sexta-feira, 3 de julho de 2015

Uma Profissão de fé


Uma profissão de fé - parte 1
por Viriato Correia
Reformador (FEB)  Setembro 1970



(Conferencia realizada pelo Dr. Viriato Correia,
na Federação Espírita Brasileira,
e publicada em “Reformador” 
de 15 de Fevereiro de 1925.)

            Não sei se alguém, nesta sala, conhece a fábula do Coelho que vivia na toca. Li-a em pequenino, já não sei onde, há tanto tempo isso foi.

            Era uma vez um Coelho que nasceu numa gruta e na gruta viveu quase que a existência inteira. Como era indolente e orgulhoso, os outros coelhos tomaram-no por uma figura de eleição e fizeram-no rei.

            E como o Coelho era rei, tendo vassalos que o servissem, nunca sentiu necessidade de vir aqui fora lutar pela vida: os coelhos levavam-lhe alimento ao fundo da toca, arranjavam-lhe a cama com as ervas mais tépidas e macias, penteavam-lhe o pelo com os cuidados e os carinhos mais sutis.

            Dentro daquelas paredes escuras o coelho dominava soberanamente. O mundo para ele resumia-se naquele buraco estreito. Os companheiros, os vassalos, convidaram-no a vir fora ver o mundo largo, ver a vida intensa. Não! não queria vir, não queria ver! O mundo era aquilo, aquela gruta negra, aquela toca esconsa. O Coelho cabia largamente nos recessos de sua furna, gozava a seu prazer o prazer da vida, sentia-se grande, sentia-se onipotente na estreiteza de sua caverna e que lhe importava existissem outros mundos lá fora e além? mundos que, certamente, não seria da vastidão de sua lura, mundos que talvez não coubessem a grandeza da sua pessoa e a majestade do seu poder! Não! não queria ver! não queria vir! Satisfazia-lhe a penumbra que lhe envolvia a toca, satisfazia-lhe aquele silêncio de profundidade, aquela indolência de potentado.

            Mas, um dia, os coelhos vassalos não lhe vieram trazer o alimento e renovar-lhe a casa. Esperou muito e nenhum apareceu. Gritou-lhe a fome no estômago - não havia migalhas pelos recantos da caverna.

            Pela primeira vez teve necessidade de mexer-se. E, ao transpor a porta da gruta, bateu-lhe o coração afoitamente e uma golfada de luz ofuscou-lhe de súbito os olhos. E ele parou. Parou tonto, deslumbrado, todo o sangue em fluxos, toda a emotividade em êxtase.

            Era no alto da montanha. Vinha raiando pelo espaço a claridade fulgurante da manhã. O Sol rasgava o céu numa esplêndida explosão de rosa e de ouro. A Natureza inteira despertava, fulgindo e cantando: as copas, as árvores, todo o cerrado da floresta ressoava em músicas e gorjeios; pássaros enchiam festivamente os ares de trinados; e tudo brilhava, resplendia tudo numa apoteose de maravilhamento: a serra em cima, ondulada e verde, o vale embaixo serpeado d’águas, o casario ao longe, os palmeirais distantes, a mata, as estradas, as ribanceiras e, ao fundo, o mar, a vastidão do mar espreguiçando ao sol a pelúcia azul das vagas rumorosas.

            O Coelho tragou um imenso hausto de ar. Aquele sorvo de imensidade levantou-lhe a vida. E ficou extático, obumbrado, maravilhado, olhando tudo, sem saber para onde olhar. Voltava os olhos à direita, voltava os olhos à esquerda, atrás, à frente, e era sempre aquela deliciosa e embriagadora sensação de luz, aquela arrebatadora impressão do grande, do infinito.

            Quanto tempo lá ficou a olhar? Não sei. Mas, quanto mais olhava, mais pequenino se ia sentindo, mais humilde e mais insignificante se ia considerando, ele, ele o Coelho rei, o Coelho orgulhoso, que era grande, incomparavelmente grande na estreiteza escura de sua toca.

            Todas as fábulas, meus senhores, encerram uma lição de moral.

            O Coelho, que era onipotente no fundo de sua gruta, que lá dentro era o maior de todos, que tinha vassalos e mandava e, quando mandava, tinha a seus pés curvada a mais respeitosa obediência, ele o senhor, ele a realeza, não quis mais voltar para o seu buraco.

            Preferiu ali ficar sem mando, sem majestade, sem poder, pequenino, raso, insignificante, lutando pela vida, trabalhando para alimentar-se, fazendo a sua própria cama para dormir, mas preferiu ali ficar diante daquele panorama de luz, daquele radiante cenário de grandezas, sob o influxo daquela claridade que lhe tonificava a vida, daquela vastidão sem fim que lhe exaltava o pensamento. E nunca e nunca mais voltou à escuridão da caverna.

            Eu sou, meus senhores, como o Coelho da toca.

            Vivi por muito tempo, a bem dizer até ontem, vivi na furna do ateísmo, cevando o meu orgulho e a minha maldade, como se cevam num chiqueiro as banhas de um porco.

            E quando entrei para a toca? Desde que comecei a ter entendimento de homem, desde que comecei a enfeitar-me para rapaz.

            Ao despontar-me a primeira sombra de buço, eu era o incréu mais impertinente, mais irritante e mais insuportável que havia na Terra.

            Para o Coelho da fábula, para a vida do Coelho da fábula, na escuridão da gruta, havia uma atenuante justificadora: ele nascera no buraco e ao buraco se amoldara, ao buraco se afeiçoara, da mesma maneira que a lesma se amolda ao búzio, que os batráquios se amoldam ao lodo.

            Para mim, tudo era agravante. Nasci no seio carinhoso de uma mãe cristã, à sombra de uma família cristã fiz-me homem.

            O Coelho não queria sair da toca porque lá nascera. Eu animalizei-me mais do que ele: - nasci na luz, ao clarão radiante da verdade e encafuei-me na toca...

            Diz a fábula que, como o Coelho era orgulhoso e indolente, os outros coelhos fizeram dele o rei. Há, nesse ponto, entre mim e a figura da história, uma pequena diferença. A mim ninguém me aclamou para realeza nenhuma. Eu é que me aclamei, eu é que empunhei um cetro e pus à cabeça uma coroa de orgulho.

            Aos meus olhos, ao meu juízo, ninguém era maior do que eu. Houve um tempo em que me imaginei o maior dos homens. Houve mesmo um tempo em que me julguei a figura central do planeta. Ninguém sabia mais do que eu; ninguém tinha mais direitos. Houve mesmo um tempo em que fui o galo de Rostand: as manhãs irrompiam no céu ao som da minha voz e à voz do meu mundo. O mundo existia para que eu existisse; o sol, as águas, as flores, as estrelas, tudo havia sido criado para mim.

            Foi a quadra mais insuportável da minha vida. Inimigos criava-os com a facilidade com que os cogumelos desabrochavam num pau podre. Tinha a volúpia singularíssima de desagradar; o gosto de irritar. Andava de clava em punho, como um guerreiro bárbaro, destruindo tudo: ideias alheias, crenças alheias, preconceitos e até melindres. Nada me infundia respeito, nada. Vivia a fazer praça do meu iconoclastismo, como um cigano faz praça do valor de seus cavalos.

            Deus constituía para mim uma pilhéria hilariante, uma ridicularia de todos. O meu maior orgulho, o meu maior prazer, e orgulho que eu provocava a todo momento, era dizer-me materialista e propalar o meu materialismo. Quando, diante de mim, alguém falava em Deus, com respeito e fé, eu ou duvidava da sinceridade, ou considerava a criatura imbecil. Não me podia passar pela cabeça que alguém de senso comum, de inteligência vulgar pudesse, a sério, acreditar em Deus. Deus havia sido inventado para embair os medíocres ou os tolos.

            Eu que me julgava um ser de exceção, estava no dever de reduzir Deus a zero.

            Quanto ao Cristo e quanto à Virgem Maria, a minha irreverência apavorava. Houve criaturas que me disseram que as minhas palavras lhes esfriavam os ossos. E eu gozava, gozava a irritação alheia com o prazer infernal de um lobo que estraçalha uma presa. E, quanto mais blasfemava, quanto mais aos outros irritava, maior imaginava que eles me estivessem julgando. Era uma maneira de engrandecer-me aquela, a de destruir aquilo que os outros tinham como sagrado. Se arrasava o que era grande, é porque maior eu era.

            Os livros de doutrinas religiosas que me chegavam às mãos repelia-os, como se repele uma inutilidade. Sentia-me bem no fundo da minha caverna, na minha gruta, na minha toca. Dentro dela, quanto mais encovado, quanto mais profundo, maior me sentia, mais arrogante e mais poderoso. Que me importava que, lá fora, existissem doutrinas consoladoras, princípios balsâmicos, crenças alevantadas e tonificantes, que me importava? se havia criado para mim um mundo meu, uma doutrina minha, dentro dos quais era grande, dentro dos quais imperava soberanamente, sem prestar contas a ninguém?

            E isso foi, meus senhores, por muito e muito tempo, por quase toda a minha quadra de rapaz.

            Um dia, porém, a gentileza piedosa de um amigo pôs-me na mão um livro de Allan Kardec. Li-o de um fôlego, de um trago. Tinha chegado o meu dia, como chegara ao Coelho, de pôr a cabeça fora do buraco. E o meu deslumbramento não foi menor que o do animal da fábula.

            Ao correr os olhos pelo livro espírita eu tinha a sensação maravilhosa de quem sobe uma montanha desvendando uma paisagem nova, fulgurante e surpreendente. Ao terminar a leitura, sentia-me bem no alto, no píncaro, vendo adiante de mim uma claridade desconhecida que nunca adivinhei no fundo da furna, vendo adiante de mim um panorama largo, aberto, indefinido, inteiramente estranho para a minha imaginação, um panorama de beleza tão ofuscadora que fiquei parado, olhos estáticos, o sangue em fogo, a alma em êxtase, ajoelhada, na volúpia da contemplação.

            Uma mudança radical se operava em mim. Quanto mais abria os olhos, quanto mais abria a alma, mais pequenino me ia julgando, mais insignificante me tornava, porém mais consolado e feliz me sentia.

            E não afastava nem queria afastar os olhos do imenso esplendor daquele deslumbramento. Pela primeira vez e só naquele instante fixava o olhar na grandeza eterna do Universo, na obra eterna da Criação.

            Até então só havia olhado a mim, mas olhado por fora, com os olhos do orgulho, da vaidade, do egoísmo e da empáfia. Até então o que tinha visto diante de mim não ia além da minha pequenez, a que o delírio da imaginação vaidosa dava proporção gigantesca. Agora, porém, defrontava a vastidão imensurável, a augusta vastidão das coisas infinitas. E eu, que todos os dias fitava o céu, pela primeira vez fitei-o compreendendo-o. Dantes, ele era para mim um nada, um incidente sem importância, um espaço como outro qualquer e algumas vezes, nas crises mais fortes da minha vaidade, um pálio aberto, como homenagem, sobre a minha cabeça.

            Agora, porém, defrontava a vastidão imensurável, a augusta vastidão das coisas infinitas na sua majestade.

            E tive a felicidade, senhores, a suprema felicidade de poder afundar os olhos da razão nas supremas profundezas do espaço insondável. Lá estavam as estrelas fulgindo, cintilando às centenas, aos milhares, aos bilhões. E pela primeira vez considerei a grandeza, a formidável grandeza daqueles mundos longínquos que, a distância, não eram mais que cabeças de alfinetes. O céu estava, naquela noite, de uma pompa delirante. Todas as constelações, voltadas para a Terra, faiscavam no fundo negro do espaço. Eram milhões, milhões sem conta de vidas luminosas esfarinhadas nas profundezas do infinito.

            E pela primeira vez, pela primeira vez surgiu dentro de mim, feita a mim mesmo, esta interrogação: - Quem criou tantos mundos, quem criou tanta grandeza?

            A noite abria pela imensidade a opulência do seu mistério constelado. A via láctea estendia-se como larga tira de cambraia desenrolada pelo céu. Eu bem sabia que tudo aquilo eram astros, há muito que sabia que eram mundos aos milhões, aos trilhões, mundos sem conta, cada um deles com a sua órbita, o seu ciclo, as suas leis, a sua vida própria, mas só naquele momento me veio à lembrança pensar na grandeza e no poder de quem os criou.

            E que era a via láctea, tão vasta, com a sua multidão de mundos, diante da vastidão do espaço? Um incidente insignificante, um fiapo de luz, um punhadinho de areia, um nada. Outras nebulosas mais extensas, mais espessas, mais numerosas, com multidões maiores de sóis, e que meus olhos não viam, brilhavam pela amplidão do infinito. E que eram elas no espaço?

            Outros incidentes, outros nadas proporcionalmente à vastidão que as encerrava. Quem tinha podido fazer aquilo tão vasto? quem tivera tal onipotência para criações tão onipotentes?

            E eu sabia, há muito tempo que sabia, da movimentação de todos aqueles mundos, do dinamismo eterno da vida celeste. Mas que força seria essa que os movia, que os equilibrara, que os formara, que formara esse conjunto surpreendente de sistemas, essa harmonia admirável de leis?

            O Acaso? O Nada? Eu? Alguém dos meus iguais? Alguém dos meus semelhantes?

            E o primeiro raio de luz fulgiu-me no Espírito para a compreensão de Deus.

            Quando o orgulho se abate, Deus nos entra imediatamente na consciência. O meu orgulho havia derruído fragorosamente, como uma torre velha que tomba pela ruína dos alicerces. Que era da minha suposta grandeza ante tudo aquilo? Se me supunha grande na Terra e a Terra era um nada comparado ao Sol, o Sol um grão de areia no meio da nebulosa a que pertence, essa nebulosa um incidente em relação a milhares de milhões de outras e essas outras verdadeiros nadas diante de outras aglomerações de Sóis e, estas, pequeninas ilhotas na imensidade sideral e cada uma dessas insignificantes unidades constituindo grandezas imensuráveis, separadas uma das outras por distâncias que eu nunca poderia calcular, que diabo! de que tamanho era eu, de que tamanho era a minha grandeza em comparação com aquilo tudo? Uma migalha. Qual migalha! Um grão de areia. Qual grão de areia! Um átomo, ou a milionésima parte de um átomo, se o átomo pudesse ser suscetível de divisão.

            Finalmente compreendi, compreendi felizmente a minha pequenez. Eu não era nada, rigorosamente nada.

            O Coelho da fábula não quis mais voltar ao buraco onde era grande, e rei. Preferiu ficar aqui fora, pequenino, humilde, mas sob o banho lustral do sol que ofuscava, ante a paisagem rutilante que o conservou em transporte.

            Deu-se comigo a reprodução da fábula. Hoje me dói e até vergonha me faz ter vivido tanto tempo nas trevas da toca.

            E quanto mais os dias passam, quanto mais entro na compreensão do poder da Divindade, mais pequeno me julgo, porém mais feliz me sinto.

            Poder-se-á dizer que essa compreensão da Divindade tanto me podia ter sido dada pelo Espiritismo, como por qualquer outra doutrina deísta. É possível.

            Mas é ao Espiritismo que tenho que agradecê-La, porque foi ele quem ma deu.
O Deus do Espiritismo é o mesmo Deus das outras doutrinas, está claro. Mas é o Deus
na sua plenitude, visto através de sua onipotência, de sua pureza, de sua bondade, de sua piedade e de sua misericórdia; o Deus que perdoa e consola, que não tem decisões implacáveis, que não tem infernos para penas eternas; o Deus que castiga, mas não se vinga e que, quando castiga, é aos indivíduos e não às gerações; o Deus que proporciona o adiantamento do mais indigno dos culpados; o Deus que criou encarnações sucessivas para a purificação dos Espíritos; o Deus que dá a todos o mesmo grau de luz, desde que atinjam todos ao mesmo grau de pureza.              

            Esse Deus soube-me e sabe-me melhor à alma, meus senhores, esse Deus entrou-me de um só fluxo no Espírito. Esse Deus eu compreendi, esse Deus eu compreendo.

*

            Hoje considerando as coisas, meditando sobre o tempo que passou, é que vejo o que havia de ridículo e de caricato no materialismo que me encheu tão longo período de vida. Eu não era materialista, não era coisa nenhuma. O que havia em mim era muito de pedanteria e de empáfia.

            Meteu-se me na cabeça que um homem superior não podia nem devia acreditar em poder divino e disso partiu toda a razão de ser da minha atitude. Convenci-me de que era criatura ilustre, julguei-me na obrigação de destruir a Divindade. Iludia aos outros e a mim próprio. Talvez aos outros não conseguisse iludir. A mim, a vaidade conservou-me por muitos anos em crise delirante.

            A verdade é que de materialismo não entendia nada, não tinha sequer o preparo básico, a cultura necessária para firmar convicção.

            Conta-se por aí uma anedota que se pode perfeitamente aplicar ao meu caso.

            Estava um velho vigário na igreja quando, certa vez, se chegou um rapaz de ar atribulado, que queria a toda pressa confessar-se. Tinha um pecado horrível para ser absolvido. O padre levou-o pressurosamente ao confessionário.

            - Fala, filho, fala. Dize o teu pecado, que a misericórdia divina te absolverá.

            O rapaz ficou silencioso, como sob o peso formidável da sua culpa.

            - Mataste? perguntou o sacerdote.

            - Não.

            - Roubaste?

            - Também não.

            - Profanaste o lar alheio?

            - Nunca.

            - Mas que pecado é o teu? interrogou o velho vigário intrigado.

            O moço deu um suspiro, um profundo suspiro:

            - Padre, o meu pecado é um só, um único, mas um pecado enorme, horrível, colossal.

            - Fala, filho, fala.

            O rapaz baixou a cabeça, deu outro suspiro e desembuchou:

            - Padre, o meu pecado é este: sou orgulhoso, orgulhoso como não há ninguém no mundo, orgulhoso como ninguém foi ainda na vida. Vejo tudo e tudo abaixo de mim. Os homens, quaisquer que eles sejam, por mais ilustres e por mais cultos, por maior autoridade que tenham, para mim não valem nada; julgo todos e todos inferiores à minha pessoa. E isso me dói, padre, isso me faz sofrer. É um pecado que me pesa como um fardo. Não é verdade que é um grande pecado?

            O vigário sorveu uma pitada, batendo pausadamente a cabeça:

            - E é! O orgulho é um pecado muito feio.

            Mas vem cá, meu filho, que razões tens para todo esse orgulho? És rico?

            - Fui sempre pobre, muito pobre, respondeu o moço.

            - Mas naturalmente és de alta estirpe, os teus pais são nobres...

            - O meu pai é o açougueiro ali da esquina.

            - É que talvez as mulheres te suspirem; elas certamente te disputam, como se disputa um tesouro.

            - Nunca mulher nenhuma ergueu os olhos para mim.

            - Então a razão é outra: é que tens imensa cultura, um grande nome conquistado nas letras ou na ciência.

            - Desde que saí da escola primária nunca mais abri um livro.

            O padre ergueu-se.

            - Vai, meu filho, vai para casa, sossegado. Não tens nenhum pecado. Não és orgulhoso, nunca foste orgulhoso. O que tu és é bobo.

            A anedota é feita sob medida para o meu caso. Eu não era materialista, nem sabia o que era materialismo. Era apenas um idiota, enfeitado de penas de pavão, que vivia a pavonear originalidade à custa das penas alheias. Narrarei somente dois casos para mostrar o cunho insincero das minhas convicções de incredulidade.

            Era no período mais rude, no mais culminante período da minha crise materialista. Eu repousava uns meses no povoado matuto em que nasci. Uma noite, a dois quilômetros de minha casa, morreu um velho roceiro que o povoado inteiro estimava. Na roça, a morte de um vizinho é sempre um acontecimento. É dos hábitos ir todo o mundo para a casa do finado, fazer o que lá se chama o “quarto de defunto”.

            Fui, como toda gente, e lá fiquei até duas da madrugada. Às duas da madrugada despedi-me para sair. Queria voltar para casa, para ferrar o sono. Quando me despedi, no terreiro, de uns matutos que ali palravam, um deles me perguntou com interesse:

            Aonde vai?

            Para casa, dormir.

            Sozinho, por esse caminho?

            Porque não?! Não sou homem?!

            A Maria, uma mulata que me conhecera em menino, disse com a sua voz arrastada, num tom de pouco caso:

            - Está aí uma coisa que eu duvido. Vossa mercê deixar o defunto estirado no meio da casa e ir embora por esse caminho, sozinho, com um luar branco como esse, hoje, sexta-feira, dia em que as almas andam soltas! Está aí uma coisa que eu duvido e faço pouco. Vossa mercê volta!

            Senti, de súbito, um choque. Arrepiou-se-me a pele, arrepiaram-se os cabelos. Respondi de cara amarrada:

            - Serei alguma criança?!

            Um sertanejo disse, em galhofa, no meio do terreiro:

            - Isso de alma do outro mundo, sinhá Maria, é para nós, matutos, que não lemos nos livros. Seu doutor não acredita. Elas não bolem com ele.

            - Ele volta, repetiu a Maria, calmamente, a fumar o seu cachimbo.

            Parti. Não dei duzentos passos. O luar estava de uma alvura de espuma de sabão. Não há nada mais misterioso que o luar, por noite velha, na roça, caiando aqueles caminhos solitários.

            Não sei que impressão foi aquela que se apoderou de mim, esfriando-me os ossos, tolhendo-me os pés. Não dei duzentos passos, não dei. Um medo...

            É crença no sertão que quem começa um “quarto de defunto” deve terminá-lo; não deve nunca deixar o cadáver no meio da casa e ir para outro lugar. A alma do finado nos perseguirá pelo caminho.

            Mas eu era materialista, senhores; não acreditava nem podia acreditar em almas do outro mundo.

            O que é certo é que não pude dar duzentos passos. A brancura da lua, a solidão da estrada, os galhos e as folhas das árvores espelhando o brilho do luar, o pio das aves noturnas, o vento que ciciava, tudo, tudo me infiltrou uma tal mudança, um tal temor, um frio, uma compressão no peito, uma tonteira na cabeça, que voltei, voltei, senhores, voltei às pressas para a casa do defunto, onde havia gente, muita gente, e gente viva.

            Fui recebido pelos roceiros com uma gargalhada de troça.

            A Maria, com o seu cachimbo na boca, deliciou-se com o meu fiasco, soltando uma baforada de fumo:

            - Eu sabia, eu sabia que ele voltava. Essa gente que estuda é toda assim: da boca p'ra fora - uma valentia; mas na hora, na hora da coragem - cadê?

            Passei a noite inteira envergonhado da minha covardia. Como fora aquilo? Ninguém estava mais escandalizado do que eu próprio. E as minhas convicções materialistas e a sinceridade do meu materialismo?

            Procurei explicar o fato como resultado da educação que recebera em criança. Eram remanescentes de superstições matutas que me tinham ficado na lembrança e que, agora, por uma crise de nervos, despertaram do seu estado latente.

            Pensam os senhores que o fiasco serviu para que eu me corrigisse?

            Ao contrário; desembestei. Foi a quadra mais furiosa de incredulidade que até hoje tive. Li, devorei os mais festejados paladinos da Matéria e repeli com fúria os propagandistas da Espiritualidade.

            O segundo fato não é menos edificante, para aquilatar-se a palhaçada do meu Materialismo.

            Uma vez... Isto foi no porto de Maceió, há muitos anos. Eu seguia para o Maranhão, como deputado ao Congresso Estadual. Era meu companheiro de viagem até o Ceará esse maravilhoso e resplandecente poeta que é o Bastos Tigre.

            Em Maceió, o Bastos Tigre era esperado pelo cunhado, o Júlio Auto, também lindo poeta, com um esplêndido jantar de festa. Convidaram-me para ir à terra. Recusei. Qualquer coisa me dizia aqui dentro que eu não devia descer. Mas tanta foi a insistência que senti grosseira a recusa. Fui. A saída do vapor estava marcada para as seis da tarde, mas o vapor era o Baía, do Lóide e o Lóide, desde os velhos tempos, sempre primou pela impontualidade.

            O jantar começou às cinco horas. Eu estava numa inquietação de nervos impressionante. Não sei o que me dizia que íamos perder o navio. O Bastos Tigre, esse estava de uma fleuma e de uma serenidade felizes, a brincar, a pilheriar, a fazer trocadilhos. Então eu não via que o vapor era do Lóide e no Lóide não se tinha a noção do tempo?! Não vira a saída retardada nos outros portos?! Nem à meia-noite levantaríamos ferro!

            Mas a excitação não me deixava. Cada vez mais os nervos se me tornavam vibrantes. Sentia, a verdade é que eu sentia, uma força interior arrastar-me com presteza para bordo.  Às cinco e meia, a minha excitação havia impressionado a todos na casa. Apressou-se a conclusão do jantar. Tomamos o bonde às pressas. Ao chegarmos ao porto, voltavam de bordo os escaleres e o paquete começava as suas primeiras manobras de saída.

            Procurou-se um escaler ali na praia. Não havia. Afinal apareceu um, mas o catraeiro não tinha remos.

            - Vai-se à vela.

            Mas não havia vento. Assim mesmo entramos no barco.

            O vento que soprava era um nada que não enchia sequer a vela. O catraeiro fazia esforços sobre-humanos para utilizar-se daquele vago sopro de brisa que passava sutilmente.

            A muito custo aproximamo-nos do vapor. Já ele se movia lentamente, em manobras.

            O quadro nunca mais se me apagou da memória. Vejo a amurada de bordo cheia de passageiros que saúdam alegremente a nossa aproximação.

            - Mandem parar! mandem parar! gritávamos do escaler.

            Mas, nesse instante (aí começou a tragédia) o vento soprou rijamente. A vela encheu-se, o barco ganhou impulso e foi colar-se ao alto costado do vapor. Compreendemos todos, num relance, a desgraça aos nossos olhos. Íamos morrer.

            Só havia dois remédios ali: ou afastar o escaler do costado do navio, ou parar o navio. De outra maneira seríamos miseravelmente colhidos, tragados, esmigalhados pelas hélices em rotação.

            No escaler éramos oito. Esforços incríveis fizemos para nos afastar do paquete. Era demais para as nossas forças.

            Lá em cima, na amurada, os passageiros compreenderam, alarmados, a gravidade do perigo. O quadro nunca mais me saiu, em suas mínimas minúcias, da cabeça. Vi muita gente a correr loucamente para a ponte do comando, a suplicar aos gritos que parassem o navio.

            Segundo a segundo, instante a instante, a desgraça se avolumava na sua iminência.

            Senti a trágica aproximação das hélices. Era fatal, irremediável, inevitável a morte...

            Aí todo o meu instinto de conservação pulou dentro de mim, acendeu-se-me uma energia desvairada e, numa fúria, numa descarga, em pé, no meio barco, os braços erguidos, pus-me a clamar, a gritar, a berrar:

            - Para! para! para, pelo amor de Deus! pelo amor de Deus! pelo amor de Deus!

            O vapor não parava. Não parou. O comandante, um senhor Pedroso, negou-se a fazê-lo.

            E o perigo crescia. Estávamos a dois metros das hélices agitadas. Eu via nitidamente os turbilhões de espumarada rebojando.

            A agonia dos passageiros lá em cima era horrível.

            Chegavam-me aos ouvidos (que exaltação de sentidos eu tinha naquele momento!), chegavam-me aos ouvidos gritos, crises nervosas de senhoras.

            - Pelo amor de Deus para! para! continuava eu a gritar num acesso.

            Um jato d’água esbate-se me brutalmente pela cara, sufocando-me. Era a água turbilhonante das hélices, das hélices que nos iam tragar, que nos iam esmigalhar.

            Caí no fundo do escaler, desacordado. Não sei o que se passou, não sei. O milagre... Quando abri os olhos, ouvi claramente a voz.do catraeiro, gritando numa vitória:

            - Estamos salvos!

            Estávamos todos molhados e o barco com a água pelo meio.

            O navio, esse já ia longe, enorme, esplêndido, iluminado como um castelo fabuloso que tivesse surgido das vagas.

            À noite, quando, ainda a tremer, me pus a reconstruir as minúcias da cena, foi que dei por aquele pormenor importantíssimo: havia gritado o nome de Deus no momento do perigo.

            Outro qualquer levantaria as mãos para o céu, em agradecimento. Eu - danei-me.

            Vejam bem: estava salvo; tinha tido a morte juntinho de mim na mais inglória e na mais miserável das tragédias, mas danei-me.

            Tive vergonha. Tive vergonha de ter chamado por Deus naquele transe dramático.

            E vejam até onde pode chegar a vaidade alucinada de um homem. Tive vergonha, tive vergonha do juízo que podiam estar fazendo de mim os passageiros que se tinham ido no vapor. Estavam certamente a julgar-me uma criatura inferior, uma criatura que acreditava em Deus e que clamava pelo nome de Deus na hora do perigo.

            E aquilo me ficou a remoer o pensamento por muito tempo. E tão culminante era o meu delírio de grandeza, tão feroz a vaidade que, meses depois, no Pará, no Teatro da Paz, divisei uma das companheiras de viagem, com a qual havia feito relações amistosas.

            Não fui cumprimentá-la; não quis aparecer-lhe. Tive acanhamento, tive vergonha, senti-me diminuído. Ela podia estar lembrada de que eu invocara, em agonia, o nome de Deus e tomar-me por criatura vulgar.

            Vejam os senhores até onde pode ir a vaidade humana! Vejam que juízo fazia eu de mim e dos outros.

            Não se pode ir mais longe em pedanteria, em loucura, em desvairamente, ou, melhor, em paspalhice.

            É de Rui Barbosa aquele conceito célebre: - Deus fala aos homens pela boca de suas desgraças.

            Realmente, é nos períodos de sofrimentos que a nossa alma se prepara para conciliar-se com Deus.

Uma profissão de fé - parte 2
por Viriato Correia
Reformador (FEB)  Outubro 1970

(Conferência realizada pelo Dr. Viriato Correa,
na Federação Espírita Brasileira,
e publicada em “Reformador”
 de 15 de Fevereiro de 1925.)


            De três ou quatro anos para cá, aquela intransigência, aquela intolerância, aquela preocupação doentia, de me julgar um ser superior, modificaram-se.

            Por quê? A idade? O estudo? Influências alheias? Nada disso. A grande luta pela existência, os sofrimentos da maturidade, que são os sofrimentos mais graves de uma vida.

            Eu sentia visivelmente em mim a atuação de uma força equilibradora. Já ia admitindo opiniões que me contrariassem, já ouvia com complacência argumentos opostos aos meus, já respeitava a fé alheia.

            Àquele período de agressão fulminante a tudo quanto era doutrina religiosa, sucedeu um período de apatia, de profunda indiferença, uma verdadeira calmaria espiritual. Tanto se me dava que Deus existisse, como que não existisse. Não tomava conhecimento; não me interessava.

            Foi justamente nessa fase que me vi assaltado por moléstias dolorosas.

            A dor tem esta grande virtude - revela a nossa inferioridade. E, quando nos julgamos inferiores, abrimos insensivelmente os braços para receber a superioridade da Providência.

            Há dois anos, uma crise formidável de cálculos hepáticos derrubou-me. Tive necessidade de subir os ares felizes da Mantiqueira, em procura das águas de Cambuquira.

            Quando lá cheguei, o meu estado era gravíssimo.

            Para aqueles que não creem, Deus nunca se apresenta a descoberto - toma sempre a forma de casualidade.

            Quis a casualidade que eu em Cambuquira conhecesse um dos diretores desta casa, hoje o meu excelente amigo Antônio Fonseca. Quis a casualidade que viajássemos no mesmo trem, que na mesma sala e em mesas próximas fizéssemos as refeições.

            A primeira vez que o vi foi uma semana depois de chegar à estância d’água, o primeiro dia em que me pude levantar da cama. Era à hora do almoço. Ao chegar-me à mesa, vi, a dois passos, sentados, um homem e uma senhora que me cumprimentaram risonhamente, como se fôssemos de longa intimidade.

            Eram ele e a esposa.

            Ele ergueu-se, veio até a minha mesa e indagou demoradamente da minha saúde.
           
            Aquele gesto de cortesia outros hóspedes me haviam feito no corredor, na sala de visitas e até no meu próprio quarto.

            Mas... caso curioso: nenhum deles me tocou o coração da maneira que aquele desconhecido acabava de tocar.

            Era uma fisionomia diferente das fisionomias que eu tinha visto naquela agitação de hóspedes, com uma franca expressão de bondade derramada pelo rosto, uma voz amiga que me punha à vontade para contar os meus sofrimentos.

            Ao terminar o almoço, voltou a falar-me.

            Contei-lhe a tremenda crise de fígado que me assaltara no trem de ferro, durante doze horas, sem uma cama, sem um alívio, sem uma medicação. Soubera-o no hotel dois dias depois, disse ele, e lamentava ter viajado em outro carro, pois se estivesse presente...

            - Que ia o senhor fazer?

            - Dava-lhe uns passes, respondeu-me gravemente.

            Eu era de tal ignorância em assuntos espíritas que nunca tinha ouvido aquela expressão. Ele explicou-me a palavra e revelou-me, com modéstia, a sua mediunidade curadora.

            Sorri.

            - Lembre-se, disse-lhe, que quando os cálculos passam as dores só acalmam (e quando acalmam) com fortes injeções de morfina.

            Respondeu-me com uma convicção que me impressionou:

            - Mas o poder de Deus deve ser maior que o das injeções.

            Achei-o interessante. Muitas e muitas criaturas me tinham falado de Deus com ardor, com entusiasmo, mas, na voz daquele homem, eu sentia uma força que me chocava, uma convicção tranquila, uma fé cheia de doçura e consistência.

            Aos outros que, anteriormente, me falavam na Providência, achei-os sempre ridículos; achei aquele interessante. E mais do que isso - respeitei-o.

            À tarde, no jantar, éramos velhos camaradas. Não o deixei mais. Passávamos horas esquecidas à mesa, eu a ouvi-lo e ele a expor-me a sua doutrina, a contar-me a consolação que lhe viera depois de abraçá-la, os novos horizontes que se lhe abriram aos olhos ao conhecê-Ia. E concitava-me:

            - Leia, leia o Espiritismo. Ao menos por curiosidade.

            Prometia-lhe sempre. Logo que tivesse tempo...

            Os meus padecimentos continuavam. Quase todas as noites velava, estorcendo-me em dores incríveis. Um dia, ouvindo as minhas queixas, disse-me o Fonseca:

            - Se Deus permitir, poderei aliviá-lo.

            - Com os passes?

            - Com os passes! respondeu-me.

            - Está bem. Dê mos hoje.

            Foi aquilo puro gesto de cortesia. Queria corresponder à gentileza daquele homem, que eu sentia desejoso de sossegar-me.

            A noite veio ele ao meu quarto. Com as mãos pousadas em minha cabeça, ergueu-se, levantou os olhos para o céu e começou a orar.

            Deu-me uma louca vontade de rir. Mas olhei aquela fisionomia serena, grave, incendida de fé e havia nela um brilho tão novo para mim, uma tão alta e comovedora magnitude, que baixei, que fui forçado a baixar respeitosamente a cabeça, num silêncio profundo.

            Recebi os passes. No dia seguinte, com surpresa senti-me melhor.

            E todas as noites, após o jantar era eu quem convidava o Fonseca a ir ao meu quarto, dar-me os passes. Mas não havia em mim a mais remota réstia de fé. O que havia era curiosidade, uma infinita curiosidade por aquele homem e por tudo aquilo.

            O Fonseca deixou Cambuquira dias antes de mim. Uma semana depois que aqui cheguei, vim visitá-lo, lá em baixo, na livraria desta casa.

            Conversámos longamente. Ao retirar-me, meteu-me nas mãos um volume.

            - Leia quando tiver vagar.

            Era o Livro dos Espíritos de Allan Kardec. Levei-o para casa.

            Passou-se o primeiro mês, passou-se o segundo. O volume ficou rolando, esquecido, desprezado, pelas estantes, no meu gabinete de estudo.

            Mas nada, na vida, vem senão a seu tempo. Uma manhã, saí do quarto, apressadamente, para o banho. Ao passar pela sala de jantar, vi um livro em cima da mesa, ao acaso.

            Foi sempre dos meus hábitos abrir todos os livros que se me deparam aos olhos. Gosto de lhes saber o título e o autor. Chego a arrebatá-los de mãos alheias, pelo impulso irresistível desse cacoete indelicado.

            O volume que estava sobre a mesa era o que o Fonseca me havia oferecido. Tive uma ruga no rosto. Oh! diabo, não era gentil aquilo! o homem oferecer-me a obra com tanta fidalguia e eu não tinha tido sequer a curiosidade de abri-la.

            E fechei o volume. Dei dois passos, voltei.

            Voltei, abrindo novamente o livro. Abri-o ao acaso. É sempre sob a forma de acaso que Deus se apresenta aos incréus. Abri justamente numa das páginas de mais alto interesse, aquela em que Kardec trata da volta à vida espiritual, da separação da alma e do corpo, da perturbação de certos Espíritos ao deixarem inopinadamente o aparelho em que moraram na existência terrena.

            A página é esta:

            “No momento da morte, tudo é, a princípio, confusão; a alma precisa de algum tempo para se orientar; fica como que atordoada, no Estado de um homem que despertasse de um sono profundo e procurasse explicar-se a sua situação. A lucidez das ideias e a memória do passado voltam-lhe, ao passo que decresce a influência da matéria, de que acaba de desprender-se, e a medida que se dissipa a espécie de nevoeiro que lhe obscurece os pensamentos.
            O período da perturbação que se segue à morte é muito variável: pode ser de algumas horas como de muitos meses e até de muitos anos. Aqueles para quem ela é menos longa, são os que já em vida se haviam identificado com o seu estado futuro, pois que compreendem imediatamente a sua posição.
            Essa perturbação apresenta circunstâncias particulares, segundo o caráter dos indivíduos e, principalmente, segundo o gênero de morte.
            Nas mortes violentas, por suicídio, suplício, acidente, apoplexia, ferimentos, etc., o Espírito fica surpreendido, admirado e não crê estar morto; sustenta esta ilusão com pertinácia.
            Apesar de estar vendo o corpo e de saber que é seu, não compreende como esteja separado nele: busca as pessoas que lhe são afeiçoadas, fala-lhes e não percebe porque lhe não prestam atenção. Esta ilusão dura até ao completo desprendimento do perispírito. Só então o Espírito se reconhece e fica sabendo que já não pertence ao número dos vivos. Este fenômeno explica-se facilmente: Surpreendido inopinadamente pela morte, o Espírito fica aturdido pela brusca mudança que nele se opera; para ele, a morte é ainda sinônimo de destruição, de aniquilamento, e, como pensa, vê e ouve, supõe que não está morto. O que lhe aumenta a ilusão é o ver-se com um corpo semelhante, na forma, ao precedente, mas cuja natureza etérea não teve ainda tempo de estudar; julga-o sólido e compacto como o primeiro e, quando lhe chamam a atenção para esse ponto, admira-se de não poder apalpar-se. Esse fenômeno é análogo ao que se passa com os sonâmbulos inexperientes, que não creem estar dormindo.
            Para eles o sono é sinônimo de suspensão das faculdades; ora, como veem e pensam livremente, julgam que não dormem. Certos Espíritos apresentam esta particularidade, mesmo quando a morte não tenha vindo abruptamente: mas é mais geral naqueles que, embora enfermos, não pensavam ainda em morrer.
            “Vê-se então o singular espetáculo de um Espírito assistindo ao seu próprio enterro, como se fosse o de um estranho, e falando disso como de coisa que lhe não diz respeito, até ao momento em que compreende a verdade.
            A perturbação que se segue à morte nada tem de penosa para o homem de bem, pois para este é calma e em tudo semelhante à que se segue a um despertar plácido. Para aquele, porém, cuja consciência não é pura, a perturbação é cheia de ansiedade e angústias, que aumentam à medida que ele se vai reconhecendo.
            Nos casos de morte coletiva, tem-se observado que nem todos os que morrem ao mesmo tempo se veem sempre imediatamente uns aos outros. Na perturbação em que se acham, cada qual caminha para seu lado e só se preocupa com os que lhe interessam.”

            Li tudo isso com sofreguidão, a respiração opressa, de toalha nos ombros e saboneteira apertada nos dedos. Ao terminar havia em mim uma sensação estranha de arrepio; um suor gelado corria-me pelo corpo.

            Foram sempre do meu gosto particular em literatura as páginas fortes, aquelas que se distinguem pelo cunho trágico, pela originalidade e pela extravagância.

            Mas, página nenhuma me sacudira tanto como aquela. Nem nos contos de Hoffmann e Poe, nem em Zola, nem em Mirbeau, nem em Dostoiewsky, em ninguém. Cenas horríveis eu próprio sempre vivi na ginástica de imaginá-las, mas aquelas eram inteiramente novas, inteiramente inéditas para a minha imaginação.

            Reli a página. A emoção não foi menor que da primeira vez.

            Tive vontade de ali ficar para ler de um trago o livro. Mas o relógio bateu, avisando-me das obrigações na rua. Uma inquietação horrível perseguia-me durante o dia no trabalho. Só uma coisa me preocupava - voltar para casa e devorar o demônio daquele livro.

            À noite, quando me atirei à leitura, foi numa ansiedade, numa febre. Muitos livros bizarros, curiosos, extravagantes têm-me passado pelos olhos, muitos de alto surto dramático têm-me abalado a sensibilidade nos seus recessos mais remotos, muitos; mas nenhum, nenhum até hoje me deixou tão forte sulco no Espírito, como aquele de Allan Kardec.

            Para mim, tudo ali era novo, inesperado, chocante, resplandecente.

            Com todo o meu materialismo, ou justamente por isso mesmo, tinha eu da morte um  pavor que me gelava. Quando me passava pela cabeça que um dia, fatalmente, tudo em mim se ia apagar, que o meu corpo seria metido no fundo da terra, que o meu eu humano e inteligente desapareceria em podridão, todo o meu ser se arrepiava, tremendo.

            E, caso singular para mim: ao terminar a leitura do Livro dos Espíritos, não me havia somente desaparecido o medo da morte. Eu tinha, tinha sim, a curiosidade da vida de além-túmulo, tinha, mais do que isso, um certo desejo de morrer, para fruir os mundos novos, os mundos rutilantes que Kardec descrevia.

            Repeti a leitura e, ao concluí-la, não era espírita, meus senhores, mas tinha pelo Espiritismo uma atração irresistível. O que se passava em mim eu próprio não sabia explicar.

            Parecia que um véu negro se me rasgara dos olhos, Parecia que uma vasta janela se me abria diante das retinas, enchendo-me de claridades. Os homens, as coisas, a vida, o mundo, os mundos, tudo, tudo era para mim agora diferente. Cheguei a pensar que um outro eu vivia dentro de mim.

            Foi nesse período que uma força qualquer, que eu não explicava, me conduzia constantemente às portas desta casa.

            Mas, não pensem, senhores, que, apesar da transformação, aqui entrava com o entusiasmo de um adepto, não; entrava com as cautelas de um desconfiado.

            No princípio, achei que, aqui dentro, toda gente era maluca. Quando qualquer pessoa, aqui, me falava em comunicações espirituais, narrando-me com a maior simplicidade este ou aquele fato espírita de observação própria, duvidava imediatamente da sua integridade mental. Estaria a falar a sério, ou estaria com a cabeça desvairada?

            Mais tarde essa impressão se modificou. Os homens aqui me causavam surpresa. Ficava silencioso a ouvi-los, perguntando a mim mesmo, surpreendidamente, como se podia ter tanta convicção e como podiam acreditar em tudo aquilo de que me falavam.

            Por fim, todas aquelas impressões se transformaram em respeito. Respeitei-os, senhores. Respeitei-os, tocado pelo vigor da sinceridade que lhes senti, sacudido pelo grande sopro de fé, de abnegação, de desprendimento individual e de altruísmo que observei em cada um deles.

            Os da minha maior intimidade aqui dentro foram o Antônio Fonseca, o Manuel Quintão, o Frederico Figner.

            Não sei qual dos três maior surpresa me causou.

            O Fonseca, com a solidez inalterável de sua crença, a confiança serena na justiça de Deus e aquela resignação humilde nos mais ásperos sofrimentos, espantou-me desde os primeiros dias. E quando vi o Quintão, forte, inteligente, vivo, todo alheado do seu eu, na preocupação constante da dor alheia, confiando tranquilamente e doutrinando como confiava, arregalei muitas vezes os olhos surpreendidos. E o Figner! Judeu, de uma raça milenarmente hostil ao Cristianismo, milenarmente mercantilizada, a falar com entusiasmo dos textos do Evangelho, a curvar a cabeça diante da grandeza do Cristo, a correr a cidade de ponta a ponta, gastando do seu bolso, sem dizer a ninguém o que gastava, para levar aos tetos miseráveis a alegria do pão e o alívio dos medicamentos!

            Foram essas três figuras que me deixaram na alma sulcos imperecíveis.

            E foi, vendo-os, observando-os, analisando-os, que senti desejos de conhecer mais de perto a doutrina maravilhosa que tão fundamente transformava os homens numa florescência admirável de resignação e de bondade.

Uma profissão de fé - parte 3
por Viriato Correia
Reformador (FEB)  Novembro 1970


            A primeira impressão violenta de simpatia já eu tinha tido com a leitura do Livro dos Espíritos. Tudo mais era fácil. E fácil tudo mais foi.

            Passei um ano inteiro a ler, a observar.

            Quando abri os olhos, tinha diante deles a imensa rutilação da fé divina. Punha a cabeça fora da toca e, como o Coelho da fábula, não mais quis voltar a enfurnar-me na treva.

            E vede, vede, meus senhores, quanta casualidade em tudo isto.

            A casualidade levou-me a Cambuquira, ao mesmo tempo que levou o Antônio Fonseca.

            A casualidade fez-nos morar no mesmo hotel e ter vizinhas as mesas. O acaso inspirou-lhe interesse pelos meus sofrimentos e inspirou-nos simpatias mútuas. Ainda o acaso me forçou a respeitar nele (aludo aos passes) aquilo que, decerto, eu acharia ridículo em outra pessoa.

            Ainda a casualidade fê-lo meter-me nas mãos o livro de Kardec e inspirou-me a obrigação de lê-lo, para corresponder à gentileza da oferta.  Ainda a casualidade moveu alguém a colocar o livro na ponta daquela mesa, no momento em que eu passava para o banho.

            E só o acaso, o eterno acaso (é este, para mim, o ponto mais frisante da narrativa), me fez abrir o livro justamente naquela página, aquela que vos li.

            É este o ponto mais curioso de tudo isto, insisto em afirmar, o ponto a que atribuo toda a minha conversão.

            Sempre foram as leituras chocantes, com qualquer cunho de inédito, com qualquer cunho de novidade, as que mais me impressionaram.

            Se o acaso não me tivesse feito abrir o Livro dos Espíritos naquela página, talvez eu nunca tivesse tido interesse de ler o volume. Se começasse a leitura da primeira página, sem aquela impressão vibrante que, casualmente, recebi à hora do banho, é possível que eu não fosse ao meio do livro ou talvez não passasse das primeiras folhas.

            O Acaso sabia que, antes de tudo, devia inflamar-me a centelha da curiosidade, sabia que a minha curiosidade, em leitura, se inflama facilmente pelo ineditismo e pela novidade. Havemos de concordar, senhores, que o Acaso é uma entidade altamente inteligente. 

            A maioria das criaturas não compreende que alguém possa ser espírita sem ter visto as manifestações físicas do Espiritismo.

            No fundo, há uma certa dose de razão. Os fenômenos das sessões práticas são às vezes de tal maneira impressionantes, que solidificam a convicção de que existe uma outra vida que não esta vida tangível em que nos arrastamos.

            Dos casos práticos do Espiritismo sei contar muito pouco. O que me fascinou foi a doutrina, pela magnitude de sua beleza, pela sua suprema doçura tonificadora das almas, pelo bálsamo infinito que derrama sobre as dores.

            Nos primeiros dias da minha iniciação, tive a curiosidade de assistir a trabalhos de mediunidade. A decepção foi enorme. À mesa sentavam-se criaturas de sisudez indiscutível e de sinceridade profunda; mas, apesar de tudo, foi enorme a minha decepção.

            Porquê? Não acreditei nas mediunizações, não acreditei nas figuras atuadas pelos Espíritos. Achei tudo aquilo muito próximo da comédia. Parecia-me que os transes eram fingidos.

            Tinha tido um dia infeliz. Os Espíritos que se manifestaram eram todos de uma inferioridade alarmante.

            Foi só mais tarde, mais de um ano depois, que voltei a assistir a trabalhos práticos. Ali, fui mais feliz; ali, pela palavra dos altos Espíritos, tive a boa sorte de mais fortificar a minha crença.

            Observações pessoais que possam impressionar, creio não ter nenhuma para contar. Faltam-me totalmente qualidades mediúnicas. Não ouço, não vejo, não escrevo, não sinto. Parece que Deus me experimenta. Quer ver até onde vai a constância da minha fé, negando-me as provas materiais em que possa alicerçá-la. Quer que eu creia no sol sem vê-lo, unicamente por lhe sentir a claridade.

            Em dois anos de iniciação espírita, poucos, pouquíssimos são os fatos que posso contar de observação individual. Comigo pessoalmente quase nada se tem passado.

            O primeiro fenômeno que, diretamente, se passou comigo deixou-me um abalo profundo.

            Tinha eu, há tempos, uma pretensão qualquer que, na época, era para mim de importância capital. Todos os meus esforços, todos os meus pensamentos, todos os meus movimentos eram feitos com ardor para consegui-la. E tudo e tudo conspirava contra mim. Transpunha um obstáculo e adiante encontrava outro, galgava penosamente uma cumeada, julgando lá em cima encontrar os elementos de realização, e logo outra cumeada inacessível se me apresentava aos olhos. Não dormia. Passava noites inteiras velando, ansiando, a medir dificuldades insuperáveis.

            A fé, porém, tangia-me para a frente. E, por fim, essa me faltou. O desânimo começou a dominar-me.

            Certa noite, fui convidado para uma sessão espírita. Era uma das noites do meu maior desespero.

            Presidia a sessão a minha querida amiga, a senhorita Elisabeth Hamont, médium auditiva, psicográfica, algo vidente. Quase ao terminar os trabalhos, lançou ela os olhos em derredor da sala, à procura de alguém. Afinal, pronunciou o meu nome.

            - O senhor conhece alguém que se chame Manuel? perguntou-me.

            Manuel! o nome era tão comum!

            - Conheço várias pessoas, respondi.

            - Alguém que já desencarnou e que se diz seu parente.

            - Meu pai! exclamei arrepiado.

            - Está ele aqui ao meu lado. Pede-me lhe diga que não desanime, pois o que o senhor deseja Deus lhe dará na segunda-feira.

            Vibrei; meus cabelos arrepiaram-se.

            Era uma sexta-feira. Apenas três dias de espera.

            Passei o sábado e o domingo em brasas de ansiedade. Ao amanhecer de segunda-feira, era como uma pilha elétrica. Ia realizar-se, enfim, o que eu queria. Saí para a rua com a alma a cantar, todo nas flamas de uma vitória.

            Passou-se a metade do dia. Nada. Entardeceu. Nada. Começou a anoitecer. E nada. E nada.

            Crescia-me a inquietação desoladoramente.

            Às dez da noite, meus nervos causavam dó. Mas o dia não havia ainda terminado. Restava-me um vago raio de esperança.

            Os relógios deram meia-noite. Nada. Nada. Nada.

            Quando já madrugada, atirei-me na cama: era um frangalho. Ao acordar, o desânimo avassalava-me.

            Corri à médium, minha amiga. Ela estava inquietíssima.

            - Mas eu vi, repetia, vi e ouvi. As palavras que lhe disse foram as palavras que ouvi.

            Passei esse dia desesperadamente. Uma lufada de descrença soprou-me o Espírito. Tudo aquilo era uma farsa.

            E a semana foi passando. Vi claramente diante de mim a impossibilidade da realização. O melhor era deixar aquilo de vez. E, no domingo, estava decidido a renunciar. Mas, amanhece a outra segunda-feira e inesperadamente, inesperadamente sim! de onde eu não contava, vem-me aquilo que eu pretendia. Tudo se realizava na segunda-feira. Até hoje não sei explicar o fato. Porque a promessa não veio na primeira segunda-feira e veio na segunda? Ter-se-ia enganado na contagem do tempo? É possível. O tempo nas regiões siderais não é o mesmo tempo terreno. Ter-se-ia enganado o médium? Teria ouvido mal? É possível. Ou teria Deus transferido de uma segunda-feira para outra segunda-feira, a fim de experimentar-me? Não sei. Os desígnios da Providência são insondáveis. O que é certo é que tive o que pedi, o que é certo é que tive o que me foi prometido.

            De outra feita (passou-se isto aqui na Federação), surgiu-me na cabeça uma determinada tentativa. No começo, pareceu-me simplíssima, mas, à proporção que fui trabalhando para realizá-la, os obstáculos apareciam. Quando abri os olhos, tinha verdadeiras muralhas diante de mim. Era impossível ir adiante.

            Mas o caso, que era material no começo (isso sempre acontece na vida dos homens trabalhadores), já se tinha transformado num caso moral. Estavam empenhados o meu nome e a minha honra.

            Eu não podia recuar. Mas não podia prosseguir. Faltava-me tudo, tudo, para ir à frente.

            Atirei-me como um doido, como um desesperado, à procura dos elementos.

            Bati a dezenas de portas que supus abertas à minha entrada. Encontrei-as com trancas de ferro.

            A situação era dessas em que não se tem o direito de ficar parado. Revolvi terras e mundos e tudo falhou. Houve um dia em que tive medo de enlouquecer. Ou em vinte e quatro horas decidia aquilo, ou estaria completamente perdido. Porém, não tinha mais nenhum passo a dar, nenhuma porta a bater.

            Há ocasiões em que o consolo de um amigo vale pela própria vida. Eu precisava de alguém a meu lado. Entrei aqui com a alma trespassada. O Manuel Quintão ia chegando. Contei-lhe por alto o caso.

            - Que queres que eu faça? perguntou-me com tristeza, emocionado pela gravidade da minha situação.

            - Quero que peças a um Espírito que me aconselhe. Pede ao Espírito de Bezerra de Menezes.

            Eu tinha pelo Espírito de Bezerra de Menezes uma afeição particular. Tempos antes, por intermédio do mesmo Manuel Quintão, ele me havia dado uns conselhos salutares, com uma sutileza comovedora.

            Diante do meu pedido, o Quintão ficou pensativo, concentrado, como se não soubesse se devia fazer ou não.

            Afinal, levantou a cabeça, como se tivesse recebido uma inspiração:

            - Vou pedir. Sobe.

            Subi. Fiquei à espera em um dos gabinetes do primeiro andar, contíguo àquele em que o médium se trancou.

            Passaram-se dez minutos. O Quintão voltou sereno, sorridente, mas no seu rosto estavam visíveis os traços da funda concentração em que estivera.

            - Lê, disse, entregando-me um papel. Era a comunicação. Era um jato de luz.
Era a esperança. Conservo-a entre os meus papéis como um tesouro.

            Começava por uma censura: eu devia ter medido melhor as minhas forças. Mas, concluía, nem tudo estava perdido. “Há uma porta em que ainda não bateste. Vai, conta tudo, fala a verdade, que ela se abrirá com o favor de Deus.”

            Curiosíssimo. Até àquele momento, julgava que não havia mais porta nenhuma para que eu batesse. Mas, mal concluí a leitura, vi, vi num relâmpago, como se alguém me inspirasse, a porta a que me esquecera de bater.

            Uma comunicação daquelas, vinda através de um médium escrupuloso como aquele, era para deixar tranquilo, mesmo um espírita incipiente como eu.

            E fui onde a inspiração me mandou, fui sereno, confiante, seguro de que teria a consumação do meu desejo. Encontrei, de fato, as portas abertas de par em par.

            Tudo se realizou, graças a Deus.

*

            O terceiro fato não é menos edificante que os outros dois,

            Passou-se há poucos meses, em Setembro último, no Maranhão.

            Sofro de uma relaxação dos músculos do braço direito, na região do úmero, motivada por várias luxações. No mesmo tempo de estudante em Pernambuco, luxei o braço e, de lá para cá, os deslocamentos se tem repetido vinte e duas vezes. Qualquer jeito mau estou com o úmero fora do lugar. E a redução da luxação é sempre difícil, sempre laboriosa, sempre demorada. Sofro dores horríveis, tremendas, culminantes.

            Uma noite de Setembro, dormia, talvez agitadamente. Parece me que me deitei sobre o braço, que fiz algum jeito mau. O que é certo é que, num grito, acordei com o braço luxado. Alarmei as pessoas da casa. Aquela hora, no Maranhão, um médico, como aqui, como em qualquer parte, é dificílimo. Foi-se à procura do médico. Fiquei sentado à beira da cama, com o braço arriado esperando. Eram duas horas da madrugada.

            Sofrendo dores intensas, pus-me a imaginar as que teria de sofrer quando o médico chegasse, quando fosse o momento laborioso da redução do deslocamento.

            Era a vigésima segunda vez e bem sabia o que me esperava.

            Nesse instante estava sozinho no quarto. Veio-me à lembrança o nome de Bezerra de Menezes. Fora ele, na Terra, na última encarnação, um médico de fama, um operador notável. E do que eu necessitava era de um médico.

            E concentrei-me. Concentrei-me e pedi com todas as minhas forças.

            Não sei quantos minutos estive em concentração. Não mais de cinco. Subitamente ouvi um som, o som que as rolhas de garrafas de cerveja produzem quando saltam, o som do úmero deslocado que volta a seu lugar.

            Levei com rapidez a mão esquerda à região doente. A luxação estava reduzida. Dei um salto da cama, estatelado. Quem se não surpreenderia? Uma luxação escapo-umeral não a reduz quem quer. Tenho tido médicos habilíssimos ao meu lado, durante horas, em esforços exaustivos. Uma luxação redu-la quem sabe, quem tem prática e isso com muito trabalho, com jeitos próprios, movimentos particularíssimos, sem falar nas dores cruciantes do doente.

            A minha ali estava reduzida sem um movimento, sem o mais leve movimento e sem dor.

            Quando, vinte ou trinta minutos depois, o médico chegou, arranjei-lhe uma mentira. Contei-lhe que fizera esforços tais que o braço voltou ao lugar. De que serviria dizer-lhe a verdade? Ele não acreditava. E, além de tudo, o rapaz era meu amigo e podia penalizar-se, julgando-me maluco.

*

            E, por estes exemplos e por outros e pela observação de fatos da minha vida e da vida alheia, em dois longos anos de meditação, caldeou-se em minhalma a mudança que hoje publicamente vos venho dizer, atendendo ao honroso convite da diretoria desta casa.

            O que aqui vim fazer, meus senhores, não mais do que a minha profissão de fé.

            De qual fé? Fé espírita? E serei um espírita? Não, não sou. Alguém poderá considerar-me espírita? Não, não pode. Faltam-me as qualidades substanciais, as virtudes básicas do qualificativo.

            Ser espírita não é só dizer que o é. É preciso sê-lo na essência. Ninguém é espírita pela boca e sim pela alma.

            Ser espírita é ter a fé acesa como o sol e ter a fé maior que o próprio mundo. É ter o apostolado do bem, é ter o sacerdócio da dor.

            Ser espírita é perdoar. É receber a ofensa com humildade, porque em cada humilhação que se recebe está a graça de Deus para nos exaltar.

            Ser espírita é ter fraternidade. É ver em cada criatura, em cada homem, um irmão de dor, em cada irmão um companheiro que precisa de apoio e de amparo. É ver nos humildes, nos que nos parecem inferiores, a nossa própria inferioridade.

            Ser espírita é renunciar. É renunciar aos gozos terrenos em bem da ventura que está lá acima, nas esferas iluminadas. É renunciar ao gozo próprio, em bem do alívio alheio. É ter a volúpia da dor, por saber que, em cada sofrimento, está o desconto de uma dívida. É ver na dor um bem, é ver no infortúnio uma graça, é ver na desventura um prêmio. É sorrir quando sofre, porque quem sofre caminha para Deus. É agradecer a amargura, como se agradece o mimo de uma flor. É sair para a rua, sufocando gemidos próprios , para consolar o gemido alheio.

            Ah! São virtudes muito altas, virtudes augustas e quase intangíveis.

            Tenho-as? Eu próprio reconheço que não.

            Sou espírita ? Não sou. Tudo me falta, em essência, para sê-lo.

            Sou apenas uma alma pecadora, deslumbrada pela beleza divina, tonta de luz, que vive a bater as asas tontas na imensidade, a pedir, a suplicar à Providência que lhe faça crescer infinitamente a fé, que lhe dê amor para perdoar, que lhe dê ternura para praticar a fraternidade, que lhe dê coragem, muita coragem, para renunciar, a fim de poder seguir o caminho da luz, o caminho da verdade, o caminho da perfeição, aquele caminho que leva a Deus.

            (Esta conferência, cuja publicação, em nossa revista iniciámos em nosso número de Setembro p. p. foi pronunciada pelo Dr. Viriato Correa, em 8 de Janeiro de 1925, aos 42 anos de idade, época em que atingia precisamente a metade da sua longa e proveitosa existência, como escritor e professor.
                Viriato Correa desencarnou em 10 de Abril de 1967, aqui na Guanabara, numa segunda-feira.
                Em 1911 foi eleito deputado estadual, no Maranhão; em 1927, deputado federal pelo mesmo Estado que lhe serviu de berço. Era membro da Academia Maranhense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do mesmo Estado, e, em 1938, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.)




                                                                        



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