Mas, por isso mesmo, devemos fazê-lo com moderação, para um
fim útil, e não, como as mais das vezes, pelo prazer de denegrir. Neste último
caso, a repreensão é uma maldade; no primeiro, é um dever que a caridade manda
seja cumprido com todo o cuidado possível. Ao demais, a censura que alguém faça
a outrem deve ao mesmo tempo dirigi-la a si próprio, procurando saber se não a
terá merecido" .
A indulgência sistemática, indiscriminada,
pode estimular a maldade, gerando abusos e encorajando a dissimulação. Nenhum
de nós deve alimentar a preocupação de parecer bom, fazendo-se notar por
manifestações aparentes de tolerância e paciência. Nosso dever perante a
Doutrina é procurar ser bom, conscientemente tolerante e paciente em todos os momentos, o que não é nada fácil, mas tem de ser conseguido à custa de
quaisquer sacrifícios de nossa parte, através de, um esforço auto-educativo.
O falso
bom é nocivo a si próprio e ao meio em que vive. Jesus censurou a
hipocrisia e ensinou que devemos lutar contra o mal, sem praticá-lo, porque o
bem é o instrumento de trabalho social do espírita-cristão, de todo aquele que
pretende ser reconhecido como cristão. O farisaísmo, entretanto, não morreu.
Continua vivo. É perigoso, porque enganador. Insinuante, malicioso,
escorregadio, pode ele destruir lares, organizações humanas de qualquer
natureza, porque possui artimanhas que o homem verdadeiramente honesto não pode
imaginar.
Não há livro mais recomendável, num mundo
atribulado como o de hoje, do que o Evangelho, por ser o melhor tratado de
relações humanas de todos os tempos. Constitui roteiro infalível para quem
deseja encontrar a paz no caminho e a luz no coração. Jesus frisou o respeito
que devemos nutrir pelos direitos alheios, assim como desejamos que os nossos
sejam também respeitados. "Estende-se
mesmo aos deveres contraídos para com a família, a sociedade, a autoridade, tanto quanto para com os indivíduos em
geral" (ob. cit., p. 192).
Portanto, não devemos apenas ler o
Evangelho, mas estudá-lo, meditar sobre os ensinamentos de Jesus; que são
insuperáveis e eternos. Se o mundo se dispusesse a segui-los, a Terra, dentro
de algum tempo, transformar-se-ia num paraíso, porque os homens compreenderiam
a grandeza e a importância da recomendação de Jesus:, "Fazei aos homens tudo o que queirais que
eles vos façam, pois é nisto que consistem a lei e os profetas"
(Mateus - VII, v. 12), e "tratai os
homens como quereríeis que eles vos tratassem" (Lucas - VI, v. 31).
Nada mais pernicioso ao Espiritismo do que
a passividade. O verdadeiro espírita não deve nem pode ser passivo. A Doutrina
exige ação, clara e definida. Aquele que se mantém neutro, quando uma definição
de sua parte se torna imprescindível, não é prudente, mas omisso. A franqueza
rude, nem sempre é bem recebida entre os homens, que a tomam, geralmente, por
hostilidade, má-vontade ou impertinência. Todavia, ponderada, dita com suavidade e manifesto desejo de colaboração, deve sempre ser bem-vinda, porque
é sincera e permite a revelação de perigos ou inconveniências que não podemos
ver, mas que outros, de fora, podem perceber e compreender devidamente.
Em qualquer setor da vida humana, a
lealdade e a sinceridade devem imperar, em benefício da ordem e da disciplina,
do respeito mútuo e da consagração da verdade. A passividade será sempre sério
entrave ao progresso, quer dos indivíduos, da sociedade e do mundo. É, pois,
importante a educação moral no inter relacionamento humano. O homem educado
sabe escolher os caminhos que deve seguir na vida de relação, sem melindrar ou
ofender seus semelhantes, ainda quando se torne necessário divergir e dar vigor
ao seu procedimento, porque a energia não prescinde do tato nem das boas
maneiras. É justo e compreensível que haja discordância de opiniões sobre um
mesmo assunto, que surjam soluções diferentes para um mesmo problema. Tudo,
porém, pode ser alcançado sem choques ou atritos graves, através da compreensão
e da lealdade. Aquele que erra e, movido pelo orgulho, não deseja dar-se por
vencido, ainda que tenha intimamente a presunção de não haver sido feliz, e
insincero, consigo e com os companheiros. O que descobre o erro e não adota uma posição fraterna para corrigi-lo, em face do
irmão que desacertou, também é infrator da lei da fraternidade.
Assim, todos os atos e sentimentos humanos
encontram orientação e solução dentro do Evangelho. Se não acertamos é porque
não queremos mudar de rumo, e, como não mudamos de rumo, continuamos incompreendidos
e sem compreender que as leis da vida são morais e não comportam definições
outras que não as que se acham nos ensinamentos do Nazareno.
Nem foi por outro motivo que Pedro Richard,
um dos homens mais fiéis à Doutrina que Espíritos superiores, por vontade de
Jesus, fizeram chegar a Allan Kardec, costumava dizer que o Evangelho é o Livro
que melhor convém ao homem desejoso de ser feliz e de fazer felizes seus
semelhantes.
Espiritismo
e Passividade
Túlio Tupinambá \ (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Junho 1976
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