"Em verdade, em verdade,
digo-te: ninguém pode ver o reino de Deus, se não nascer de novo"
( João,
cap. III, v. 3).
Há certos acontecimentos de nossa
vida diária que nos colocam em situação dupla. Junto com os sentimentos de felicidade
e de segurança, proporcionados pelo conhecimento
da Doutrina, assomam-nos tristeza e até mesmo pena ante a recusa de certas
pessoas em reconhecerem o acerto e a lógica dos preceitos espíritas.
Em nosso ambiente de trabalho convivemos
com um grupo formado por mongolóides, imbecis, etc. Para a maioria das pessoas
é apenas um grupo diferente, horrível. Mas, toda vez que deparamos com ele
somos tomada por uma angústia indescritível, por vislumbrarmos ali espíritos como
nós, fagulhas divinas, que por muito falirem
acharam-se, um dia, satisfeitos em poder reencarnarem numa situação como esta.
Uma tarde, indagaram-nos sobre a razão
das crianças ditas mongolóides. Apresentamos então a justificativa da ciência: trissomia
do cromossomo 21, motivada por diferentes
razões. O interlocutor mostrou-se insatisfeito, pois queria saber o motivo primeiro
pelo qual ocorria tal anomalia cromossômica. Respondemos com uma indagação: “Você
aceitaria se nós disséssemos que isto acontece em face de reajustes expiatórios
de erros passados?” Veio então a resposta entristecedora: “Não me venha com
beatices de Espiritismo, que assim não dá para conversar...”
Agora somos nós que dizemos: assim não
dá para explicar ...
O espírito humano, rodeado de materialismos
enganadores, às vezes é incongruente consigo mesmo. Ele morre de sede. Apresentamos-lhe
a água saciadora. Ele a recusa. Não podemos entender a dificuldade e a ojeriza
de alguns em aceitar os preceitos doutrinários a respeito da reencarnação. Mais
ainda porque isto ocorre em uma época em que, aos poucos, passam os fenômenos
da reencarnação a ser investigados, afirmados e aceitos pela mãe de todos os
materialismos - a Ciência.
Somente a reencarnação nos explica tantos
fatos dolorosos: as variadas gamas de debilidades mentais, os desajustes familiares,
a situação conturbada do mundo, etc. E a própria simplicidade do ensinamento
crístico só poderá ser entendida, em alguns casos, à luz dos conhecimentos rencarnatórios.
Não podemos admitir um Deus justo, um
Deus bondoso se não aceitarmos a reencarnação.
Como entender que por um erro, às vezes
fruto da ignorância espiritual ou intelectual, sejamos condenados ao fogo eterno?
Onde a justiça, se a uns é dado errar e a outros acertar, partindo todos do mesmo
ponto? E, o que é pior, errar sem horizonte de pagamento. Então, mais caritativa
seria a justiça humana que, com todas as suas falhas, permite ao condenado o resgate
de suas faltas.
Se a alma sobrevive ao corpo, como é
preceito básico das religiões, qual o seu destino
após a desencarnação? Será o céu ou o inferno, com alguma opção pelo purgatório?
Há justiça nisso?
E o que dizer a respeito das diferentes
aptidões de cada indivíduo, resultando em
desigualdades sociais, culturais e até econômicas?
Até onde a educação pode influir sobre
o indivíduo? Os estudiosos ainda não puderam
estabelecer uma linha divisória entre o que é herança genética (e aqui completamos:
herança de nós mesmos, de anteriores encarnações) e o que é influência
ambiental. E assim permanecem inexplicados os exemplos de famílias onde, dos mesmos
pais, possuidores dos mesmos genótipos, nascem sábios e ignorantes, santos e
demônios. Será que a interação herança-ambiente é suficiente para explicar os
intrincados caminhos das desavenças familiares? Será que ela explica as antipatias
e simpatias espontâneas? Cremos
que o ponto mais clamoroso da pseudo falha divina consiste no caso das referidas
crianças débeis, física ou mentalmente. Se acreditarmos que o Espírito foi criado
no instante da concepção, mais flagrante se torna a injustiça. Se pais e filhos
possuem o mesmo princípio, criados que foram em instantes idênticos; se ambos
não possuem ontem negativo, só presente, e se o futuro só lhes reserva três alternativas
(céu, inferno ou purgatório), perguntamos: seria isso prêmio ou castigo? Na
primeira hipótese, seria prêmio a quê?
Se fosse castigo, teríamos que admitir que as crianças estariam pagando pelos erros dos pais.
Se fosse castigo, teríamos que admitir que as crianças estariam pagando pelos erros dos pais.
Será que dá para explicar tudo isto
à luz de alguma coisa diferente de reencarnação?
Esta representa para o espírito humano
bendita oportunidade para o resgate de suas faltas pretéritas. Excetuando-se o caso
da herança genética, em que herdamos de nossos pais genes que determinam nossas
características físicas, somos herdeiros de nós mesmos, do ponto de vista espiritual.
E se analisarmos bem, veremos que, mesmo no plano físico, somos herdeiros do
que fomos no passado. Isto porque sabemos que o nosso desenvolvimento é regulado
pela ação do perispírito e que este guarda os desequilíbrios e acertos de encarnações
passadas. Portanto, espíritos muito transgressores, perispíritos desequilibrados,
organizações físicas deficitárias.
O que faz com que muitos de nós rejeitem
os princípios reencarnacionistas é o medo
de encarar a responsabilidade advinda de tal fato. Aceitando-os, não podemos viver
por viver, gozar por gozar. Ao contrário, a cada minuto somos lembrados de que
estamos jogando com o nosso futuro e que de nós próprios depende a felicidade na
Terra. É mais cômodo, para - muitos, continuarem na ilusão em que estão, da “liberdade
sem responsabilidade”.
O fator biológico, para aqueles espíritos
que reencarnaram em corpos de mongolóides ou de débeis mentais, funcionou apenas
como uma válvula de escape para o
cumprimento da lei de causa e efeito, segundo a qual nada do que fizermos de mal
contra o nosso semelhante ficará impune. Como todas as ciências humanas, a Biologia
é campo de ação da justiça e sabedoria divinas e cremos que, principalmente
nela, a manifestação divina é grandiosa.
Não podemos jamais admitir e mesmo
entender uma Biologia sem Deus, uma Biologia sem ética.
Todos aqueles que sofrem (e quem não
sofre?) encontrariam grande lenitivo para as
suas dores se cressem na reencarnação.
Mas não basta aceitar o que a
Ciência, cem anos após Kardec, vem confirmar.
É preciso que a partir desta
aceitação façamos a extrapolação para o plano moral da
questão. Nele reside o verdadeiro ponto de consolação e de autocontrole.
Na aceitação das consequências
éticas das vidas sucessivas reside, em grande parte,
o primeiro passo para a solução de nossos problemas. A partir dela, encetaremos
a luta contra o nosso orgulho e vaidade milenares, exercitaremos a prática mais
ampla da lei de amor, encararemos o presente com maior noção de responsabilidade
e garantiremos um futuro com menos sofrimentos.
Assim não dá para explicar...
Maria Ocampo
Reformador (FEB) Novembro 1972
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