Uma profissão de fé - parte 1
por
Viriato Correia
Reformador
(FEB) Setembro 1970
(Conferencia realizada pelo Dr.
Viriato Correia,
na Federação Espírita Brasileira,
e publicada em “Reformador”
de 15 de
Fevereiro de 1925.)
Não sei se alguém, nesta sala,
conhece a fábula do Coelho que vivia na toca. Li-a em pequenino, já não sei
onde, há tanto tempo isso foi.
Era uma vez um Coelho que nasceu
numa gruta e na gruta viveu quase que a existência inteira. Como era indolente
e orgulhoso, os outros coelhos tomaram-no por uma figura de eleição e
fizeram-no rei.
E como o Coelho era rei, tendo
vassalos que o servissem, nunca sentiu necessidade de vir aqui fora lutar pela
vida: os coelhos levavam-lhe alimento ao fundo da toca, arranjavam-lhe a cama
com as ervas mais tépidas e macias, penteavam-lhe o pelo com os cuidados e os
carinhos mais sutis.
Dentro daquelas paredes escuras o
coelho dominava soberanamente. O mundo para ele resumia-se naquele buraco estreito.
Os companheiros, os vassalos, convidaram-no a vir fora ver o mundo largo, ver a
vida intensa. Não! não queria vir, não queria ver! O mundo era aquilo, aquela
gruta negra, aquela toca esconsa. O Coelho cabia largamente nos recessos de sua
furna, gozava a seu prazer o prazer da vida, sentia-se grande, sentia-se
onipotente na estreiteza de sua caverna e que lhe importava existissem outros
mundos lá fora e além? mundos que, certamente, não seria da vastidão de sua
lura, mundos que talvez não coubessem a grandeza da sua pessoa e a majestade do
seu poder! Não! não queria ver! não queria vir! Satisfazia-lhe a penumbra que
lhe envolvia a toca, satisfazia-lhe aquele silêncio de profundidade, aquela
indolência de potentado.
Mas, um dia, os coelhos vassalos não
lhe vieram trazer o alimento e renovar-lhe a casa. Esperou muito e nenhum
apareceu. Gritou-lhe a fome no estômago - não havia migalhas pelos recantos da
caverna.
Pela primeira vez teve necessidade
de mexer-se. E, ao transpor a porta da gruta, bateu-lhe o coração afoitamente e
uma golfada de luz ofuscou-lhe de súbito os olhos. E ele parou.
Parou tonto, deslumbrado, todo o sangue em fluxos, toda a emotividade em
êxtase.
Era no alto da montanha. Vinha
raiando pelo espaço a claridade fulgurante da manhã. O Sol rasgava o céu numa
esplêndida explosão de rosa e de ouro. A Natureza inteira despertava, fulgindo
e cantando: as copas, as árvores, todo o cerrado da floresta ressoava em
músicas e gorjeios; pássaros enchiam festivamente os ares de trinados; e tudo
brilhava, resplendia tudo numa apoteose de maravilhamento: a serra em cima,
ondulada e verde, o vale embaixo serpeado d’águas, o casario ao longe, os
palmeirais distantes, a mata, as estradas, as ribanceiras e, ao fundo, o mar, a
vastidão do mar espreguiçando ao sol a pelúcia azul das vagas rumorosas.
O Coelho tragou um imenso hausto de
ar. Aquele sorvo de imensidade levantou-lhe a vida. E ficou extático,
obumbrado, maravilhado, olhando tudo, sem saber para onde olhar. Voltava os
olhos à direita, voltava os olhos à esquerda, atrás, à frente, e era sempre
aquela deliciosa
e embriagadora sensação de luz, aquela arrebatadora impressão do grande, do
infinito.
Quanto tempo lá ficou a olhar? Não
sei. Mas, quanto mais olhava, mais pequenino se ia sentindo, mais humilde e
mais insignificante se ia considerando, ele, ele o Coelho rei, o Coelho
orgulhoso, que era grande, incomparavelmente grande na estreiteza escura de sua
toca.
Todas as fábulas, meus senhores,
encerram uma lição de moral.
O Coelho, que era onipotente no
fundo de sua gruta, que lá dentro era o maior de todos, que tinha vassalos e
mandava e, quando mandava, tinha a seus pés curvada a mais respeitosa
obediência, ele o senhor, ele a realeza, não quis mais voltar para o seu
buraco.
Preferiu ali ficar sem mando, sem
majestade, sem poder, pequenino, raso, insignificante, lutando pela vida,
trabalhando para alimentar-se, fazendo a sua própria cama para dormir, mas
preferiu ali ficar diante daquele panorama de luz, daquele radiante cenário de
grandezas, sob o influxo daquela claridade que lhe tonificava a vida, daquela
vastidão sem fim que lhe exaltava o pensamento. E nunca e nunca mais voltou à
escuridão da caverna.
Eu sou, meus senhores, como o Coelho
da toca.
Vivi por muito tempo, a bem dizer
até ontem, vivi na furna do ateísmo, cevando o meu orgulho e a minha maldade,
como se cevam num chiqueiro as banhas de um porco.
E quando entrei para a toca? Desde
que comecei a ter entendimento de homem, desde que comecei a enfeitar-me para
rapaz.
Ao despontar-me a primeira sombra de
buço, eu era o incréu mais impertinente, mais irritante e mais insuportável que
havia na Terra.
Para o Coelho da fábula, para a vida
do Coelho da fábula, na escuridão da gruta, havia uma
atenuante justificadora: ele nascera no buraco e ao buraco se amoldara, ao
buraco se afeiçoara,
da mesma maneira que a lesma se amolda ao búzio, que os batráquios se amoldam
ao lodo.
Para mim, tudo era agravante. Nasci
no seio
carinhoso de uma mãe cristã, à sombra de uma família cristã fiz-me homem.
O Coelho não queria sair da toca
porque lá nascera. Eu animalizei-me mais do que ele: - nasci na luz, ao clarão
radiante da verdade e encafuei-me na toca...
Diz a fábula que, como o Coelho era
orgulhoso e indolente, os outros coelhos fizeram dele
o rei. Há, nesse ponto, entre mim e a figura da história, uma pequena
diferença. A mim ninguém
me aclamou para realeza nenhuma. Eu é que me aclamei, eu é que empunhei um
cetro e pus à cabeça uma coroa de orgulho.
Aos meus olhos, ao meu juízo,
ninguém era maior do que eu. Houve um tempo em que me imaginei o maior dos
homens. Houve mesmo um tempo em que me julguei a figura central do planeta.
Ninguém sabia mais do que eu; ninguém tinha mais direitos. Houve mesmo um tempo
em que fui o galo de Rostand: as manhãs irrompiam no céu ao som da minha voz e
à voz do meu mundo. O mundo existia para que eu existisse; o sol, as águas, as
flores, as estrelas, tudo havia sido criado para mim.
Foi a quadra mais insuportável da
minha vida. Inimigos criava-os com a facilidade com que os cogumelos
desabrochavam num pau podre. Tinha a volúpia singularíssima de desagradar; o
gosto de irritar. Andava de clava em punho, como um guerreiro bárbaro,
destruindo tudo: ideias alheias, crenças alheias, preconceitos e até melindres.
Nada me infundia respeito, nada. Vivia a fazer praça do meu iconoclastismo,
como um cigano faz praça do valor de seus cavalos.
Deus constituía para mim uma
pilhéria hilariante, uma ridicularia de todos. O meu maior orgulho, o meu maior
prazer, e orgulho que eu provocava a todo momento, era dizer-me materialista e
propalar o meu materialismo. Quando, diante de mim, alguém falava em Deus, com
respeito e fé, eu ou duvidava da sinceridade, ou considerava a criatura
imbecil. Não me podia passar pela cabeça que alguém de senso comum, de
inteligência vulgar pudesse, a sério, acreditar em Deus. Deus havia sido
inventado para embair os medíocres ou os tolos.
Eu que me julgava um ser de exceção,
estava no dever de reduzir Deus a zero.
Quanto ao Cristo e quanto à Virgem
Maria, a minha irreverência apavorava. Houve criaturas que me disseram que as
minhas palavras lhes esfriavam os ossos. E eu gozava, gozava a irritação alheia
com o prazer infernal de um lobo que estraçalha uma presa. E, quanto mais
blasfemava, quanto mais aos outros irritava, maior imaginava que eles me
estivessem julgando. Era uma maneira de engrandecer-me aquela, a de destruir
aquilo que os outros tinham como sagrado. Se arrasava o que era grande, é
porque maior eu era.
Os livros de doutrinas religiosas
que me chegavam às mãos repelia-os, como se repele uma inutilidade. Sentia-me
bem no fundo da minha caverna, na minha gruta, na minha toca. Dentro dela,
quanto mais encovado, quanto mais profundo, maior me sentia, mais arrogante e
mais poderoso. Que me importava que, lá fora, existissem doutrinas
consoladoras, princípios balsâmicos, crenças alevantadas e tonificantes, que me
importava? se havia criado para mim um mundo meu, uma doutrina minha, dentro
dos quais era grande, dentro dos quais imperava soberanamente, sem prestar
contas a ninguém?
E isso foi, meus senhores, por muito
e muito tempo, por quase toda a minha quadra de rapaz.
Um dia, porém, a gentileza piedosa
de um amigo pôs-me na mão um livro de Allan Kardec. Li-o de um fôlego, de um
trago. Tinha chegado o meu dia, como chegara ao Coelho, de
pôr a cabeça fora do buraco. E o meu deslumbramento não foi menor que o do
animal da fábula.
Ao correr os olhos pelo livro
espírita eu tinha a sensação maravilhosa de quem sobe uma montanha desvendando
uma paisagem nova, fulgurante e surpreendente. Ao terminar a leitura, sentia-me
bem no alto, no píncaro, vendo adiante de mim uma claridade desconhecida que
nunca adivinhei no fundo da furna, vendo adiante de mim um panorama largo,
aberto, indefinido, inteiramente estranho para a minha imaginação, um panorama
de beleza tão ofuscadora que fiquei parado, olhos estáticos, o sangue em fogo,
a alma em êxtase, ajoelhada, na volúpia da contemplação.
Uma mudança radical se operava em
mim. Quanto mais abria os olhos, quanto mais abria a alma, mais pequenino me ia
julgando, mais insignificante me tornava, porém mais consolado e feliz me
sentia.
E não afastava nem queria afastar os
olhos do imenso esplendor daquele deslumbramento. Pela primeira vez e só
naquele instante fixava o olhar na grandeza eterna do Universo, na obra eterna
da Criação.
Até então só havia olhado a mim, mas
olhado por fora, com os olhos do orgulho, da vaidade,
do egoísmo e da empáfia. Até então o que tinha visto diante de mim não ia além da
minha pequenez, a que o delírio da imaginação vaidosa dava proporção
gigantesca. Agora,
porém, defrontava a vastidão imensurável, a augusta vastidão das coisas
infinitas. E eu, que todos os dias fitava o céu, pela primeira vez fitei-o
compreendendo-o. Dantes, ele era para mim um nada, um incidente sem
importância, um espaço como outro qualquer e algumas
vezes, nas crises mais fortes da minha vaidade, um pálio aberto, como homenagem,
sobre a minha cabeça.
Agora, porém, defrontava a vastidão imensurável,
a augusta vastidão das coisas infinitas na sua majestade.
E tive a felicidade, senhores, a
suprema felicidade
de poder afundar os olhos da razão nas supremas profundezas do espaço
insondável. Lá estavam as estrelas fulgindo, cintilando às centenas, aos
milhares, aos bilhões. E pela primeira vez considerei a grandeza, a formidável
grandeza daqueles mundos longínquos que, a distância, não eram mais que cabeças
de alfinetes. O céu estava, naquela noite, de uma pompa delirante. Todas as
constelações, voltadas para a Terra, faiscavam no fundo negro do espaço. Eram
milhões, milhões sem conta de vidas luminosas esfarinhadas nas profundezas do
infinito.
E pela primeira vez, pela primeira
vez surgiu dentro de mim, feita a mim mesmo, esta interrogação: - Quem criou
tantos mundos, quem criou tanta grandeza?
A noite abria pela imensidade a
opulência do seu mistério constelado. A via láctea estendia-se como larga tira
de cambraia desenrolada pelo céu. Eu bem sabia que tudo aquilo eram astros, há
muito que sabia que eram mundos aos milhões, aos trilhões, mundos sem conta,
cada um deles com a sua órbita, o seu ciclo, as suas leis, a sua vida própria,
mas só naquele momento me veio à lembrança pensar na grandeza e no poder de
quem os criou.
E que era a via láctea, tão vasta,
com a sua multidão de mundos, diante da vastidão do espaço? Um incidente
insignificante, um fiapo de luz, um punhadinho de areia, um nada. Outras
nebulosas mais extensas, mais espessas, mais numerosas, com multidões maiores
de sóis, e que meus olhos não viam, brilhavam pela amplidão do infinito. E que
eram elas no espaço?
Outros incidentes, outros nadas
proporcionalmente à vastidão que as encerrava. Quem tinha podido fazer aquilo
tão vasto? quem tivera tal onipotência para criações tão onipotentes?
E eu sabia, há muito tempo que
sabia, da movimentação de todos aqueles mundos, do dinamismo eterno da vida
celeste. Mas que força seria essa que os movia, que os equilibrara, que os
formara, que formara esse conjunto surpreendente de sistemas, essa harmonia
admirável de leis?
O Acaso? O Nada? Eu? Alguém dos meus
iguais? Alguém dos meus semelhantes?
E o primeiro raio de luz fulgiu-me
no Espírito para a compreensão de Deus.
Quando o orgulho se abate, Deus nos
entra imediatamente na consciência. O meu orgulho havia derruído
fragorosamente, como uma torre velha que tomba pela ruína dos alicerces. Que
era da minha suposta grandeza ante tudo aquilo? Se me supunha grande na Terra e
a Terra era um nada comparado ao Sol, o Sol um grão de areia no meio da
nebulosa a que pertence, essa nebulosa um incidente em relação a milhares de
milhões de outras e essas outras verdadeiros nadas diante de outras
aglomerações de Sóis e, estas, pequeninas ilhotas na imensidade sideral e cada
uma dessas insignificantes unidades constituindo grandezas imensuráveis,
separadas uma das outras por distâncias que eu nunca poderia calcular, que
diabo! de que tamanho era eu, de que tamanho era a minha grandeza em comparação
com aquilo tudo? Uma migalha. Qual migalha! Um grão de areia. Qual grão de
areia! Um átomo, ou a milionésima parte de um átomo, se o átomo pudesse ser
suscetível de divisão.
Finalmente compreendi, compreendi
felizmente a minha pequenez. Eu não era nada, rigorosamente nada.
O Coelho da fábula não quis mais
voltar ao buraco onde era grande, e rei. Preferiu ficar aqui fora, pequenino,
humilde, mas sob o banho lustral do sol que ofuscava, ante a paisagem rutilante
que o conservou em transporte.
Deu-se comigo a reprodução da
fábula. Hoje me dói e até vergonha me faz ter vivido tanto tempo nas trevas da
toca.
E quanto mais os dias passam, quanto
mais entro na compreensão do poder da Divindade, mais pequeno me julgo, porém
mais feliz me sinto.
Poder-se-á dizer que essa
compreensão da Divindade tanto me podia ter sido dada pelo Espiritismo, como
por qualquer outra doutrina deísta. É possível.
Mas é ao Espiritismo que tenho que
agradecê-La, porque foi ele quem ma deu.
O
Deus do Espiritismo é o mesmo Deus das outras doutrinas, está claro. Mas é o
Deus
na
sua plenitude, visto através de sua onipotência, de sua pureza, de sua bondade,
de sua piedade
e de sua misericórdia; o Deus que perdoa e consola, que não tem decisões
implacáveis, que não tem infernos para penas eternas; o Deus que castiga, mas
não se vinga e que, quando castiga, é aos indivíduos e não às gerações; o Deus que proporciona o adiantamento do mais indigno dos culpados; o Deus que criou
encarnações sucessivas para a purificação dos Espíritos; o Deus que dá a todos
o mesmo grau de luz, desde que atinjam todos ao mesmo grau de pureza.
Esse Deus soube-me e sabe-me melhor
à alma, meus senhores, esse Deus entrou-me de um só fluxo no Espírito. Esse
Deus eu compreendi, esse Deus eu compreendo.
*
Hoje considerando as coisas,
meditando sobre o tempo que passou, é que vejo o que havia de ridículo e de
caricato no materialismo que me encheu tão longo período de vida. Eu
não era materialista, não era coisa nenhuma. O que havia em mim era muito de
pedanteria e de empáfia.
Meteu-se me na cabeça que um homem
superior não podia nem devia acreditar em poder divino e disso partiu toda a razão
de ser da minha atitude. Convenci-me de que era criatura ilustre, julguei-me na
obrigação de destruir a Divindade. Iludia aos outros e a mim próprio. Talvez
aos outros não conseguisse iludir. A mim, a vaidade conservou-me por muitos
anos em crise delirante.
A verdade é que de materialismo não
entendia nada, não tinha sequer o preparo básico, a cultura necessária para firmar
convicção.
Conta-se por aí uma anedota que se
pode perfeitamente aplicar ao meu caso.
Estava um velho vigário na igreja
quando, certa vez, se chegou um rapaz de ar atribulado, que queria a toda
pressa confessar-se. Tinha um pecado horrível para ser absolvido. O padre
levou-o pressurosamente ao confessionário.
- Fala, filho, fala. Dize o teu
pecado, que a misericórdia divina te absolverá.
O rapaz ficou silencioso, como sob o
peso formidável da sua culpa.
- Mataste? perguntou o sacerdote.
- Não.
- Roubaste?
- Também não.
- Profanaste o lar alheio?
- Nunca.
- Mas que pecado é o teu? interrogou
o velho vigário intrigado.
O moço deu um suspiro, um profundo
suspiro:
- Padre, o meu pecado é um só, um
único, mas um pecado enorme, horrível, colossal.
- Fala, filho, fala.
O rapaz baixou a cabeça, deu outro
suspiro e desembuchou:
- Padre, o meu pecado é este: sou
orgulhoso, orgulhoso como não há ninguém no mundo, orgulhoso como ninguém foi
ainda na vida. Vejo tudo e tudo abaixo de mim. Os homens, quaisquer que eles
sejam, por mais ilustres e por mais cultos, por maior autoridade que tenham,
para mim não valem nada; julgo todos e todos inferiores à minha pessoa. E isso
me dói, padre, isso me faz sofrer. É um pecado que me pesa como um fardo. Não é
verdade que é um grande pecado?
O vigário sorveu uma pitada, batendo
pausadamente a cabeça:
- E é! O orgulho é um pecado muito
feio.
Mas vem cá, meu filho, que razões
tens para todo esse orgulho? És rico?
- Fui sempre pobre, muito pobre,
respondeu o moço.
- Mas naturalmente és de alta
estirpe, os teus pais são nobres...
- O meu pai é o açougueiro ali da
esquina.
- É que talvez as mulheres te
suspirem; elas certamente te disputam, como se disputa um
tesouro.
- Nunca mulher nenhuma ergueu os
olhos para mim.
- Então a razão é outra: é que tens imensa
cultura, um grande nome conquistado nas letras
ou na ciência.
- Desde que saí da escola primária
nunca mais abri um livro.
O padre ergueu-se.
- Vai, meu filho, vai para casa,
sossegado. Não tens nenhum pecado. Não és orgulhoso, nunca foste orgulhoso. O
que tu és é bobo.
A anedota é feita sob medida para o
meu caso. Eu não era materialista, nem sabia o que era materialismo. Era apenas
um idiota, enfeitado de penas de pavão, que vivia a pavonear originalidade à
custa das penas alheias. Narrarei somente dois casos para mostrar o cunho
insincero das minhas convicções de incredulidade.
Era no período mais rude, no mais
culminante período da minha crise materialista. Eu repousava
uns meses no povoado matuto em que nasci. Uma noite, a dois quilômetros de minha
casa, morreu um velho roceiro que o povoado inteiro estimava. Na roça, a morte
de um
vizinho é sempre um acontecimento. É dos hábitos ir todo o mundo para a casa do
finado, fazer o que lá se chama o “quarto de defunto”.
Fui, como toda gente, e lá fiquei
até duas da madrugada. Às duas da madrugada despedi-me para sair. Queria voltar
para casa, para ferrar o sono. Quando me despedi, no terreiro, de uns matutos
que ali palravam, um deles me perguntou com interesse:
Aonde vai?
Para casa, dormir.
Sozinho, por esse caminho?
Porque não?! Não sou homem?!
A Maria, uma mulata que me conhecera
em menino, disse com a sua voz arrastada, num tom de pouco caso:
- Está aí uma coisa que eu duvido.
Vossa mercê deixar o defunto estirado no meio da casa e ir embora por esse
caminho, sozinho, com um luar branco como esse, hoje, sexta-feira, dia em que
as almas andam soltas! Está aí uma coisa que eu duvido e faço pouco. Vossa mercê
volta!
Senti, de súbito, um choque.
Arrepiou-se-me a pele, arrepiaram-se os cabelos. Respondi de cara amarrada:
- Serei alguma criança?!
Um sertanejo disse, em galhofa, no
meio do terreiro:
- Isso de alma do outro mundo, sinhá
Maria, é para nós, matutos, que não lemos nos livros. Seu doutor não acredita.
Elas não bolem com ele.
- Ele volta, repetiu a Maria,
calmamente, a fumar o seu cachimbo.
Parti. Não dei duzentos passos. O
luar estava de uma alvura de espuma de sabão. Não há nada mais
misterioso que o luar, por noite velha, na roça, caiando aqueles caminhos
solitários.
Não sei que impressão foi aquela que
se apoderou de mim, esfriando-me os ossos, tolhendo-me os pés. Não dei duzentos
passos, não dei. Um medo...
É crença no sertão que quem começa
um “quarto de defunto” deve terminá-lo; não deve nunca deixar o cadáver no meio
da casa e ir para outro lugar. A alma do finado nos perseguirá pelo caminho.
Mas eu era materialista, senhores;
não acreditava nem podia acreditar em almas do outro
mundo.
O que é certo é que não pude dar
duzentos passos. A brancura da lua, a solidão da estrada, os galhos e as folhas
das árvores espelhando o brilho do luar, o pio das aves noturnas, o vento que
ciciava, tudo, tudo me infiltrou uma tal mudança, um tal temor, um frio, uma
compressão no peito, uma tonteira na cabeça, que voltei, voltei, senhores,
voltei às pressas para a casa do defunto, onde havia gente, muita gente, e
gente viva.
Fui recebido pelos roceiros com uma
gargalhada de troça.
A Maria, com o seu cachimbo na boca,
deliciou-se com o meu fiasco, soltando uma baforada de fumo:
- Eu sabia, eu sabia que ele
voltava. Essa gente que estuda é toda assim: da boca p'ra fora
- uma valentia; mas na hora, na hora da coragem - cadê?
Passei a noite inteira envergonhado
da minha covardia. Como fora aquilo? Ninguém estava mais escandalizado do que
eu próprio. E as minhas convicções materialistas e a sinceridade do meu
materialismo?
Procurei explicar o fato como
resultado da educação que recebera em criança. Eram remanescentes de
superstições matutas que me tinham ficado na lembrança e que, agora, por uma
crise de nervos, despertaram do seu estado latente.
Pensam os senhores que o fiasco
serviu para que eu me corrigisse?
Ao contrário; desembestei. Foi a
quadra mais furiosa de incredulidade que até hoje tive. Li, devorei os mais
festejados paladinos da Matéria e repeli com fúria os propagandistas da
Espiritualidade.
O segundo fato não é menos edificante,
para aquilatar-se a palhaçada do meu Materialismo.
Uma vez... Isto foi no porto de
Maceió, há muitos anos. Eu seguia para o Maranhão, como
deputado ao Congresso Estadual. Era meu companheiro de viagem até o Ceará esse
maravilhoso e resplandecente poeta que é o Bastos Tigre.
Em Maceió, o Bastos Tigre era
esperado pelo
cunhado, o Júlio Auto, também lindo poeta, com um esplêndido jantar de festa.
Convidaram-me para ir à terra. Recusei. Qualquer coisa me dizia aqui dentro que
eu não devia descer. Mas tanta foi a insistência que senti grosseira a recusa.
Fui. A saída do vapor estava marcada para as seis da tarde, mas o vapor era o
Baía, do Lóide e o Lóide, desde os velhos tempos, sempre primou pela impontualidade.
O jantar começou às cinco horas. Eu
estava numa inquietação de nervos impressionante. Não sei o que me dizia que
íamos perder o navio. O Bastos Tigre, esse estava de uma fleuma e de uma
serenidade felizes, a brincar, a pilheriar, a fazer trocadilhos. Então eu não
via que o vapor era do Lóide e no Lóide não se tinha a noção do tempo?! Não
vira a saída retardada nos outros portos?! Nem à meia-noite levantaríamos
ferro!
Mas a excitação não me deixava. Cada
vez mais os nervos se me tornavam vibrantes. Sentia, a verdade é que eu sentia,
uma força interior arrastar-me com presteza para bordo. Às cinco e meia, a minha excitação havia
impressionado a todos na casa. Apressou-se a conclusão
do jantar. Tomamos o bonde às pressas. Ao chegarmos ao porto, voltavam de bordo
os escaleres e o paquete começava as suas primeiras manobras de saída.
Procurou-se um escaler ali na praia.
Não havia. Afinal apareceu um, mas o catraeiro não tinha remos.
- Vai-se à vela.
Mas não havia vento. Assim mesmo
entramos no barco.
O vento que soprava era um nada que
não enchia sequer a vela. O catraeiro fazia esforços sobre-humanos para
utilizar-se daquele vago sopro de brisa que passava sutilmente.
A muito custo aproximamo-nos do
vapor. Já ele se movia lentamente, em manobras.
O quadro nunca mais se me apagou da
memória. Vejo a amurada de bordo cheia de passageiros que saúdam alegremente a
nossa aproximação.
- Mandem parar! mandem parar!
gritávamos do escaler.
Mas, nesse instante (aí começou a
tragédia) o vento soprou rijamente. A vela encheu-se, o barco ganhou impulso e
foi colar-se ao alto costado do vapor. Compreendemos todos, num relance, a
desgraça aos nossos olhos. Íamos morrer.
Só havia dois remédios ali: ou
afastar o escaler do costado do navio, ou parar o navio. De outra maneira
seríamos miseravelmente colhidos, tragados, esmigalhados pelas hélices em
rotação.
No escaler éramos oito. Esforços
incríveis fizemos para nos afastar do paquete. Era demais para as nossas
forças.
Lá em cima, na amurada, os
passageiros compreenderam, alarmados, a gravidade do perigo. O quadro nunca
mais me saiu, em suas mínimas minúcias, da cabeça. Vi muita gente a
correr loucamente para a ponte do comando, a suplicar aos gritos que parassem o
navio.
Segundo a segundo, instante a
instante, a desgraça se avolumava na sua iminência.
Senti a trágica aproximação das
hélices. Era fatal, irremediável, inevitável a morte...
Aí todo o meu instinto de
conservação pulou dentro de mim, acendeu-se-me uma energia desvairada e, numa
fúria, numa descarga, em pé, no meio barco, os braços erguidos, pus-me a
clamar, a gritar, a berrar:
- Para! para! para, pelo amor de
Deus! pelo amor de Deus! pelo amor de Deus!
O vapor não parava. Não parou. O
comandante, um senhor Pedroso, negou-se a fazê-lo.
E o perigo crescia. Estávamos a dois
metros das hélices agitadas. Eu via nitidamente os
turbilhões de espumarada rebojando.
A agonia dos passageiros lá em cima
era horrível.
Chegavam-me aos ouvidos (que
exaltação de sentidos eu tinha naquele momento!), chegavam-me aos ouvidos
gritos, crises nervosas de senhoras.
- Pelo amor de Deus para! para!
continuava eu a gritar num acesso.
Um jato d’água esbate-se me
brutalmente pela cara, sufocando-me. Era a água turbilhonante das hélices, das
hélices que nos iam tragar, que nos iam esmigalhar.
Caí no fundo do escaler,
desacordado. Não sei o que se passou, não sei. O milagre... Quando
abri os olhos, ouvi claramente a voz.do catraeiro, gritando numa vitória:
- Estamos salvos!
Estávamos todos molhados e o barco com
a água pelo meio.
O navio, esse já ia longe, enorme,
esplêndido, iluminado como um castelo fabuloso que tivesse surgido das vagas.
À noite, quando, ainda a tremer, me
pus a reconstruir as minúcias da cena, foi que dei por aquele pormenor importantíssimo:
havia gritado o nome de Deus no momento do perigo.
Outro qualquer levantaria as mãos
para o céu, em agradecimento. Eu - danei-me.
Vejam bem: estava salvo; tinha tido
a morte juntinho de mim na mais inglória e na mais
miserável das tragédias, mas danei-me.
Tive vergonha. Tive vergonha de ter
chamado por Deus naquele transe dramático.
E vejam até onde pode chegar a
vaidade alucinada de um homem. Tive vergonha, tive vergonha do juízo que podiam
estar fazendo de mim os passageiros que se tinham ido no vapor. Estavam
certamente a julgar-me uma criatura inferior, uma criatura que acreditava em
Deus e que clamava pelo nome de Deus na hora do perigo.
E aquilo me ficou a remoer o
pensamento por muito tempo. E tão culminante era o meu delírio de grandeza, tão
feroz a vaidade que, meses depois, no Pará, no Teatro da Paz, divisei uma das
companheiras de viagem, com a qual havia feito relações amistosas.
Não fui cumprimentá-la; não quis
aparecer-lhe. Tive acanhamento, tive vergonha, senti-me diminuído. Ela podia
estar lembrada de que eu invocara, em agonia, o nome de Deus e tomar-me por
criatura vulgar.
Vejam os senhores até onde pode ir a
vaidade humana! Vejam que juízo fazia eu de mim e dos outros.
Não se pode ir mais longe em
pedanteria, em loucura, em desvairamente, ou, melhor, em paspalhice.
É de Rui Barbosa aquele conceito
célebre: - Deus fala aos homens pela boca de suas desgraças.
Realmente, é nos períodos de
sofrimentos que a nossa alma se prepara para conciliar-se com Deus.
Uma profissão de fé - parte 2
por
Viriato Correia
Reformador
(FEB) Outubro 1970
(Conferência realizada pelo Dr.
Viriato Correa,
na Federação Espírita Brasileira,
e publicada em “Reformador”
de 15 de Fevereiro de 1925.)
De três ou quatro anos para cá,
aquela intransigência, aquela intolerância, aquela preocupação doentia, de me
julgar um ser superior, modificaram-se.
Por quê? A idade? O estudo?
Influências alheias? Nada disso. A grande luta pela existência, os sofrimentos
da maturidade, que são os sofrimentos mais graves de uma vida.
Eu sentia visivelmente em mim a
atuação de uma força equilibradora. Já ia admitindo opiniões
que me contrariassem, já ouvia com complacência argumentos opostos aos meus, já
respeitava a fé alheia.
Àquele período de agressão
fulminante a tudo quanto era doutrina religiosa, sucedeu um período de apatia,
de profunda indiferença, uma verdadeira calmaria espiritual. Tanto se me dava
que Deus existisse, como que não existisse. Não tomava conhecimento; não me
interessava.
Foi justamente nessa fase que me vi
assaltado por moléstias dolorosas.
A dor tem esta grande virtude -
revela a nossa inferioridade. E, quando nos julgamos inferiores,
abrimos insensivelmente os braços para receber a superioridade da Providência.
Há dois anos, uma crise formidável
de cálculos hepáticos derrubou-me. Tive necessidade de subir os ares felizes da
Mantiqueira, em procura das águas de Cambuquira.
Quando lá cheguei, o meu estado era
gravíssimo.
Para aqueles que não creem, Deus
nunca se apresenta a descoberto - toma sempre a forma de casualidade.
Quis a casualidade que eu em
Cambuquira conhecesse um dos diretores desta casa, hoje o meu excelente amigo
Antônio Fonseca. Quis a casualidade que viajássemos no mesmo trem, que na mesma
sala e em mesas próximas fizéssemos as refeições.
A primeira vez que o vi foi uma semana
depois de chegar à estância d’água, o primeiro dia em que me pude levantar da
cama. Era à hora do almoço. Ao chegar-me à mesa, vi, a dois passos, sentados,
um homem e uma senhora que me cumprimentaram risonhamente, como se fôssemos de
longa intimidade.
Eram ele e a esposa.
Ele ergueu-se, veio até a minha mesa
e indagou demoradamente da minha saúde.
Aquele gesto de cortesia outros
hóspedes me haviam feito no corredor, na sala de visitas e até no meu próprio
quarto.
Mas... caso curioso: nenhum deles me
tocou o coração da maneira que aquele desconhecido acabava de tocar.
Era uma fisionomia diferente das
fisionomias que eu tinha visto naquela agitação de hóspedes,
com uma franca expressão de bondade derramada pelo rosto, uma voz amiga que me
punha à vontade para contar os meus sofrimentos.
Ao terminar o almoço, voltou a
falar-me.
Contei-lhe a tremenda crise de
fígado que me assaltara no trem de ferro, durante doze horas, sem uma cama, sem
um alívio, sem uma medicação. Soubera-o no hotel dois dias depois, disse ele, e
lamentava ter viajado em outro carro, pois se estivesse presente...
- Que ia o senhor fazer?
- Dava-lhe uns passes, respondeu-me
gravemente.
Eu era de tal ignorância em assuntos
espíritas que nunca tinha ouvido aquela expressão. Ele explicou-me a palavra e
revelou-me, com modéstia, a sua mediunidade curadora.
Sorri.
- Lembre-se, disse-lhe, que quando
os cálculos passam as dores só acalmam (e quando acalmam) com fortes injeções
de morfina.
Respondeu-me com uma convicção que
me impressionou:
- Mas o poder de Deus deve ser maior
que o das injeções.
Achei-o interessante. Muitas e
muitas criaturas me tinham falado de Deus com ardor, com
entusiasmo, mas, na voz daquele homem, eu sentia uma força que me chocava, uma
convicção tranquila, uma fé cheia de doçura e consistência.
Aos outros que, anteriormente, me
falavam na Providência, achei-os sempre ridículos; achei aquele interessante. E
mais do que isso - respeitei-o.
À tarde, no jantar, éramos velhos
camaradas. Não o deixei mais. Passávamos horas esquecidas
à mesa, eu a ouvi-lo e ele a expor-me a sua doutrina, a contar-me a consolação que
lhe viera depois de abraçá-la, os novos horizontes que se lhe abriram aos olhos
ao conhecê-Ia. E concitava-me:
- Leia, leia o Espiritismo. Ao menos
por curiosidade.
Prometia-lhe sempre. Logo que
tivesse tempo...
Os meus padecimentos continuavam.
Quase todas as noites velava, estorcendo-me em dores incríveis. Um dia, ouvindo
as minhas queixas, disse-me o Fonseca:
- Se Deus permitir, poderei
aliviá-lo.
- Com os passes?
- Com os passes! respondeu-me.
- Está bem. Dê mos hoje.
Foi aquilo puro gesto de cortesia.
Queria corresponder à gentileza daquele homem, que eu sentia desejoso de
sossegar-me.
A noite veio ele ao meu quarto. Com
as mãos pousadas em minha cabeça, ergueu-se, levantou os olhos para o céu e
começou a orar.
Deu-me uma louca vontade de rir. Mas
olhei aquela fisionomia serena, grave, incendida de fé e havia nela um brilho
tão novo para mim, uma tão alta e comovedora magnitude, que baixei, que fui
forçado a baixar respeitosamente a cabeça, num silêncio profundo.
Recebi os passes. No dia seguinte,
com surpresa senti-me melhor.
E todas as noites, após o jantar era
eu quem convidava o Fonseca a ir ao meu quarto, dar-me
os passes. Mas não havia em mim a mais remota réstia de fé. O que havia era
curiosidade, uma infinita curiosidade por aquele homem e por tudo aquilo.
O Fonseca deixou Cambuquira dias
antes de mim. Uma semana depois que aqui cheguei, vim visitá-lo, lá em baixo,
na livraria desta casa.
Conversámos longamente. Ao
retirar-me, meteu-me nas mãos um volume.
- Leia quando tiver vagar.
Era o Livro dos Espíritos de Allan Kardec. Levei-o para casa.
Passou-se o primeiro mês, passou-se
o segundo. O volume ficou rolando, esquecido, desprezado, pelas estantes, no
meu gabinete de estudo.
Mas nada, na vida, vem senão a seu
tempo. Uma manhã, saí do quarto, apressadamente, para o banho. Ao passar pela
sala de jantar, vi um livro em cima da mesa, ao acaso.
Foi sempre dos meus hábitos abrir
todos os livros que se me deparam aos olhos. Gosto de lhes saber o título e o
autor. Chego a arrebatá-los de mãos alheias, pelo impulso irresistível desse
cacoete indelicado.
O volume que estava sobre a mesa era
o que o Fonseca me havia oferecido. Tive uma ruga
no rosto. Oh! diabo, não era gentil aquilo! o homem oferecer-me a obra com
tanta fidalguia e eu não tinha tido sequer a curiosidade de abri-la.
E fechei o volume. Dei dois passos,
voltei.
Voltei, abrindo novamente o livro.
Abri-o ao acaso. É sempre sob a forma de acaso que Deus se apresenta aos
incréus. Abri justamente numa das páginas de mais alto interesse, aquela em que
Kardec trata da volta à vida espiritual, da separação da alma e do corpo, da
perturbação de certos Espíritos ao deixarem inopinadamente o aparelho em que
moraram na existência terrena.
A página é esta:
“No
momento da morte, tudo é, a princípio, confusão; a alma precisa de algum tempo
para se orientar; fica como que atordoada, no Estado de um homem que
despertasse de um sono profundo e procurasse explicar-se a sua situação. A
lucidez das ideias e a memória do passado voltam-lhe, ao passo que decresce a
influência da matéria, de que acaba de desprender-se, e a medida que se dissipa
a espécie de nevoeiro que lhe obscurece os pensamentos.
O
período da perturbação que se segue à morte é muito variável: pode ser de
algumas horas como de muitos meses e até de muitos anos. Aqueles para quem ela
é menos longa, são os que já em vida se haviam identificado com o seu estado
futuro, pois que compreendem imediatamente a sua posição.
Essa perturbação apresenta
circunstâncias particulares, segundo o caráter dos indivíduos e,
principalmente, segundo o gênero de morte.
Nas mortes violentas, por suicídio,
suplício, acidente, apoplexia, ferimentos, etc., o Espírito fica surpreendido,
admirado e não crê estar morto; sustenta esta ilusão com pertinácia.
Apesar
de estar vendo o corpo e de saber que é seu, não compreende como esteja
separado nele: busca as pessoas que lhe são afeiçoadas, fala-lhes e não percebe
porque lhe não prestam atenção. Esta ilusão dura até ao completo desprendimento
do perispírito. Só então o Espírito se reconhece e fica sabendo que já não
pertence ao número dos vivos. Este fenômeno explica-se facilmente: Surpreendido
inopinadamente pela morte, o Espírito fica aturdido pela brusca mudança que
nele se opera; para ele, a morte é ainda sinônimo de destruição, de
aniquilamento, e, como pensa, vê e ouve, supõe que não está morto. O que lhe
aumenta a ilusão é o ver-se com um corpo semelhante, na forma, ao precedente,
mas cuja natureza etérea não teve ainda tempo de estudar; julga-o sólido e
compacto como o primeiro e, quando lhe chamam a atenção para esse ponto,
admira-se de não poder apalpar-se. Esse fenômeno é análogo ao que se passa com
os sonâmbulos inexperientes, que não creem estar dormindo.
Para
eles o sono é sinônimo de suspensão das faculdades; ora, como veem e pensam
livremente, julgam que não dormem. Certos Espíritos apresentam esta
particularidade, mesmo quando a morte não tenha vindo abruptamente: mas é mais
geral naqueles que, embora enfermos, não pensavam ainda em morrer.
“Vê-se então o singular espetáculo
de um Espírito assistindo ao seu próprio enterro, como se fosse o de um
estranho, e falando disso como de coisa que lhe não diz respeito, até ao
momento em que compreende a verdade.
A
perturbação que se segue à morte nada tem de penosa para o homem de bem, pois
para este é calma e em tudo semelhante à que se segue a um despertar plácido.
Para aquele, porém, cuja consciência não é pura, a perturbação é cheia de
ansiedade e angústias, que aumentam à medida que ele se vai reconhecendo.
Nos
casos de morte coletiva, tem-se observado que nem todos os que morrem ao mesmo
tempo se veem sempre imediatamente uns aos outros. Na perturbação em que se
acham, cada qual caminha para seu lado e só se preocupa com os que lhe
interessam.”
Li tudo isso com sofreguidão, a
respiração opressa, de toalha nos ombros e saboneteira apertada nos dedos. Ao
terminar havia em mim uma sensação estranha de arrepio; um suor gelado
corria-me pelo corpo.
Foram sempre do meu gosto particular
em literatura as páginas fortes, aquelas que se distinguem pelo cunho trágico,
pela originalidade e pela extravagância.
Mas, página nenhuma me sacudira
tanto como aquela. Nem nos contos de Hoffmann e Poe, nem em Zola, nem em Mirbeau,
nem em Dostoiewsky, em ninguém. Cenas horríveis eu próprio sempre vivi na
ginástica de imaginá-las, mas aquelas eram inteiramente novas, inteiramente
inéditas para a minha imaginação.
Reli a página. A emoção não foi
menor que da primeira vez.
Tive vontade de ali ficar para ler
de um trago o livro. Mas o relógio bateu, avisando-me das obrigações na rua. Uma inquietação horrível perseguia-me durante o dia no
trabalho. Só uma coisa me preocupava - voltar para casa e devorar o demônio
daquele livro.
À noite, quando me atirei à leitura,
foi numa ansiedade, numa febre. Muitos livros bizarros, curiosos, extravagantes
têm-me passado pelos olhos, muitos de alto surto dramático têm-me abalado a
sensibilidade nos seus recessos mais remotos, muitos; mas nenhum, nenhum até
hoje me deixou tão forte sulco no Espírito, como aquele de Allan Kardec.
Para mim, tudo ali era novo,
inesperado, chocante, resplandecente.
Com todo o meu materialismo, ou
justamente por isso mesmo, tinha eu da morte um pavor
que me gelava. Quando me passava pela cabeça que um dia, fatalmente, tudo em
mim se ia apagar, que o meu corpo seria metido no fundo da terra, que o meu eu
humano e inteligente desapareceria em podridão, todo o meu ser se arrepiava,
tremendo.
E, caso singular para mim: ao
terminar a leitura do Livro dos
Espíritos, não me havia somente
desaparecido o medo da morte. Eu tinha, tinha sim, a curiosidade da vida de
além-túmulo,
tinha, mais do que isso, um certo desejo de morrer, para fruir os mundos novos, os
mundos rutilantes que Kardec descrevia.
Repeti a leitura e, ao concluí-la,
não era espírita, meus senhores, mas tinha pelo Espiritismo uma atração
irresistível. O que se passava em mim eu próprio não sabia explicar.
Parecia que um véu negro se me
rasgara dos olhos, Parecia que uma vasta janela se me abria diante das retinas,
enchendo-me de claridades. Os homens, as coisas, a vida, o mundo, os mundos,
tudo, tudo era para mim agora diferente. Cheguei a pensar que um outro eu vivia
dentro de mim.
Foi nesse período que uma força
qualquer, que eu não explicava, me conduzia constantemente às portas desta
casa.
Mas, não pensem, senhores, que,
apesar da transformação, aqui entrava com o entusiasmo de um adepto, não;
entrava com as cautelas de um desconfiado.
No princípio, achei que, aqui
dentro, toda gente era maluca. Quando qualquer pessoa, aqui, me falava em
comunicações espirituais, narrando-me com a maior simplicidade este ou aquele fato
espírita de observação própria, duvidava imediatamente da sua integridade
mental. Estaria a falar a sério, ou estaria com a cabeça desvairada?
Mais tarde essa impressão se
modificou. Os homens aqui me causavam surpresa. Ficava silencioso a ouvi-los,
perguntando a mim mesmo, surpreendidamente, como se podia ter tanta convicção e
como podiam acreditar em tudo aquilo de que me falavam.
Por fim, todas aquelas impressões se
transformaram em respeito. Respeitei-os, senhores. Respeitei-os, tocado pelo vigor
da sinceridade que lhes senti, sacudido pelo grande sopro de fé, de abnegação,
de desprendimento individual e de altruísmo que observei em cada um deles.
Os da minha maior intimidade aqui
dentro foram o Antônio Fonseca, o Manuel Quintão, o Frederico Figner.
Não sei qual dos três maior surpresa
me causou.
O Fonseca, com a solidez inalterável
de sua crença, a confiança serena na justiça de Deus e aquela resignação
humilde nos mais ásperos sofrimentos, espantou-me desde os primeiros dias. E
quando vi o Quintão, forte, inteligente, vivo, todo alheado do seu eu, na
preocupação constante da dor alheia, confiando tranquilamente e doutrinando
como confiava, arregalei muitas vezes os olhos surpreendidos. E o Figner!
Judeu, de uma raça milenarmente hostil ao Cristianismo, milenarmente
mercantilizada, a falar com entusiasmo dos textos do Evangelho, a curvar a
cabeça diante da grandeza do Cristo, a correr a cidade de ponta a ponta,
gastando do seu bolso, sem dizer a ninguém o que gastava, para levar aos tetos
miseráveis a alegria do pão e o alívio dos medicamentos!
Foram essas três figuras que me
deixaram na alma sulcos imperecíveis.
E foi, vendo-os, observando-os,
analisando-os, que senti desejos de conhecer mais de perto
a doutrina maravilhosa que tão fundamente transformava os homens numa florescência
admirável de resignação e de bondade.
Uma
profissão de fé
- parte
3
por Viriato
Correia
Reformador
(FEB) Novembro 1970
A primeira impressão violenta de
simpatia já eu tinha tido com a leitura do Livro
dos Espíritos. Tudo mais era fácil. E fácil tudo mais foi.
Passei um ano inteiro a ler, a
observar.
Quando abri os olhos, tinha diante
deles a imensa rutilação da fé divina. Punha a cabeça fora da toca e, como o
Coelho da fábula, não mais quis voltar a enfurnar-me na treva.
E vede, vede, meus senhores, quanta
casualidade em tudo isto.
A casualidade levou-me a Cambuquira,
ao mesmo tempo que levou o Antônio Fonseca.
A casualidade fez-nos morar no mesmo
hotel e ter vizinhas as mesas. O acaso inspirou-lhe interesse pelos meus
sofrimentos e inspirou-nos simpatias mútuas. Ainda o acaso me forçou a
respeitar nele (aludo aos passes) aquilo que, decerto, eu acharia ridículo em
outra pessoa.
Ainda a casualidade fê-lo meter-me
nas mãos o livro de Kardec e inspirou-me a obrigação de lê-lo, para
corresponder à gentileza da oferta. Ainda
a casualidade moveu alguém a colocar o livro na ponta daquela mesa, no momento
em que eu passava para o banho.
E só o acaso, o eterno acaso (é
este, para mim, o ponto mais frisante da narrativa), me fez abrir o livro
justamente naquela página, aquela que vos li.
É este o ponto mais curioso de tudo
isto, insisto em afirmar, o ponto a que atribuo toda a minha conversão.
Sempre foram as leituras chocantes,
com qualquer cunho de inédito, com qualquer cunho de novidade, as que mais me
impressionaram.
Se o acaso não me tivesse feito
abrir o Livro dos Espíritos naquela
página, talvez eu nunca
tivesse tido interesse de ler o volume. Se começasse a leitura da primeira
página, sem aquela impressão vibrante que, casualmente, recebi à hora do banho,
é possível que eu não fosse ao meio do livro ou talvez não passasse das
primeiras folhas.
O Acaso sabia que, antes de tudo,
devia inflamar-me a centelha da curiosidade, sabia que
a minha curiosidade, em leitura, se inflama facilmente pelo ineditismo e pela
novidade. Havemos
de concordar, senhores, que o Acaso é uma entidade altamente inteligente.
A maioria das criaturas não compreende
que alguém possa ser espírita sem ter visto as manifestações físicas do
Espiritismo.
No fundo, há uma certa dose de
razão. Os fenômenos das sessões práticas são às vezes de tal maneira
impressionantes, que solidificam a convicção de que existe uma outra vida que
não esta vida tangível em que nos arrastamos.
Dos casos práticos do Espiritismo
sei contar muito pouco. O que me fascinou foi a doutrina, pela magnitude de sua
beleza, pela sua suprema doçura tonificadora das almas, pelo bálsamo infinito
que derrama sobre as dores.
Nos primeiros dias da minha
iniciação, tive a curiosidade de assistir a trabalhos de mediunidade. A
decepção foi enorme. À mesa sentavam-se criaturas de sisudez indiscutível e de
sinceridade profunda; mas, apesar de tudo, foi enorme a minha decepção.
Porquê? Não acreditei nas mediunizações,
não acreditei nas figuras atuadas pelos Espíritos. Achei tudo aquilo muito
próximo da comédia. Parecia-me que os transes eram fingidos.
Tinha tido um dia infeliz. Os
Espíritos que se manifestaram eram todos de uma inferioridade alarmante.
Foi só mais tarde, mais de um ano
depois, que voltei a assistir a trabalhos práticos. Ali, fui mais feliz; ali,
pela palavra dos altos Espíritos, tive a boa sorte de mais fortificar a minha
crença.
Observações pessoais que possam
impressionar, creio não ter nenhuma para contar. Faltam-me
totalmente qualidades mediúnicas. Não ouço, não vejo, não escrevo, não sinto. Parece
que Deus me experimenta. Quer ver até onde vai a constância da minha fé,
negando-me as provas materiais em que possa alicerçá-la. Quer que eu creia no
sol sem vê-lo, unicamente por lhe sentir a claridade.
Em dois anos de iniciação espírita,
poucos, pouquíssimos são os fatos que posso contar de observação individual.
Comigo pessoalmente quase nada se tem passado.
O primeiro fenômeno que,
diretamente, se passou comigo deixou-me um abalo profundo.
Tinha eu, há tempos, uma pretensão
qualquer que, na época, era para mim de importância capital. Todos os meus
esforços, todos os meus pensamentos, todos os meus movimentos eram feitos com
ardor para consegui-la. E tudo e tudo conspirava contra mim. Transpunha um
obstáculo e adiante encontrava outro, galgava penosamente uma cumeada, julgando
lá em cima encontrar os elementos de realização, e logo outra cumeada
inacessível se me apresentava aos olhos. Não dormia. Passava noites inteiras
velando, ansiando, a medir dificuldades insuperáveis.
A fé, porém, tangia-me para a
frente. E, por fim, essa me faltou. O desânimo começou a dominar-me.
Certa noite, fui convidado para uma
sessão espírita. Era uma das noites do meu maior desespero.
Presidia a sessão a minha querida
amiga, a senhorita Elisabeth Hamont, médium auditiva, psicográfica, algo
vidente. Quase ao terminar os trabalhos, lançou ela os olhos em derredor da
sala, à procura de alguém. Afinal, pronunciou o meu nome.
- O senhor conhece alguém que se
chame Manuel? perguntou-me.
Manuel! o nome era tão comum!
- Conheço várias pessoas, respondi.
- Alguém que já desencarnou e que se
diz seu parente.
- Meu pai! exclamei arrepiado.
- Está ele aqui ao meu lado. Pede-me
lhe diga que não desanime, pois o que o senhor deseja Deus lhe dará na
segunda-feira.
Vibrei; meus cabelos arrepiaram-se.
Era uma sexta-feira. Apenas três
dias de espera.
Passei o sábado e o domingo em
brasas de ansiedade. Ao amanhecer de segunda-feira, era como uma pilha
elétrica. Ia realizar-se, enfim, o que eu queria. Saí para a rua com a alma a
cantar, todo nas flamas de uma vitória.
Passou-se a metade do dia. Nada.
Entardeceu. Nada. Começou a anoitecer. E nada. E
nada.
Crescia-me a inquietação
desoladoramente.
Às dez da noite, meus nervos
causavam dó. Mas o dia não havia ainda terminado. Restava-me um vago raio de
esperança.
Os relógios deram meia-noite. Nada.
Nada. Nada.
Quando já madrugada, atirei-me na
cama: era um frangalho. Ao acordar, o desânimo avassalava-me.
Corri à médium, minha amiga. Ela
estava inquietíssima.
- Mas eu vi, repetia, vi e ouvi. As
palavras que lhe disse foram as palavras que ouvi.
Passei esse dia desesperadamente.
Uma lufada de descrença soprou-me o Espírito. Tudo aquilo era uma farsa.
E a semana foi passando. Vi
claramente diante de mim a impossibilidade da realização. O melhor era deixar
aquilo de vez. E, no domingo, estava decidido a renunciar. Mas,
amanhece a outra segunda-feira e inesperadamente, inesperadamente sim! de onde eu
não contava, vem-me aquilo que eu pretendia. Tudo se realizava na
segunda-feira. Até
hoje não sei explicar o fato. Porque a promessa não veio na primeira
segunda-feira e veio na segunda? Ter-se-ia enganado na contagem do tempo? É
possível. O tempo nas regiões
siderais não é o mesmo tempo terreno. Ter-se-ia enganado o médium? Teria ouvido mal?
É possível. Ou teria Deus transferido de uma segunda-feira para outra
segunda-feira, a fim de experimentar-me? Não sei. Os desígnios da Providência
são insondáveis. O que é certo é que tive o que pedi, o que é certo é que tive
o que me foi prometido.
De outra feita (passou-se isto aqui
na Federação), surgiu-me na cabeça uma determinada tentativa. No começo,
pareceu-me simplíssima, mas, à proporção que fui trabalhando para realizá-la,
os obstáculos apareciam. Quando abri os olhos, tinha verdadeiras muralhas
diante de mim. Era impossível ir adiante.
Mas o caso, que era material no
começo (isso sempre acontece na vida dos homens trabalhadores), já se tinha
transformado num caso moral. Estavam empenhados o meu nome e a minha honra.
Eu não podia recuar. Mas não podia
prosseguir. Faltava-me tudo, tudo, para ir à frente.
Atirei-me como um doido, como um
desesperado, à procura dos elementos.
Bati a dezenas de portas que supus
abertas à minha entrada. Encontrei-as com trancas de ferro.
A situação era dessas em que não se
tem o direito de ficar parado. Revolvi terras e mundos e tudo falhou. Houve um
dia em que tive medo de enlouquecer. Ou em vinte e quatro horas decidia aquilo,
ou estaria completamente perdido. Porém, não tinha mais nenhum passo a dar,
nenhuma porta a bater.
Há ocasiões em que o consolo de um
amigo vale pela própria vida. Eu precisava de alguém a meu lado. Entrei aqui
com a alma trespassada. O Manuel Quintão ia chegando. Contei-lhe
por alto o caso.
- Que queres que eu faça?
perguntou-me com tristeza, emocionado pela gravidade da minha situação.
- Quero que peças a um Espírito que
me aconselhe. Pede ao Espírito de Bezerra de Menezes.
Eu tinha pelo Espírito de Bezerra de
Menezes uma afeição particular. Tempos antes, por intermédio do mesmo Manuel
Quintão, ele me havia dado uns conselhos salutares, com uma sutileza
comovedora.
Diante do meu pedido, o Quintão
ficou pensativo, concentrado, como se não soubesse se devia fazer ou não.
Afinal, levantou a cabeça, como se
tivesse recebido uma inspiração:
- Vou pedir. Sobe.
Subi. Fiquei à espera em um dos
gabinetes do primeiro andar, contíguo àquele em que o médium se trancou.
Passaram-se dez minutos. O Quintão
voltou sereno, sorridente, mas no seu rosto estavam visíveis os traços da funda
concentração em que estivera.
- Lê, disse, entregando-me um papel.
Era a comunicação. Era um jato de luz.
Era
a esperança. Conservo-a entre os meus papéis como um tesouro.
Começava por uma censura: eu devia
ter medido melhor as minhas forças. Mas, concluía, nem tudo estava perdido. “Há uma porta em que ainda não bateste. Vai,
conta tudo, fala a verdade, que ela se abrirá com o favor de Deus.”
Curiosíssimo. Até àquele momento,
julgava que não havia mais porta nenhuma para que eu batesse. Mas, mal concluí
a leitura, vi, vi num relâmpago, como se alguém me inspirasse, a porta a que me
esquecera de bater.
Uma comunicação daquelas, vinda
através de um médium escrupuloso como aquele, era para deixar tranquilo, mesmo
um espírita incipiente como eu.
E fui onde a inspiração me mandou,
fui sereno, confiante, seguro de que teria a consumação do meu desejo.
Encontrei, de fato, as portas abertas de par em par.
Tudo se realizou, graças a Deus.
*
O terceiro fato não é menos edificante
que os outros dois,
Passou-se há poucos meses, em
Setembro último, no Maranhão.
Sofro de uma relaxação dos músculos
do braço direito, na região do úmero, motivada por várias luxações. No mesmo
tempo de estudante em Pernambuco, luxei o braço e, de lá para cá, os
deslocamentos se tem repetido vinte e duas vezes. Qualquer jeito mau estou com o
úmero fora do lugar. E a redução da luxação é sempre difícil, sempre laboriosa,
sempre demorada. Sofro dores horríveis, tremendas, culminantes.
Uma noite de Setembro, dormia,
talvez agitadamente. Parece me que me deitei sobre o braço, que fiz algum jeito
mau. O que é certo é que, num grito, acordei com o braço luxado. Alarmei as
pessoas da casa. Aquela hora, no Maranhão, um médico, como aqui, como em
qualquer parte, é dificílimo. Foi-se à procura do médico. Fiquei sentado à
beira da cama, com o braço arriado esperando. Eram duas horas da madrugada.
Sofrendo dores intensas, pus-me a
imaginar as que teria de sofrer quando o médico chegasse, quando fosse o
momento laborioso da redução do deslocamento.
Era a vigésima segunda vez e bem
sabia o que me esperava.
Nesse instante estava sozinho no
quarto. Veio-me à lembrança o nome de Bezerra de Menezes. Fora ele, na Terra,
na última encarnação, um médico de fama, um operador notável. E do que eu
necessitava era de um médico.
E concentrei-me. Concentrei-me e
pedi com todas as minhas forças.
Não sei quantos minutos estive em
concentração. Não mais de cinco. Subitamente ouvi um som, o som que as rolhas
de garrafas de cerveja produzem quando saltam, o som do úmero deslocado que
volta a seu lugar.
Levei com rapidez a mão esquerda à
região doente. A luxação estava reduzida. Dei um salto da cama, estatelado.
Quem se não surpreenderia? Uma luxação escapo-umeral não a reduz quem quer.
Tenho tido médicos habilíssimos ao meu lado, durante horas, em esforços
exaustivos. Uma luxação redu-la quem sabe, quem tem prática e isso com muito
trabalho, com jeitos próprios, movimentos particularíssimos, sem falar nas
dores cruciantes do doente.
A minha ali estava reduzida sem um
movimento, sem o mais leve movimento e sem dor.
Quando, vinte ou trinta minutos
depois, o médico chegou, arranjei-lhe uma mentira. Contei-lhe que fizera
esforços tais que o braço voltou ao lugar. De que serviria dizer-lhe a verdade?
Ele não acreditava. E, além de tudo, o rapaz era meu amigo e podia
penalizar-se, julgando-me maluco.
*
E, por estes exemplos e por outros e
pela observação de fatos da minha vida e da vida alheia, em dois longos anos de
meditação, caldeou-se em minhalma a mudança que hoje publicamente vos venho
dizer, atendendo ao honroso convite da diretoria desta casa.
O que aqui vim fazer, meus senhores,
não mais do que a minha profissão de fé.
De qual fé? Fé espírita? E serei um
espírita? Não, não sou. Alguém poderá considerar-me
espírita? Não, não pode. Faltam-me as qualidades substanciais, as virtudes
básicas do qualificativo.
Ser espírita não é só dizer que o é.
É preciso sê-lo na essência. Ninguém é espírita pela boca e sim pela alma.
Ser espírita é ter a fé acesa como o
sol e ter a fé maior que o próprio mundo. É ter o apostolado
do bem, é ter o sacerdócio da dor.
Ser espírita é perdoar. É receber a
ofensa com humildade, porque em cada humilhação que se recebe está a graça de
Deus para nos exaltar.
Ser espírita é ter fraternidade. É
ver em cada criatura, em cada homem, um irmão de dor,
em cada irmão um companheiro que precisa de apoio e de amparo. É ver nos
humildes, nos que nos parecem inferiores, a nossa própria inferioridade.
Ser espírita é renunciar. É
renunciar aos gozos terrenos em bem da ventura que está lá acima, nas esferas
iluminadas. É renunciar ao gozo próprio, em bem do alívio alheio. É ter a
volúpia da dor, por saber que, em cada sofrimento, está o desconto de uma
dívida. É ver na
dor um bem, é ver no infortúnio uma graça, é ver na desventura um prêmio. É
sorrir quando sofre, porque quem sofre caminha para Deus. É agradecer a
amargura, como se agradece o mimo de uma flor. É sair para a rua, sufocando gemidos
próprios , para consolar o gemido alheio.
Ah! São virtudes muito altas, virtudes
augustas e quase intangíveis.
Tenho-as? Eu próprio reconheço que
não.
Sou espírita ? Não sou. Tudo me
falta, em essência, para sê-lo.
Sou apenas uma alma pecadora,
deslumbrada pela beleza divina, tonta de luz, que vive a bater as asas tontas
na imensidade, a pedir, a suplicar à Providência que lhe faça crescer
infinitamente a fé, que lhe dê amor para perdoar, que lhe dê ternura para
praticar a fraternidade, que lhe dê coragem, muita coragem, para renunciar, a
fim de poder seguir o caminho da luz, o caminho da verdade, o caminho da
perfeição, aquele caminho que leva a Deus.
(Esta
conferência, cuja publicação, em nossa revista iniciámos em nosso número de Setembro
p. p. foi pronunciada pelo Dr. Viriato Correa, em 8 de Janeiro de 1925, aos 42 anos de
idade, época em que atingia precisamente a metade da sua longa e proveitosa
existência, como escritor e professor.
Viriato Correa desencarnou em 10
de Abril de 1967, aqui na Guanabara, numa segunda-feira.
Em 1911 foi eleito deputado
estadual, no Maranhão; em 1927, deputado federal pelo mesmo Estado que lhe
serviu de berço. Era membro da Academia Maranhense de Letras e do Instituto
Histórico e Geográfico do mesmo Estado, e, em 1938, foi eleito para a Academia
Brasileira de Letras.)
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