sábado, 27 de junho de 2015

Paulo perante Festo e Agripa

                A semelhança de formigueiro em movimento, naquela tarde, apreciável massa humana dirigia-se para o auditorium da Corte Provincial, em Cesareia.

            Pórcio Festo, governador de César, na Província, queria iniciar sua gestão através de bombásticas festas. E para isso convidou Herodes Agripa, rei dos judeus, e sua mulher Berenice. Queria propiciar-lhes a oportunidade de se encontrarem com o ex-Doutor da Lei Saulo de Tarso, no momento Paulo, prisioneiro em Cesareia, aguardando sua ida a Roma, pois que houvera apelado de sua situação para César.

            Após concorridas brigas de anões e bailados, quando bailarinas licenciosas passavam esvoaçando véus transparentes nas fisionomias de convidados lúbricos, fez-se silêncio majestoso. Discreta ordem de Festo provocou a abertura de uma porta, rente à tribuna, onde se sentavam convidados distintos. Dela saiu o Advogado dos Gentios acompanhado de alguns centuriões. Os flagelos que sofrera nos dois anos de prisão externavam-se na fisionomia abatida do filho de Tarso. Quando os soldados lhe retiraram as algemas, elas caíram no suntuoso chão de mármore, num seco ruído que contrastou com o tilintar nervoso dos adereços de Berenice. Significativo contraste: ele, liberto no espírito, estava sob algemas; ela, que era prisioneira de muitas paixões em vida dissoluta, encontrava-se corporalmente livre.

            Ilustrado pensador dissera, certa ocasião, que o aplauso das massas é pronto e demorado, na razão inversa do valor. Por lhes faltar visão espiritual e qualidade apreciativa, quase sempre incensam e consideram as coisas fora de uma realidade justa e substancial.

            Foi a massa que, em determinado dia, numa grande praça, pediu a Pilatos a liberação de Barrabás e a condenação do Cristo. Pórcio Festo objetivava fazer Herodes ouvir a palavra do antigo Doutor da Lei, discípulo de Gamaliel, porque sabia que Agripa ardia por conhecer aquela figura genial.

            Dirigiu-se a Paulo determinando fizesse, ele mesmo, sua defesa.

            Levantou o ex-rabino os olhos, observando, atentamente, o imenso público. Sabia-se situado em momento importantíssimo do próprio destino. Aquela era a oportunidade de que dispunha para dirigir o verbo a um rei e a um governador, exaltando a figura do meigo Rabi da Galileia.

            Começou por mencionar o período saudoso e distante da meninice e da juventude, quando aprendera a própria Lei no Sinédrio. Depois, as graves questões que sempre surgiam, desafiando-lhe a argúcia, para as necessárias soluções religiosas e político-administrativas.

            Viera aquele dia em que ele recebera credenciamento do Tribunal da raça, para dissolver, punindo se preciso fosse, célula de seguidores de Jesus em Damasco, chefiada por um tal Ananias. Acompanhado de alguns cavaleiros, tomou o rumo do deserto, sofrendo o rigor de suas areias quentes e do escaldante sol.

            Após caminhada de quase dia e meio, quando a distância se desenhavam as abóbadas cinzentas dos prédios da grande cidade, súbito acontecera o indefinível! ... Não soubera dizer se o céu se tornara ainda mais claro. Um lapso dos sentidos fizera-o cair do cavalo. Sentira-se cego, de joelhos nas areias do estendal, e depois o céu como se fendera, e um vulto maravilhoso à sua frente se apresentava com os cabelos à nazareno e o corpo como que estruturado em névoa radiosa! ...

            Dirigiu-lhe o visitante olhar inesquecível, perguntando-lhe:

            - Saulo! Saulo! Por que me persegues?!..

            Impressionara-se o ex-Doutor da Lei, porque a sua voz era humilde e majestosa, terrível e bela!

            Conseguindo sair da perplexidade, inquiriu:

            - Quem sois vós, Senhor?

            O ser luminoso lhe respondeu:

            - Eu sou Jesus, a quem persegues ...

            Fato significativo: a ovelha perseguida vinha ao encontro do lobo insaciável!

            Em seguida, foi-lhe recomendada a ida a Damasco, dando-se o encontro dele com o próprio Ananias e a restauração de sua visão.

            Posteriormente, a integração na comunidade cristã humilde, os primeiros contatos, as primeiras orientações, o início de integração na tarefa de luz.

            O Apóstolo dos Gentios, ali mesmo, para Festo e Agripa, levantou as profecias que falavam do Messias e seu mestrado de amor, reportando-se a Isaías, quando dissera, sete séculos antes: "Eis que um menino nos nasceu: O principado do reino está sobre os seus ombros e não terá fim. Será chamado admirável, conselheiro, príncipe da paz e Pai do Século" (Isaías, 9:6). Miquéias, nas noites estreladas, profetizando que o Salvador nasceria em Belém, quando avança: "E tu, Belém, terra de Judá, de forma alguma és a de menor consideração entre todas as de Judá, porque de ti nascerá o meu Salvador" (Miquéias, 5 :2). Zacarias, filho de Baraquias e neto de Ado, profeta do Velho Testamento, que pressentiu que Jesus entraria em Jerusalém montado num jumento e que seria vendido por trinta moedas, com as quais se compraria um campo a um oleiro (Zacarias, 9:9 e 11:12).

            Estas profecias se concretizaram, quando da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, num jumentinho, conforme se lê em Marcos, 11, versículos de 1 a 11. E a compra de um campo a um oleiro, dando-se finalidade ao dinheiro de Judas, local esse chamado Cemitério dos Estrangeiros, ou Haceldama, até os dias de hoje.

            Outras profecias foram mencionadas por Paulo, deslumbrando Pórcio Festo e provocando profunda impressão no rei Agripa.

            Naquele auditorium de Cesareia, a ideia cristã estava sendo transmitida para sempre a um rei e a um governador, à assistência volúvel, para uma comunidade imensa, realçando o Cristo e demonstrando, através de sólidas argumentações, a realidade daquele Mestre Imperecível que nos legou a mensagem radiosa do túmulo vazio.

            Falara, em seguida, das suas peregrinações por Tessalônica, Galícia, Corinto, Colosses, Filipos, Éfeso, Licaônia e tantas outras regiões que lhe receberam o verbo cintilante e substancioso, deixando sempre evidenciada a figura do Mestre Divino!

            E, no instante em que o Apóstolo dos Gentios dissertava, o auditorium de Cesareia, que nos primeiros momentos se preparara para ridiculizar o orador, dada a sua singeleza e a sua fraqueza física, mudou completamente o propósito. Todos, no recinto, estavam fascinados pelo verbo maravilhoso do ex-Doutor da Lei.

            Quem seria aquela criatura que conseguia falar assim, penetrando profundamente nas mentes e nos corações?

            Eletrizado estava o auditorium de Cesareia, concentrado na exposição de Paulo...

            Pórcio Festo, verificando, porém, que houvera uma transformação no ambiente, com a qual nem ele mesmo contava, e querendo, evidentemente, quebrar a intensidade do verbo veemente do filho de Tarso, aborda-o, aparteia-o, dizendo-lhe:

            - Paulo! Paulo! As muitas letras te fazem delirar!

            A frase era uma alusão à época em que ele, Paulo, fora Doutor da Lei, um homem culto no Sinédrio ...

            Pórcio Festo, presidente da reunião, dizia-lhe que as muitas letras que o ex-discípulo de Gamaliel houvera assimilado no Tribunal da raça, nas Leis, estavam provocando alucinação nele.

            Todavia, o Apóstolo dos Gentios, ao invés de hesitar, muito antes, pelo contrário, mostrando a emancipação e a largueza de espírito de que era portador, adiantou-se alguns passos na direção do representante de César, olhou-o bem nos olhos e exclamou:

            - Não deliro! Não deliro, ó potentíssimo Festo! Falo de pura e sã consciência!
Jesus-Cristo é a concretização da divina promessa!.. Por ele esperou Israel; por ele falaram os profetas; o nosso povo esperou-o no silêncio de suas noites dolorosas! ... Nele todos aqueles que estavam à margem do caminho se substancializaram em alegria e paz! Jesus-Cristo fecundou a existência! É realmente o Mestre que voltou na Ressurreição para mostrar a vida abundante, aquela vida que ele mesmo nos dissera haver dado, quando assim se externara: "Vim para que- tivésseis vida, vida em abundância!"

            Paulo queria frisar bem a mensagem que trazia a Herodes e a Festo, porque era um momento raro no seu destino: conseguira falar a um representante de César e, o que era importante, estava também frente a um rei: Herodes Agripa. E Agripa viera até ali para ouvir-lhe a exposição.

            Deixou o lado da tribuna em que se encontrava o representante de Roma, contornou-a, chegou junto a Herodes e sua mulher Berenice, e falou ao rei: - O rei Herodes Agripa não pode ignorar essas coisas que aqui estão sendo expressas, não pode ignorar estes fatos, porque, se ele tem cultura romana, o seu sangue é judeu; portanto, não desconhece as profecias a respeito da vinda do Messias... Não credes assim, rei Agripa, não credes assim?..

            O rei ficou espantado. Quem era aquele homem, gênio ou louco, que conseguia lhe dirigir a palavra diretamente? Nunca lhe aconteceu isto. Lembrava-se dos representantes do povo, dos religiosos e dos juízes da raça que, para serem recebidos em palácio, o faziam com mesuras e afetação. No entanto, estava ali um homem, aparentemente sem ninguém, preso, transmitindo-lhe a palavra com a maior, naturalidade.

            Ficou profundamente impressionado, tanto que permaneceu estático por alguns minutos. Suor frio cobriu-lhe as têmporas e, ao verificar que todo o auditorium de Cesareia se concentrava nele, cravando-lhe o olhar para saber o que falaria, buscou se ajeitar na cadeira.

            Permanecendo Herodes silencioso, o próprio Paulo, querendo robustecer as frases suas, acrescentou em argumentação eloquente:

            - Sei que o credes, rei Herodes! Sei que o credes!

            Agripa, perturbado, reunindo o resto de forças que possuía para animar outra vez a palavra, procurou sair da dificuldade, dizendo:

            - Ora, ora! Por pouco me convences, por pouco me persuades a ser cristão...

            Acrescentou o Apóstolo dos Gentios:

            - Oxalá, rei Agripa! que por pouco ou por muito vos fizésseis cristão ... não somente vós... - e olhando o auditorium - mas todos aqueles que nos ouviram neste dia!..

            O encontro do apóstolo com Pórcio Festo, representante de César, e com o rei Herodes, no auditorium de Cesareia, se encontra registrado no Livro Atos dos Apóstolos, nos capítulos 25 e 26. É uma dessas fascinantes passagens da Escritura, trazendo meditações e forçando-nos o raciocínio para fazermos considerações que importam ao nosso aprendizado e edificação espirituais.

            Pórcio Festo representa, atualmente, aqueles que em pleno século verificam os fenômenos psíquicos sem poder entendê-los... fenômenos analisados por homens de escol, fenômenos que foram produzidos por grandes médiuns, trazendo ao pensamento humano a realidade da vida que não se acaba. Milhares e milhares de indagadores são Pórcio Festo, mais querendo seguir com as novidades do século do que acompanhar as coisas espirituais.

            São, hodiernamente, os negadores que nos dizem a nós, espíritas:

            - Espíritas! Espíritas! Os muitos fenômenos mediúnicos vos fazem delirar!..

            Esquecidos estão de que os ditos fenômenos, que eles alegam nos causar admiração, foram fenômenos identificados, experimentados não por nós, espíritas, mas por sábios que os examinaram, impassíveis, e chegaram à realidade da vida espiritual, à realidade dos Espíritos, que, através de uma série de fatores e de diferentes faculdades mediúnicas, vem mostrar-nos que, além da estrutura de ossos e carne, a vida verdadeira se expande; que o Espírito é enormemente grande para ficar preso nas estreitas grades de um organismo sensorial, de um instrumento corporal. Foram homens de saber e de cultura... De passagem, podemos citar: Charles Richet, prêmio Nobel em 1913, descobridor da anafilaxia; William Crookes, descobridor do tálio, elemento de número atômico 81, metal de massa atômica 204,39, apresentando dois isótopos naturais estáveis e quatro radioativos; Alexandre Aksakof, secretário do Czar Alexandre III; César Lombroso, o grande criminalista italiano, que também se cientificou da realidade desses fenômenos; William Barret, na Inglaterra, físico de renome; Ernesto Bozzano, engenheiro italiano e pesquisador de fatos mediúnicos, ex-discípulo de Spencer...

            Também no presente citaremos inúmeros psicólogos e parapsicólogos que demonstraram, através de seus estudos e observações, a realidade dos fenômenos paranormais, dos fatos psíquicos, da reencarnação. Eles estão aí, fornecendo-nos material para nossa apreciação: Rhine, na Carolina do Norte; Ian Steavenson, na Pensilvânia; Tanagra, na Grécia; Servadio, na Itália; Wassiliew, na União Soviética (recentemente desencarnado); e, aqui no Brasil, um parapsicólogo que nada fica a dever aos parapsicólogos internacionais, o Dr. Hernani Guimarães Andrade, em São Paulo, com extraordinário campo de observações de fenômenos mediúnicos e um excepcional laboratório de pesquisas.

            Foram e são fatos maravilhosos, inabituais, observados no passado e no presente, por homens sábios que chegaram à conclusão de que realmente teremos de mudar de trajetória, porque não se logra explicar o progresso da vida ausentando-se de uma realidade espiritual!

            - Paulo! Paulo! As muitas letras te fazem delirar!..

            - Espíritas! Espíritas! Os muitos fenômenos mediúnicos vos fazem delirar!..

* * *

            Paulo de Tarso se constituiu um símbolo, uma representação, um emblema. Ele é a personificação de milhões de estudiosos ou de criaturas afeitas à vida espiritual, que permanentemente recebem o bombardeio da negação, da ironia e do sarcasmo.

            Pórcio Festo e Herodes - são a representação de todos aqueles que nos abordam constantemente, dizendo que os muitos fenômenos, os fenômenos mediúnicos, nos fazem delirar embora eles não tivessem sido nem experimentados, nem catalogados por nós e sim por homens que saíram de suas próprias Universidades para testar médiuns e sensitivos e chegaram à conclusão de que, realmente, além da nossa estrutura material física, existe um fator psíquico, existe uma alma, existe um Espírito...

            Seria interessante percorrermos um pouco a história desses fenômenos e observações a fim de que possamos cientificar-nos das suas trajetórias e objetividades.

***

            Em 1888, César Lombroso, já aqui mencionado recebeu uma carta do conde Hércules Chiaia, diretor da revista italiana "Luce e Ombra" (“Luz e Sombra"). Na carta, o conde Chiaia dizia-lhe conhecer uma jovem senhora portadora de faculdades mediúnicas, e, o mais interessante, bastava Eusápia Paladino (este o nome dela) cair em transe para que imediatamente surgissem fantasmas no recinto e os objetos se transferissem de locais, sem o auxílio de mãos humanas.

            O professor Lombroso, de formação materialista, não deu muito crédito à carta do conde Chiaia, porém, em 1891, precisando ir a Nápoles, estabeleceu contato com ele. Lombroso assistiu a inúmeras reniões e acabou por se convencer da realidade dos fenômenos mediúnicos.

            Em 1902, na residência da condessa Celésia, onde se encontrava a médium Eusápia, foi realizada uma sessão de materialização e efeitos físicos, e o grande criminalista ficou abalado! Teve uma das maiores emoções e surpresas de sua vida! Junto à cabina se formou um vulto de mulher, que se encaminhou para o seu lado... Sim... pelo porte, pelo jeito de andar... era a sua própria mãe, desencarnada há anos. E quando a figura assim delineada se aproximou dele, falou na mesma inflexão de voz que ele guardara no tesouro de suas lembranças:
            - Cesare, fiól mio! (César, meu filho!)

            Era a genitora, a retomar da vida maior para orientar o filho e dar atestado da existência que nunca se finda! Apalpou-lhe, também, as mãos!..

            - Paulo! Paulo! As muitas letras te fazem delirar!

            - Espíritas! Espíritas! Os muitos fenômenos mediúnicos vos fazem delirar! ...

* * *

            E o que diremos da mediunidade, aqui no Brasil, quando sabemos ser o Brasil um celeiro desses médiuns e fenômenos, com inúmeras possibilidades? Notamos na mediunidade de Chico Xavier, entre tantas identificações de Espíritos, um fato que merece citado, para que a realidade do mundo espiritual seja evidenciada:

            D. Angelina del Mônaco, certa ocasião, foi, no anonimato, a Pedro Leopoldo, terra natal do médium. Ela residia em Guaratinguetá, na Rua São Francisco. Não deixou seu  nome em hotel ou em pensão daquela cidade e, às 19,30 h, dirigiu-se para o Centro Luiz Gonzaga, a fim de estabelecer contato com Chico Xavier e receber uma dedicatória de obra autografada por ele.

            Faltavam cinco pessoas para chegar a sua vez. Chico Xavier dirigiu-se à D. Angelina del Mônaco, dizendo-lhe:
           
            - D. Angelina, por obséquio...

            Ela ficou tão surpresa em ver o seu nome proferido que ainda olhou para trás para cientificar-se da possibilidade de uma outra Angelina na fila. Mas era ela mesma... Chico Xavier chamou-a, dizendo textualmente:

            - Ao lado da senhora existe o Espírito de um garoto de oito anos, presumivelmente, dando o nome de Doan e esclarecendo que desencarnou há 9 anos, de meningite. Ele fez tudo no sentido de que a senhora estivesse aqui em Pedro Leopoldo, na data de hoje, porque quer apagar as velinhas da mamãe, em nossa companhia...

            Realmente, D. Angelina tinha um filho chamado Doan, que desencarnara de meningite nove anos passados e aquele dia era, coincidentemente, o dia do próprio aniversário...

            São fatos maravilhosos da mediunidade, que assim surge independente do nosso gosto ou do nosso querer, da nossa resistência ou da nossa aceitação, porque a mediunidade, como sabemos, é uma faculdade inerente à criatura, quer ela seja religiosa não, esteja filiada a essa ou aquela corrente mental ou emocional. A faculdade psíquica é espontânea e é através dela que o encarnado se associa aos desencarnados em variados graus de aprendizado ou de sintonia, porque o livre arbítrio é sagrado na criatura. Tanto podemos sintonizar com a luz quanto podemos nos imantar às sombras, dada a liberdade que existe no ser.

            - Ó Jerusalém! Jerusalém! quantas vezes eu quis reunir teus filhos, como uma galinha reúne debaixo de suas asas os seus pintinhos!..

            Cristo quis, Jerusalém não quis. O livre arbítrio é sagrado.

            Em trânsito pela vida, todos nós temos a liberdade de querer ou não, de fazer ou não, de lançar sementes positivas ou negativas no campo do destino. Seremos, no entanto, constrangidos a voltar depois e engolir os frutos deteriorados que a nossa insensibilidade, que a nossa leviandade, que a nossa inconsciência espalharem pelos humanos caminhos! ...

            Na residência de Félix Avelino, secretário do Círculo Científico Minerva, de Gênova, organização especializada em investigações de fatos psíquicos, estava sendo testada a mesma médium Paladino. Reduziram grandemente as luzes para que pudesse haver as habituais comunicações. Passados instantes, do alto da sala despencou sobre a mesa um objeto volumoso, verificando-se, pelo tato, tratar-se de um pão "pasta-soda" de quatro pontas. Ao se fazer luz, nada estava no recinto ou junto aos assistentes.

            Inquiriram a John King de onde proviera o pão. Ele disse que procedia da padaria, ao lado. Uma vez mais perguntaram à entidade invisível se o pão poderia ficar. Veio a resposta: o pão fora trazido para dar uma prova daquilo que eles, Espíritos, podiam fazer com a matéria, por conhecerem-lhe melhor os fluidos e as propriedades, mas o pão pertencia ao padeiro. A menos que quisessem os presentes realizar uma compra. Entregariam uma moeda de dois soldos, correspondente ao seu valor, que seria deixada na caixa do padeiro... Félix Avelino ergueu a mão com a moeda nos dedos, sendo retirada e desaparecendo. O pão reapareceu.

            Notamos neste fato uma particularidade interessante: é o fator moral que acompanha o fenômeno. A entidade comprova sua intenção honesta. O pão, contudo, não poderia ficar, pois, se assim acontecesse, seria um roubo. A menos que se fizesse a transação comercial de levar a moeda correspondente ao valor do pão para ser colocada na caixa do padeiro...

            Isto vem mostrar, leitor, que não se podem obter fenômenos mediúnicos como muita gente quer, no sentido mecânico, forçando os Espíritos, querendo invadir a liberdade espiritual para certos objetivos e pretensões. Não acontece isto porque a hierarquia espiritual está fundamentada em valores espirituais, em valores morais. Se acontecesse o contrário, bastaria que qualquer médium de materialização e efeitos físicos mentalizasse grandes quantias de dinheiro ou joias de valor que estão em organizações bancárias para que, numa operação automática, joias e dinheiro lhes caíssem aos pés. Sabemos todavia, que não ocorre assim, porque o mundo espiritual é regido por leis morais. E quando observamos essas leis morais, imediatamente conceituamos o Evangelho para nossas vidas nós que somos tão defeituosos, frágeis, imperfeitos, nós que ainda estamos muito mais atrelados, ligados à parte velha de nós mesmos que prontos a avançar em direção à paz dos cimos.

            - Paulo! Paulo! As muitas letras te fazem delirar!..

            - Espíritas! Espíritas! Os muitos fenômenos mediúnicos vos fazem delirar!..

* * *

            Fenômenos que nos deslumbram, sim, mas, que foram catalogados por sábios famosos, fenômenos que estão retumbando em todas as partes do mundo, anunciando tempos novos; proclamando que o materialismo vai perecer!

            E Paulo, destemido, diz ao representante de César:

            - Não deliro! Não deliro! ó potentíssimo Festo! Falo de pura e sã consciência... porque Jesus Cristo é a concretização da promessa! Por ele ansiaram todos os profetas de Israel, por ele esperamos dias melhores, de paz e de felicidade!

            E Paulo, afastando-se do ponto em que estava, contornou a tribuna, veio em direção a Agrilpa e falou:

            - H erodes Agripa não pode ignorar as coisas que estão sendo conversadas, porque, embora seja ele romamo pela cultura, o seu sangue é judeu e não ignora as nossas profecias e as mensagens da raça. Não credes assim, rei A gripa, não credes assim? ...Sei que o credesl Sei que o credesl ...

            E o rei, após o impacto que a pergunta despertou, pode falar:

            - Ora, ora! Por pouco me convences a ser cristão!

            Mas o Apóstolo dos Gentios encerra a sua vigorosa argumentação:

            - Oxalá} rei Agripa, que por pouco ou por muito vos fizésseis cristão... não somente vós, mas todos aqueles que nos ouviram neste dia!

            Esta é a história de um rei que há dois mil anos, por pouco, pouco, quase, quase, mudou a sua trajetória espiritual. Esta é a história de um rei que por pouco, pouco, quase, quase altera a sua condição de vida, abandonando a senda negativa e entrando em possibilidades positivas! Mas, o rei Agripa não quis, o livre arbítrio é sagrado...

            Por pouco, pouco, ele quase alterou a sua diretriz espiritual, mas não quis! Todos nós, por muito ou por pouco estamos em meio às mais diferentes experiências desta vida. Por muito ou por pouco tempo, por enquanto, experiências inúmeras estão vindo até nós trazidas por pessoas, circunstâncias inúmeras e fatores os mais variados do caminho terrestre!

            Por enquanto, estamos recebendo estímulos de muitos, de milhares, de milhões de seres; por enquanto, estamos em trânsito numa vida que é fenomênica, que está acontecendo por enquanto...            

            Ninguém ficará para semente. Se não conseguimos reter o nosso corpo, que se vai desfazer dentro de um mês, de um ano, de dez, de trinta ou mais, como é que iremos reter os corpos de nossos pais, mães, irmãos, mulheres, filhos, parentes, amigos? Como segurá-los, se a vida é um fluir contínuo e ninguém segura ninguém, porque ninguém permanece na Terra para sempre?..

            Depois que se nos fecharem os olhos, os nossos parentes tomarão rumo, os nossos amigos se diversificarão nas mais diferentes experiências; depois que o nosso corpo se enregelar; as nossas propriedades passarão para mãos conhecidas ou desconhecidas}' depois que a vida humana se acabar, os nossos títulos ficarão entregues às traças e ao mofo, porque tudo está passando e ninguém consegue impedir que as coisas sejam assim e assim se encaminhem...

            Por enquanto, o atleta exibe musculatura flexível; por enquanto, o banqueiro movimenta talões de cheque; por enquanto, o comerciante desonesto frauda no prato da balança; por enquanto, o delinquente perturba a harmonia social; por enquanto, o emissário da paz é luz em nossos corações; por enquanto, o forjador de guerras passa, deixando à sua retaguarda lágrimas, orfandade e aflições de espírito; por enquanto, o guerreiro surge, no campo da vida, deixando marcas de sangue; por enquanto, o historiador desonesto falseia o rumo da História; por enquanto, o inocente pode comparecer ante a barra do tribunal, impossibilitado este muitas vezes de sondar-lhe a posição, por desconhecer-lhe a história desde o princípio} faltando ângulos e fatores para a apreciação dele; por enquanto, o jogador deita no pano verde sua moral, sua honra; por enquanto, o ladrão que rouba a sociedade não sabe que está roubando de si mesmo a tranquilidade, em função do futuro; por enquanto, o mensageiro da luz é lâmpada acesa na imensa noite de nossa indigência íntima, para nos clarear a jornada; por enquanto, o narcisista - o adorador do próprio corpo - contempla, embevecido, corpo que será entregue à terra, mãe comum das formas que perecem; por enquanto; o operário do amor deixa marcas de luz em suas próprias atividades; por enquanto, o palrador prejudica com o verbo insensato; por enquanto, o querelante envenena com a palavra infeliz; por enquanto, o regenerado trabalha, recompondo as linhas do seu destino; por enquanto, o salteador pontilha a vida de mortes e aflições; por enquanto, o turbulento é convite vivo à algazarra; por enquanto, o universalista toma de fragmentados problemas e busca encaminhá-los à unidade; por enquanto; o voluntarioso se crê centro da vida; por enquanto, o "x" do problema das coisas espirituais está distante de nós, fracos ainda, impossibilitados em nos fazer à frente, porque por nós ainda gritam vícios, paixões e desacertos de nosso pretérito fracassado; por enquanto, o zênite, o ponto alto das coisas do espírito, também se distancia de nós, carentes de celeiros de luz e amor...

            Por enquanto, tudo está acontecendo... pessoas e situações, quadros e experiências que passam. E a vida, através deles, nos testa, para aquilatar de que maneira reagimos, a fim de que se nos alicerce o futuro espiritual.

            - Oxalá Rei Agripa, que por pouco ou por muito vos fizésseis cristão, não somente vós, mas todos aqueles que nos ouviram neste dia!..

            Como é significativa a narração do encontro do Apóstolo Paulo com Pórcio Festo e o rei Agripa, naquele dia agitado, em vasto auditorium da corte de Cesaréia...

            Inobstante o fato ter-se desdobrado há dois mil anos, o reformulamos e o revestimos de cores novas, notando consequentemente que tudo se transforma em mensagens diferentes para o cultivo das almas.

            Embora as imperfeições inúmeras, frustrações, quedas e as misérias que carreamos conosco, sabemos que a Doutrina Espírita tem-se constituído um alvará luminoso, o sublime legado que nos mostra estar a vida continuando além da Terra e que, liberto, canta e vibra o Espirito!

            A Doutrina Espírita interpreta o sofrimento por sinfonia divina que desperta os corações; a Doutrina Espírita nos mostra, como diz o Espírito André Luiz, que “é preferível ter uma coroa de espinhos na testa do que um montão de brasas na consciência"; a Doutrina Espírita adverte que somos viajores habitando, momentaneamente, corpos de carne, dos quais nos afastaremos pela desencarnação, porque a pátria real e definitiva é o mundo espiritual - nosso "habitat” normal.

            Quando Allan Kardec formula a questão: "Qual dos dois é o principal na ordem das coisas, o mundo espírita ou o mundo corpo? - respondem as entidades que lhe auxiliaram o esforço de síntese, na grande Doutrina:

            “O mundo espírita, que preexiste e sobrevive a tudo."

            Concluímos, assim, que o "habitat" natural do Espírito é o mundo espiritual, porém, em razão de suas falhas, de suas quedas, o Espírito tem de purgar na fieira das vidas, todo o seu passado de nódoas, enfrentando dores morais e físicas.

            De quando em vez, desavisados ou insensatos, dizem que as advertências dos guias são chapa batida, estafantes, e que o Evangelho está sempre pedindo reformulações morais, modificações íntimas; que as casas espíritas nos absorvem alguns momentos que poderiam ser canalizados para os lazeres quotidianos, novelas, programas de rádio e televisão, recreações em cinema, teatros e clubes...

            Evidentemente, se quisermos, poderemos afastar-nos, desertando do ambiente de nossas singelas organizações; contudo, não poderemos evitar, de forma alguma, periodicamente, o Iátego da dor acontecendo em nossas vidas, porque somente a dor é grande e forte para recompor o Espírito faltoso, reintegrando-o na harmonia da qual se afastou para seguir estradas falsas e experiências negativas, que lhe trazem prejuízos.

            O mecanismo da Lei é este: ele é o que é e ninguém conseguirá impedir o seu acontecer A ignorância das coisas espirituais não impede a existência delas nem altera em nada aquilo que é e que deve se manifestar. Os antigos não acreditavam na existência dos micróbios, mas não podiam impedir que eles continuassem a fazer milhares ou milhões de vítimas...

            O professor de matemática da Universidade de Pádua, na Itália, zombou de Galileu, porque sustentava a convicção de que a Lua não era lisa como bola de bilhar. Dizia o sábio que o satélite do nosso planeta era constituído de crateras, montes, vales, topografia irregular. Embora o incrédulo risse, não quis dar uma espiadela no telescópio de Galileu, para saber como era a Lua, em realidade...

            O mesmo ocorre em se tratando das motivações espíritas.

            Se nos desacertamos, teremos de nos reacertar. Assim como demos cotas alimentícias ao mal, nele nos complicando, agora devemos dar cotas alimentícias ao Bem. Não se pode simplesmente seguir caminhos de negação e depois pretender deles sair, à francesa.

            A lei do carma, a lei de causa e efeito é lei de justiça. Teremos de gastar no bem
tanto tempo quanto gastamos no mal. Se quisermos derrotar este, teremos de enfraquece-lo. Quanto mais alimentarmos nossas paixões, defeitos e maus hábitos, quanto mais alimento propiciarmos ao lado inferior da personalidade, mais forte ele fica e com menos possibilidades de ceder, face ao enraizamento psicológico. Teremos de matar o nosso passado por inanição, recusando-lhe alimento... "Se não fizermos isto, ele virá presente, outra vez... o nosso hoje volta a ser ontem... Ninguém pense seja fácil a eliminação de seu passado. Experimente alguém colocar um dique nas pretensões passionais, nas ideias erradas que se fixaram... Se não houver disciplina obstinada, as ondas do pretérito rompem os diques de contenção presente, lançando, outra vez, suas escórias nas praias da alma, torturando-nos indefinidamente...

            Por último, diremos: A Doutrina Espírita é luz na vida. Eliminar de nós, ainda que com dificuldades, as limitações que trazemos é tarefa que se nos impõe, para que um dia estejamos integrados na luz!

'Paulo perante Festo e Agripa' 
por Newton Boechat

Reformador (FEB) Setembro 1974 

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