Estudiosos
há do Espiritismo que relutam em aceitar, ou não aceitam mesmo, a revelação do
corpo fluídico de Jesus, sob a alegação de não haver ela merecido a aprovação
de Kardec e, por isso, desprezam, sem maiores considerações, toda a obra
magistral publicada por Roustaing, contendo a explicação dos Evangelhos,
capítulo por capítulo, versículo por versículo.
Embora transmitido do Alto, mercê da
extraordinária mediunidade da Senhora Collignon, compreenderíamos fossem os
ensinamentos rejeitados, mas por quem, após leitura atenta, e sem ideia
preconcebida, de “Espiritismo Cristão ou Revelação da Revelação”,
houvesse meditado e concluído, por si mesmo, que eram inadmissíveis as teses ali
expostas.
Pretender-se, porém, que os
conceitos divulgados por J. B. Roustaing devem ser condenados
porque Kardec não os sancionou é algo tão diferente que permite supor não haja
sido a questão convenientemente estudada pelos que assim argumentam. De início,
não esqueçamos que se o Codificador não aprovou a obra, muito menos a reprovou
e já agora, pouco mais de um século decorrido, seria tempo de se por fim a mal entendidos
e a uma diferença mantida, sobretudo, por quem parece se mostrar mais “kardecista”
do que Kardec!
São conhecidas as circunstâncias
excepcionais, dignas de reflexão, em que Jean-Baptiste
Roustaing, homem de grande projeção - bastonário que era da Corte Imperial de
Bordeaux ao tempo de Napoleão III - veio a conhecer a Senhora Collignon, em
dezembro de 1861, e receber, oito dias depois, a mensagem por ela psicografada,
e assinada por “Mateus, Marcos, Lucas e João, assistidos pelos Apóstolos”,
incitando-os a empreender a explicação dos Evangelhos “em espírito e verdade”,
explicação que, dizia-o a mensagem, “preparará a unificação das crenças entre
os homens”.
E por que essas crenças, pelo menos
no meio espírita, não se unificaram até hoje, como seria lícito esperar? Talvez
um dos motivos provenha do fato de não haverem muitos dos
que combatem Roustaing lido a obra, inteira, atenta e imparcialmente,
limitando-se a
folheá-Ia sem passarem, quiçá, dos capítulos iniciais do primeiro tomo!
Kardec, todavia, sempre advertiu que
nada devemos aceitar ou rejeitar senão depois de bem conhecermos e de bem
havermos estudado aquilo que estivermos aceitando ou rejeitando.
Outro motivo, em muitos casos, terá
sido o desconhecimento do verdadeiro juízo do
Codificador a respeito dessa extraordinária obra mediúnica. E qual foi esse
juízo? Publicada
em 1866, Roustaing dela ofereceu um exemplar a Allan Kardec que, em junho de
1867, na “Revue Spirite”, disse entre outras coisas:
"Esta obra compreende a explicação e a interpretação dos Evangelhos,
artigo por artigo, com o
auxilio de comunicações ditadas pelos Espíritos. É um trabalho considerável e
que tem para os espíritas o mérito de não estar em contradição, por qualquer de
suas partes, com a doutrina ensinada no Livro dos Espíritos e no dos Médiuns.” (Os grifos são
nossos).
Portanto, é Kardec quem o afirma com
a sua autoridade: a obra é meritória e em nada
contradiz a doutrina por ele codificada! Pouco adiante, aludindo ao fato de
haver a obra
tratado de questões que ele não havia ainda julgado oportuno abordar, diz
Kardec:
"O autor desta nova obra julgou dever seguir outra orientação: em lugar
de proceder
gradativamente, quis de um salto atingir o fim. Assim é que tratou de certas
questões que ainda não julgáramos oportuno abordar e a respeito das quais,
portanto, lhe deixamos a responsabilidade, assim como aos Espíritos que as
comentaram. Consequente com o nosso
princípio, que consiste em regular a nossa marcha pelo desenvolvimento da
opinião, não daremos, até nova ordem, a essas teorias, nem aprovação, nem
desaprovação, confiando ao tempo o encargo de as sancionar ou contraditar.
Convém, pois, considerar tais explicações
como opiniões pessoais dos Espíritos que as formularam, opiniões que podem ser
justas ou falsas, que, em todo caso, precisam da sanção, da apreciação
universal e, até confirmação mais ampla, não devem ser tidas como parte
integrante da doutrina espírita.” (Os grifos são
nossos).
Eis aí o juízo do Codificador do
Espiritismo sobre a obra publicada por Roustaing, juizo
que, infelizmente, tem sido muito esquecido! Ainda uma vez, Allan Kardec,
chamado por Camille Flammarion “o bom senso encarnado”, dá prova de sua
prudência. A Doutrina estava incipiente e tenazmente combatida, especialmente
na França, onde o Clero sempre exerceu considerável influência. Necessário era,
portanto, agir com cautela, nada afirmando, nada avançando que não pudesse
resistir aos ataques bem urdidos que logo surgiriam. Ele próprio o disse, ao
explicar porque, em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, circunscreveu-se “às
máximas morais que, com raras exceções, são geralmente claras” e não poderiam,
por isso, ser interpretadas de maneiras diversas:
"Essa a razão que nos levou a começar por aí, a fim de sermos aceito sem
contestação, aguardando, relativamente ao "mais, que a opinião geral se
encontrasse familiarizada com a ideia espírita." (O grifo é nosso).
Eis por que, sem dúvida, Allan
Kardec, precisando agir cuidadosa e gradativamente, pensava
não haver ainda chegado o momento de abordar certas questões divulgadas por Roustaing,
o qual, segundo ele, “quis de um salto
atingir o fim”. Pela forma por que se expressou,
Kardec deixa supor que estava reservando “para
o fim” o estudo de certos princípios
tratados em “Espiritismo Cristão ou
Revelação da Revelação”, entre eles o do corpo
fluídico de Jesus, e, em nota ao item 65 do Capítulo XV de “A Gênese”, último livro
que publicou, reforça essa suposição.
Ora, deve ter sido, precisamente, esse
“salto” que levou Bezerra de Menezes, então Presidente
da Federação Espírita Brasileira, a escrever, após haver durante 14 anos
estudado a obra publicada por Roustaing:
"Roustaing confirma o que ensina AIlan Kardec, porém adianta mais que este,
pela razão que já foi exposta acima. É, pois, um livro precioso e sagrado o de
Roustaing", e a fazer publicar em “Reformador”,
a partir de 15 de janeiro de 1898, a sua primeira tradução
para o nosso idioma, de autoria do Marechal Francisco Raimundo Ewerton Quadros,
que foi também o primeiro Presidente da Federação.
Em verdade, qual a responsabilidade
de Roustaing em querer de um salto atingir o fim?
Nenhuma, pois agiu sempre e em tudo de acordo com as instruções dos Espíritos
que ditaram
a obra! Pode-se duvidar, do caráter mediúnico dessa obra? Kardec jamais teve dúvidas
a respeito, pois, nos, trechos retro transcritos, por três vezes ele sanciona esse caráter:
a primeira, quando diz que ela foi escrita “com o auxílio de comunicações
ditadas pelos Espíritos”; a segunda, quando deixa a responsabilidade das
questões abordadas a Roustaing, “assim como aos Espíritos que as comentaram”; a
terceira, e de forma irretorquível,
quando considera as explicações “como opiniões pessoais dos Espíritos que
as formularam”.
E pode-se, de outro modo, duvidar da
autenticidade desses Espíritos? Tampouco, tal a
sublimidade de sua linguagem, a manifestação inequívoca de seu total
conhecimento dos textos evangélicos, dos acontecimentos, dos lugares, dos
personagens, de tudo, enfim, relacionado com a passagem do Mestre pelo nosso
planeta e, sobretudo, a excelsitude dos ensinamentos ministrados e o
incomensurável conteúdo moral das revelações.
De duas, uma: ou a obra é mediúnica
ou não o é! Acreditamos que a segunda hipótese é por todos repelida, pois
ninguém, em sã consciência, poderá admitir que um homem da estatura moral de
Jean-Baptiste Roustaing se houvesse prestado a farsa tão grosseira ou que a
Senhora Collignon fosse capaz, anos a fio, de iludir a boa fé de um dos mais
ilustres advogados da Corte Imperial de Bordeaux, escrevendo diante dele
vastíssimo trabalho de sabedoria imensa, muitas vezes superior aos seus
conhecimentos e de conceitos morais tão elevados que conflitam com qualquer ideia
de fraude! E, certamente, por isso mesmo, Kardec nem de leve admitiu a
hipótese, logo sancionando o caráter mediúnico da obra.
Assim sendo, poder-se-á admitir que
espíritos galhofeiros, a ponto de se fazerem passar
pelos quatro Evangelistas, houvessem tido elevação bastante para ditar páginas
e páginas
das mais belas, das mais puras, de maior conteúdo moral que se possam ler? Não!
Evidentemente não!
Ora, diziam, por vezes, os
Evangelistas, que agiam em nome e de acordo com as ordens de Jesus e, portanto,
a ninguém melhor do que a eles poderia, realmente, ser atribuída, como a
atribuiu Kardec, a responsabilidade, não só das revelações, como da
oportunidade de sua divulgação.
Kardec, o grande missionário, o
sublime Codificador da Doutrina Espírita, ensinou-nos
muitas vezes que os Espíritos se identificam pela linguagem de que fazem uso. No
Capítulo XXIV de “O Livro dos Médiuns” estão magnificamente resumidos em 26
princípios os meios de se conhecer a qualidade dos Espíritos; basta relê-los
para que se não possa
duvidar da autenticidade das comunicações recebidas pela Senhora Collignon e, após
a necessária coordenação, publicadas por Roustaing.
Seja isso motivo de reflexão e
reflitamos também sobre o seguinte fato, que parece, outrossim, revelar
claramente os desígnios do Alto.
Em 1861, quando ao final do ano, em
dezembro, Jean-Baptiste Roustaing foi escolhido, em condições singulares, para
desempenhar tão bela quão importante incumbência, Allan Kardec, que já havia
publicado em 1857 “O Livro dos Espíritos” e em 1859 “O Que é o Espiritismo”, dava
a público, pouco antes, “O Livro dos Médiuns”, que Roustaing
tivera tempo de ler. Ora, a obra impropriamente chamada “Os Quatro Evangelhos
de Roustaing” não é de Roustaing: é mediúnica! (1)
(1) - Dizemos "impropriamente" porque do
insigne advogado da Corte Imperial de Bordeaux a obra não contém, além do
Prefácio, senão perguntas formuladas, de quando em vez, aos Espíritos, com o
propósito evidente de ver reforçado este ou aquele conceito ou de tornar, se
possível, mais claros certos ensinamentos por eles ministrados, sendo,
portanto, também, uma impropriedade falar-se em "roustainistas", pois
Roustaing, de si mesmo, nada ensinou, nem foi autor de qualquer doutrina.
Atentemos para as circunstâncias:
tão logo o Codificador, em livro magistral, cumpre a tarefa de revelar ao mundo
os segredos da mediunidade, o Alto atribui igualmente a Roustaing o encargo de
utilizar a mediunidade da Senhora Collignon para coordenar e divulgar as
explicações dos textos evangélicos, ditadas pelos próprios autores.
Quanta harmonia nas missões
confiadas a um e outro! Enquanto o primeiro, em Paris, a Cidade-Luz, entregava-se,
com extremada prudência e admirável lucidez, ao trabalho
sublime de codificar e difundir a Doutrina Espírita, o segundo, em Bordeaux, nessa
mesma França de tantas tradições espirituais, entregava-se a outro trabalho
sublime também: o de propagar a verdadeira interpretação dos Evangelhos de
Jesus, nos quais, em última análise, aquela Doutrina se fundamenta!
Oxalá possa a reflexão sobre fatos
tais contribuir, senão para “unificar” as crenças entre
os homens, pelo menos para dirimir, entre os espíritas, controvérsias e
incompreensões oriundas, queremos crer, de ideias preconcebidas ou de estudo
incompleto dos diferentes aspectos da questão.
Kardec e
Roustaing
Ivo de Magalhães
Reformador (FEB) Julho 1971
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