Dizem que Deus escreve certo por
linhas tortas.
Não podemos concordar com semelhante
pronunciamento; e assim agimos porque as atitudes de Deus são, em primeiro
lugar, perfeitas; se são perfeitas, são também absolutas; e, em segundo lugar,
não nos cabe qualquer tentativa de julgamento desses procederes.
Ora, o homem sempre sentiu o peso de
suas faltas sobre o seu próprio coração, o jugo
pesado de seus deslizes sobre si próprio. E esses erros, esses deslizes, foram
produtos exclusivos
de sua desídia, de sua revolta, de sua inconsequência. Se ele é desidioso,
revoltado e inconsequente, convenhamos que quem é torto é precisamente ele. Por
isso nossa discordância aqui apresentada. Deus escreve certo, por linhas
certas.
Ora, tudo isso veio em razão de
algumas ilações em altas vozes que tivemos a oportunidade de ouvir e que, por
certo, não passam de frutos de algum problema um pouco mais aflitivo, daqueles
que fazem com que o indivíduo ache que tudo na Terra está errado e que “se
houvesse acontecido assim, o resultado teria sido aquele outro”. Tenhamos
cuidado antes da emissão de nossos conceitos, porque a sabedoria popular também
afirma que a pressa é inimiga da perfeição. Aqui, sim, nada mais correto e
lógico.
O que ouvimos foi, simples e
puramente, a afirmação categórica de que Allan Kardec deveria ter retornado à
Terra bem antes de quando o fez, visando a evitar uma série de problemas
que lhe entravaram a livre caminhada. Pensamento dez vezes errado. Qual
espírita poderá contestar as pequenas provações a que somos diariamente
submetidos, com vistas ao fortalecimento do autocontrole e da paciência? Logo,
Allan Kardec - qualquer que fosse a época da sua feliz presença entre nós -
encontraria óbices variados, comuns a todos os habitantes do planeta.
No entanto, esse comentário que
ouvimos levou-nos a pesquisar um pouco mais sobre a época do Codificador, as
tensões, os desejos e as carências da sociedade do século XIX.
Fomos buscar livros que bem
retratassem o clima de ideias daqueles tempos e, dentre muitos, escolhemos para
aqui focalizar a obra “A Propósito do Homem e o Desenvolvimento de suas
Faculdades”, ou “Ensaio de Física Social”, elaborado por A. Quetelet, edição de
Bachelier, Paris, 1835. O autor, assinando um prefácio aos 15 de abril do mesmo
ano, ressalta a importância das pesquisas estatísticas para que bem se conheçam
os anseios de uma época, bem como suas dificuldades. Diz ele: “Ouso acreditar
em que encontraremos algum atrativo nessas pesquisas, bem como soluções
naturais de muitos dos problemas e importantes questões que foram ventilados
nesses últimos tempos.”
De fato. Esse conhecimento é
indispensável para o bom entendimento do homem em si mesmo. No século iluminado
pelo Positivismo de Auguste Comte, aonde se ensaiava o férreo raciocínio de um
Littré, as hipóteses absurdas eram rechaçadas. Mas não seria hipótese absurda o
fato de que as ações humanas se acham submetidas a leis que as regulam. É o que
o autor examina a páginas 4 da mencionada obra. Propõe, logo de início, sejam
os diversos aspectos da coletividade examinados em seu conjunto, de modo que se
tenha um acervo de fatos comprobatórios daquilo que se pretende demonstrar, sem
que sobre
o tema pairem dúvidas ridículas, de deficiente desenvolvimento do raciocínio
empregado. (1) Eis o que nos diz
Quetelet:
(1) Método utilizado por Camille
Flammarion: qualidade e quantidade.
“Quais
seriam nossos conhecimentos a propósito da mortalidade da espécie humana, se
apenas houvéssemos observado alguns indivíduos? Ao invés de leis admiráveis, às
quais essa mortalidade estaria submetida, mais não teríamos do que uma série de
fatos incoerentes, que não permitiria qualquer suposição a respeito da marcha ordenada
da natureza.”
“O
que dizemos da mortalidade humana também o dizemos das faculdades físicas do
homem e até mesmo de suas faculdades morais. Se desejamos adquirir o conhecimento das leis gerais às quais essas
últimas estão submetidas, precisaremos reunir grande número de observações.”
Eis aí: leis morais sujeitas ao
estudo da criatura humana; atitudes do indivíduo vinculadas
diretamente a leis universais. Em resumo: a Lei da Evolução.
Mais adiante, a páginas 13, o autor
admite claramente o fato de que o homem se acha submetido a causas, em sua
maior parte regulares e periódicas. Notem-se os programas da evolução do
indivíduo e da sociedade, encarada em sua feição mais aberta e mais grandiosa.
Essas causas regulares e periódicas nada mais são do que as tendências e
características de cada espírito e, no plano social, o conjunto de tendências e
de características dos grupos. Mais largamente seriam, ainda, as necessidades
de toda a humanidade, estudadas as afinidades dos grupos humanos que a compõem.
A preocupação com o índice de
criminalidade é também clara, patente e inegável. E o que
se observa e retira da exposição criteriosamente elaborada pelo autor (mapas,
gráficos, estimativas) é o funcionamento da lei de conservação, em suas
profundas vinculações com a lei de destruição, ambas - como as demais -
estudadas com rara profundidade em “O Livro dos Espíritos”.
Outro problema levantado com muita
precisão é o da previsão de recursos humanos para
o atendimento à demanda dessas mesmas leis em funcionamento, o que, de certo modo,
percebe-se, atemoriza Quetelet. Como prevenir as dificuldades que o bom senso e a
lógica apontavam como assaz próximas? O mundo começava, então, a viver uma
época de renascimento espiritual.
O que vemos atualmente - matanças,
desastres que nos tocam o coração, fome em alto
grau, neuroses diversas, fobias, desregramentos, inversão de valores - não são
mais do que os últimos gemidos do inconformismo, os gritos derradeiros da
rebeldia. Mas o renascimento de que falamos inicia-se precisamente com esses
gritos, com essas fobias e com essa dilacerante inversão de valores. O
renascimento, para que exista e seja operante, implica reforma autêntica, reforma íntima, desejo verdadeiro de viver os
preceitos do Evangelho de Nosso Senhor Jesus-Cristo, em espírito e verdade.
Por isso, não podemos dizer que a
mudança operou-se em momento inoportuno. O
que se observa, no sábio traçado do plano espiritual, é um recrudescimento das
angústias e dos problemas e a subsequente vinda do Consolador prometido por
Jesus: o Espiritismo, codificado pela nobre figura de Allan Kardec, um jato de
luz nos anseios do mundo.
Assim, o livro de A. Quetelet
mostra, com insofismável clareza:
1. que o século XIX foi
importantíssimo ponto no desenvolvimento dos planos da Espiritualidade, sob o
governo de Jesus, para o mundo;
2. que esses planos são, de modo bem
amplo, aquelas causas regulares e periódicas que
influem sobre a espécie humana;
3. que o alto grau de racionalidade
do século foi condição “sine qua non” ao entendimento da Revelação do
Espiritismo pelo homem;
4. que essa Revelação,
aproveitando-se do raciocínio positivista de Auguste Comte, lançou
sobre ele o puro sentimento do Evangelho do Cristo, coibindo-lhe os abusos;
5. que o estudo metódico das leis
que regem a espécie humana é glorioso portão que mostra
a luz de um sol de poucos ainda conhecido: o foco da Paz em Deus;
6. que existe ordem no Universo e
que essa ordem é total;
7. que essa amplitude, refletindo na
Terra, gera o desejo de conhecimento que caracteriza o homem.
E a Revelação Espírita, que a obra
reduzidamente analisada demonstra ser uma verdadeira necessidade, surge mais
uma vez como resposta aos anseios e carências que, analisados pelo homem, em
livros como o focalizado, respondem ao homem a realidade da vida:
a própria vida.
As preocupações do século XIX, que
sempre foram as do mundo (o homem sempre almejou
a paz, mas poucas vezes soube encontrá-la), encontram-se plenamente respondidas
pela Doutrina Espírita, no momento exato, quando se iniciou o renascimento espiritual
da Terra. Esse renascimento prossegue; cooperemos com ele, porque o Senhor da
Vida a ele preside.
Logo, Deus escreve certo por linhas certas;
os tortos somos nós; e Allan Kardec veio
no momento exato, respondendo às diretrizes do Alto para o homem e pelo homem. Além
disso, ele sempre estará conosco. E, além dele, e com ele, existe o Mestre dos
mestres, aquele que nos espera.
Sim... Deus escreve certo por linhas
certas... Os tortos somos nós mesmos.
Deus escreve certo por
linhas certas
Gilberto
Campista Guarino
Reformador (FEB) Setembro 1974
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