Após
a entrada em Jerusalém, dita triunfal, o filho unigênito, segundo a narrativa de Mateus, XXI, vv. 18-22, Marcos, XI, vv. 12-14,
e Lucas, XIII, vv. 6-9, aproveita um momento, em face de uma figueira, à qual
se dirigira por ter fome, e do fato de não haver na árvore o fruto, retira uma
ilação moral edificante, à frente dos discípulos. Mateus fala em figueira que secou no mesmo instante; Marcos, em
figueira que secara até à raiz, o que foi visto pelos discípulos, quando, na
manhã seguinte às palavras do Rabi, passaram pelo local. Lucas, por sua vez,
prefere falar em figueira estéril, e coloca o evento como uma parábola que
Jesus teria contado, tendo como personagens o Senhor da Vinha e o Vinhateiro,
sendo que este, ao ouvir do Senhor da Vinha que a árvore deveria ser cortada,
porque há três anos não dava frutos, e estaria cansando a terra, replicara:
-
"Senhor, deixa-a ficar por este ano,
e, enquanto o tempo corre, cavarei em sua volta e a adubarei, para ver se,
assim, dará fruto; e, se não acontecer isso, então a cortas."
A
Bíblia de Jerusalém diz-nos que "o
episódio da figueira que secou é um ato de severidade; Lucas preferiu esta
parábola sobre a paciência." Aduz, ainda mais, que os três anos,
referidos na resposta dada ao Senhor da Vinha, bem poderiam significar a
duração do ministério público de Jesus, num raciocínio altamente filosófico,
conforme as bases do Evangelho Quarto. Este ponto, para o entendimento do
Evangelho, vem a ser de somenos. Mas a diferença entre Mateus, Marcos e Lucas é bastante interessante, mesmo porque a Boa
Nova não se esgota numa apreciação superficial. Talvez seja Mateus o mais apto a apresentar
observações percucientes em torno dos fenômenos que ocorreram quando da
passagem do Senhor por sobre a Terra. Marcos,
por outro lado, apresenta características de historicidade, uma vez que se
preocupa, por vezes, em explicar à posteridade o posicionamento temporal dos
fatos: isso é puramente História. Já Lucas,
o bom Lucas, o médico grego que, junto a Paulo de Tarso, tinha livre trânsito
por todo o Império Romano, observa, em sua narrativa, o caráter de
transcendentalismo do artista, optando por uma parábola. Não obstante, o ensino
vem a ser o mesmo.
A
figueira secando no mesmo momento diz mais da maturidade de Mateus, do senso agudo de observação
próprio a alguns homens vividos, que têm olhos de ver. O episódio como o narra Marcos comporta dupla interpretação:
a)
a figueira secou no mesmo instante, conforme consta de Mateus. Marcos, porém, que nos deu um Evangelho segundo a narrativa
de Simão Pedro, ou por omissão particularista do pescador de almas ou porque não
tenha ele mesmo (Marcos) presenciado
ao episódio, não registrou o evento no momento mesmo em que se desdobrava;
b)
a figueira secou nas horas que se seguiram, de forma que só foi o fenômeno
notado na manhã seguinte, quando os discípulos retornaram ao local, com o que
deveremos interpretar a atitude de Mateus
não como precisão, mas como hipérbole.
Apenas
como curiosidade em torno dos ensinamentos da Boa Nova do Reino, que permanecem
inalterados, convém mencionar que os estudiosos cristãos atribuem a Mateus todos os pontos "a
mais" que aqui recordamos. Fica registrado o fato.
***
O
que se segue, tanto nas dissertações de Mateus,
XXI, vv. 23-32, Marcos, XI, vv.
27-33, quanto nos escritos do médico que Paulo
fora buscar em Filipos, no ano de 56, é a resposta do Senhor aos príncipes dos
sacerdotes, aos escribas e aos anciãos do povo. Todos eles, fazendo pouco caso das coisas do céu,
procurando tolamente julgá-las segundo os padrões que a efígie de César
personificava como da Terra, na lição da moeda, teimavam em tentar aprisionar o
Mestre em algum contra senso, como se fosse possível pilhá-lo em incoerências
ou contradições. (1)
(1) Mateus fala em "tendo vindo ao templo e estando a ensinar"
(...), ao passo que Marcos diz:
"Voltaram novamente a Jerusalém."
Lucas acompanha a descrição de Mateus, proclamando:
"Sucedeu que certo dia estando Jesus no
templo a ensinar e a anunciar o evangelho ao povo" (...) Só Marcos, portanto, nos fala numa volta a Jerusalém.
A
voz do obscurantismo pergunta, insidiosa: - "Com que autoridade fazes
estas coisas e quem te deu este poder?"
Esperavam
os príncipes e os curiosos de todas as procedências que Jesus, talvez,
declarasse publicamente, sem aproveitar palavra alguma, de algum interlocutor
(como o faria perante Pilatos, aprontando-se para o Gólgota: "Tu o dizes. Eu o sou."), que tudo
aquilo ele o fazia com a autoridade que Deus lhe dava. Esperavam mais: talvez,
que se declarasse rei, colocando-se frontalmente contrário aos poderes humanos
e farisaicos, os quais, aliás, já tanto combatera, nos exemplos
da boa luta. Não é o que Ele faz, porque tudo dever-se-ia cumprir segundo as
Escrituras, até a sede que manifestaria, já erguido na cruz.
Percebendo
lhes a intenção viperina, assim se pronunciou:
-
"Também eu vos farei uma pergunta e,
se me responderdes, dir-vos-ei com que autoridade faço estas coisas. Donde era
o batismo de João? do céu ou dos homens?"
Embora
o Evangelho diga que "eles, porém, discorriam assim entre si ( ...
)", o teor da contrapergunta do Senhor deve ter caído sobre o ambiente
como água na fervura. Raciocinavam os interesseiros:
-
"Se respondermos que era do céu, ele nos dirá: Por que então não lhe
destes crédito? Se respondermos que era dos homens, temos que temer o povo,
pois que João era tido por todos como profeta."
Assim,
vendo a descoberto ante o Messias a podridão que constantemente acalentavam, só
puderam dizer, ainda se crendo muito hábeis:
-
"Não sabemos."
O
Cristo, então, afirma que tampouco lhes diria com que autoridade fazia aquelas
coisas. Mas isso Ele o disse não porque, num paralelismo estranho, quisesse
significar que, assim como eles não sabiam de onde era o batismo de João,
tampouco Ele saberia donde lhe chegava a autoridade que detinha. Mas o disse
significando que aqueles homens, autoridades na Terra, não poderiam entender os
altíssimos mistérios de Deus, uma vez que o batismo do precursor, que fora
Elias (nem isso haviam eles visto...
), passara à vista de todos, e ninguém o havia compreendido. Se não compreendiam
o batismo da água, como pretender penetrar a autoridade daquele que batizava em
fogo, no Espírito Santo? A contra pergunta de Jesus, irrespondida, era, em todo
o seu fragor, a medida da ignorância dos homens.
Aqueles
corações não tinham ainda sido penetrados pelo Mestre. Quando, anteriormente,
entrara em Jerusalém, fora saudado com gritos de júbilo. Lucas registra que
alguns fariseus disseram ao Cristo:
-
"Mestre, faze que teus discípulos se
calem" ... ao que Ele respondeu:
-
"Eu vos declaro que; se estes se
calassem, clamariam as próprias pedras."
Assim
devia ser. Não era o homem manietado pelas imposições grotescas de uma
sociedade doente que dava vazão a motivações de histeria... Não! Naquele
momento, alguns aclamavam o Rei, o Senhor
que Jeová enviara para salvar Israel; outros disfarçavam-se na observação
mórbida, à cata de vinganças; e outros, finalmente, os discípulos, aclamavam o
Mestre, num misto de perspectiva mundana e compreensão das coisas de Deus. A
Natureza, todavia, clamava mais alto! A beleza das cores do céu da Palestina
envolvia as pedras no lusco-fusco do etéreo, e, se todos se calassem,
ouviríamos o clamar das próprias pedras!
Em
que posição nos colocamos? Clamamos como homem velho ou como homem novo? Se
esperarmos Jeová, nossa decepção será das mais cruentas. Se procurarmos
vinganças mesquinhas, chegaremos a perceber que, no que toca a Jesus, até
nossas explosões de demência se acham sob a dependência das Escrituras: assim
como as intenções malignas daqueles homens só tomaram corpo porque as previra a
voz dos Profetas do Antigo Testamento, pelos quais falara o próprio Senhor!
E
se nosso coração não vibrar?.. Terá Jesus entrado na Jerusalém de nosso
Espírito? Que isso se faça, Senhor... é o a que ardentemente almejamos! Rompe
as trancas de nossos portões com a força do teu Ser! Inflama-nos, Senhor, num
Pentecoste moderno, onde tenhamos a ventura de falar a língua dos céus, sob as
línguas de fogo que são as virtudes de Deus!
* * *
Modernamente,
no torvelinho de nosso século, um verdadeiro apóstolo transitou entre nós. Dono
de inimaginável cultura, retirou-se para as agruras do Gabão, num domingo de
Páscoa, e, pelo Golfo da Guiné, onde o Rio Ogowe faz-se ao mar, bem poderá
simbolizar o Senhor entrando, pelas mãos de seus servidores, na selva onde
alucinadamente "lutamos pela vida". Albert Schweitzer muitas vezes chorou; que bom se pudéssemos fazer
o mesmo! Não chorou de raiva, não chorou porque tivesse caprichos contestados
... Chorou porque não via Jesus no coração dos homens! Deixou-nos um Evangelho
de amor, exemplificando, no Século XX, o Evangelho do Cristo, em sua perenidade
imbatível. Quando sua obra, em que se sentia a presença de Jesus, já ia longe, preocupou-se
em reverenciar a vida... Como faria?.. Já estava tudo feito: o trabalho do
Lambaréné era a Reverência pela Vida. Disse ele:
-
"A reverência pela vida não me
permite considerar minha felicidade como propriedade pessoal. Em momentos em
que gostaria de alegrar-me sem preocupações, ela desperta em mim a lembrança de
misérias vistas ou sabidas, e não permitirá que eu expulse esses intrusos.
Assim como a onda não existe por si mesma, mas é sempre parte da superfície
movediça do mar, assim também eu não posso viver minha vida por si mesma, mas
sempre como parte da experiência que se desenrola ao meu redor. A reverência
pela vida é um credor inexorável! Mesmo que nada ache num homem para penhorar,
senão um pouco de tempo ou lazer, lança sobre estes uma ordem de penhora”.
Termino
a existência terrestre a afirmar:
- “Como indivíduo, já deixei de existir, e
já não conheço felicidade pessoal.”
Isso é Cristo no coração de um homem.. E nós?.. Que fazemos?..
E
nós?.. Que fazemos?..
Boanerges (Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Março 1976
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