segunda-feira, 6 de julho de 2015

A Bíblia não proíbe a Mediunidade

           Durante muitos séculos, a ortodoxia religiosa tem invocado dispositivos bíblicos para condenar ou até mesmo tentar impedir a comunicação com seres desencarnados, através da mediunidade. Essa atitude "oficial" está aparentemente escorada no versículo 17 do capítulo 22 do Êxodo que, numa simples e sumária frase, diz o seguinte: "Não deixarás com vida a feiticeira." (1) Entendem os estudiosos que essa pequenina frase tenha também servido de apoio à nefasta doutrina da Inquisição, que tantas vítimas do "ódio teológico" espalhou pelos campos imensos da História. Essa norma fatal encontra-se no contexto do "Código da Aliança", colocado imediatamente após o Decálogo. O final do capítulo 20 e os três capítulos seguintes são um desenvolvimento, uma espécie de regulamentação das normas básicas contidas no Decálogo. É curioso, no entanto, observar que os chamados "Dez Mandamentos" nada dizem sobre feiticeiros e adivinhos e, quanto à pena de morte, são enfáticos e definitivos: "Não matarás".

            (1) Usaremos neste trabalho o texto da "Bíblia de Jerusalém", na sua versão espanhola de responsabilidade conjunta da Desclée de Brouwer S.A., da Bélgica, e das Ediciones Nauta, de Barcelona, Edição 1969.
  
            Como foi, então, que a impiedosa condenação das "feiticeiras" se alojou no texto?

            Em primeiro lugar, precisamos compreender bem o sentido das palavras. Nos tempos bíblicos, e mesmo nos que são representados no Novo Testamento, mediunidade era palavra inexistente. Os fenômenos psíquicos explodiam sem controle, sob todas as formas. Conforme a maneira sob a qual se manifestavam, recebiam um nome diferente: feitiçaria, adivinhação, augúrio, profecia, encantamento, magia, nigromancia e muitas outras modalidades intermediárias e complementares. Quando os textos bíblicos começaram a ser vertidos em grego, a palavra hebraica nabi foi traduzida pelo termo "prophetes". A questão é que profeta, literalmente, é aquele que prediz acontecimentos futuros. A transferência do texto hebraico para o grego obscureceu, dessa forma, o verdadeiro sentido da expressão nabi, e profecia passou a significar toda e qualquer manifestação psíquica, o que é bastante impreciso.

            Estudando as origens da palavra nabi, a Enciclopédia Britânica se sente algo perplexa. Primeiro, ao informar que sua origem é obscura, mas que suas derivações significam "intensa excitação", reportando-se a uma palavra assíria cujo sentido é "cair em transportes", ou seja, em transe. Conclui daí a Enciclopédia dizendo que tais conexões tornam "etimologicamente improvável" o significado da palavra. No entanto, temos excelentes razões para pensar de maneira inteiramente diversa. A palavra hebraica está perfeitamente identificada com suas origens etimológicas, pois que a profecia é uma forma de mediunidade e se manifesta exatamente pelo fenômeno da excitação espiritual ou, mais especificamente, do transe mediúnico.

            Não obstante, a mediunidade profética é apenas uma das muitas modalidades que compõem o quadro das faculdades psíquicas. Se usarmos apenas esse termo para descrever tais fenômenos, estaremos em erro, por generalizar, para toda sorte de manifestação, uma expressão que se aplica apenas a uma delas. Em outras palavras: todo profeta genuíno é médium, mas nem todo médium é profeta, tanto no sentido grego como moderno da palavra, ou seja, aquele que prediz acontecimentos futuros.


            Isso é tão verdadeiro que o excelente dicionário Funk & Wagnalls coloca a questão nos seus verdadeiros termos, com extraordinária lucidez, ao declarar que no contexto bíblico profetizar é "pronunciar verdades religiosas sob inspiração divina, não necessariamente predizer acontecimentos futuros, mas admoestar, exortar, confortar, etc."

            De qualquer forma, a palavra profeta e suas associadas profecia e profetizar ficaram consagradas numa amplidão de significado, que suas origens não justificam, ou seja, foram forçadas a significar muito mais do que primitivamente queriam dizer. Isto nos leva, com o conhecimento de que hoje dispomos, a propor uma correção ao texto bíblico, substituindo tais palavras pelas que a terminologia moderna consagrou, como: médium, mediunidade, manifestação mediúnica, etc. Se não podemos ainda introduzir no texto bíblico tais correções, pelo menos conservemos em mente essas informações, para que possamos entender a narrativa no seu exato significado, em face das conquistas da Doutrina Espírita.

            Dessa forma, palavras como feiticeiro, mago, adivinho, nigromante, encantador foram empregadas, através dos séculos, para rotular manifestações desconhecidas e mal estudadas da psique humana e que, pelo seu halo de fantástico, se tornavam, na melhor hipótese, suspeitas e, na pior, apavorantes e dignas da condenação mais dura da sociedade, de vez que o homem sempre temeu aquilo que desconhece.

            Vemos, então, sob os mais estranhos e terríveis nomes, manifestações que hoje sabemos serem simples formas de mediunidade e, como tal, suscetíveis de estudo e compreensão. Matar o médium, somente porque ele surge sob o nome de feiticeiro, é irracional, tanto quanto matá-lo, persegui-lo ou prendê-lo porque, por seu intermédio, os Espíritos dos "mortos" se manifestam para darem o seu recado.

       
     No entanto, o versículo 17 do capítulo do Êxodo manda matar os médiuns. É necessário buscar a razão de tão drástico e desumano procedimento, e isso faremos a seguir, procurando colocar-nos no contexto daqueles recuados tempos e das motivações dos homens que introduziram a norma na lei moisaica.

            O quadro é este: Moisés acabava de liderar seu povo para fora do Egito, retirando-o de uma escravidão longa e aviltante. Na realidade, aquela massa de gente não era ainda um povo, no sentido em que hoje entendemos essa palavra, mas apenas uma multidão, um ajuntamento de famílias e indivíduos frouxamente ligados por algumas tradições e hábitos comuns, mas certamente infestados de ideias estranhas a essas tradições, contraditórias e conflitantes. Moisés era mais que um líder religioso, pois o era também político e militar. Além disso, foi ainda o profeta da sua gente, isto é, seu médium. Através dele é que os poderes espirituais instruíam e dirigiam o povo nas suas grandes decisões e indecisões. Achava-se em pleno curso o processo de aglutinação daquela multidão heterogênea, com a qual um guia espiritual, falando em nome de Jeová, havia proposto um contrato, um acordo: em troca de fidelidade incontestável ao monoteísmo, Jeová tomava o povo sob sua proteção, como seus filhos prediletos, aos quais destinava um território fértil, onde poderiam fundar uma nação rica e poderosa. Fidelidade a troco de apoio. O monoteísmo é a ideia predominante em longos anos de pregação. Jeová não somente estimula a crença, mas ameaça com punições terríveis aqueles que se desviarem desse preceito básico. Mesmo assim, há evidências dramáticas de lapsos bastante sérios. Testemunho disso, por exemplo, é a cena em que Moisés, num impulso de desespero e de ira, quebra as pedras nas quais acabara de ser inscrito o Decálogo, de vez que, após breve afastamento, encontrou o povo recaído na idolatria. A crença no Deus único não estava, portanto, mesmo a essa altura, suficientemente consolidada no espírito da multidão errante.


            Por outro lado, preparavam-se os hebreus para tomar e ocupar terras estrangeiras, habitadas por povos estranhos que praticavam cultos diferentes e viviam sob outras tradições e diferentes hábitos e costumes.Que controle poderiam ter os líderes hebreus sobre sua gente, depois que se radicassem na Terra da Promissão e entrassem em comércio contínuo, permanente com os povos vencidos? Daí porque o livre exercício das faculdades psíquicas tornou-se mais que uma questão religiosa, um problema de segurança nacional. Grupos judeus que adotassem práticas mediúnicas locais estariam, sem dúvida, expostos à influência de estranhos guias, portadores de ideias diferentes que se chocariam com as que Moisés vinha ensinando, ao longo dos anos, à sua gente.

            Em lugar do Deus único, viriam incutir a idolatria e espalhar o tumulto no campo cuidadosamente preparado por Moisés no espírito de seus patrícios. Era imprescindível, pois, regulamentar, com extremo rigor, o exercício da mediunidade.

            É preciso ainda considerar, nesta altura, um ponto de extrema importância, que tem sido pouco apreciado. Moisés foi profeta de grande porte, ou seja, médium. Inegavelmente, foi a profecia - leia-se mediunidade - que criou a nação judaica, como afirma a Enciclopédia Britânica. Os profetas foram os "salvadores de seu povo", insiste a Britânica. E a tradição continuou e se consolidou. Depois de Moisés, praticamente todos os líderes politico-religiosos de Israel foram médiuns, escolhidos mediunicamente ou assistidos - e muitas vezes duramente interpelados - por vigilantes equipes espirituais, interessadas em dar forma e conteúdo à primeira nação fundada no princípio do monoteísmo.

            É estranho, por conseguinte, que, a despeito da suposta e tão proclamada proibição, toda a história de Israel seja espiritualmente orientada através da mediunidade de seus profetas e videntes. A moral judaica, que o Ocidente herdou, se apoia num documento incontestavelmente mediúnico: o Decálogo, recebido por Moisés, seja por psicografia ou por escrita direta. A evidência disso está em que, depois de quebradas as pedras, Moisés teve de retirar-se novamente para a solidão do deserto, no alto da montanha, para receber outra vez o texto, certamente porque era incapaz de reproduzi-lo com seus próprios recursos. A Bíblia é, assim, a narrativa de como um grupo de Espíritos desencarnados guiou uma nação inteira de irmãos encarnados, levantando-a da escravidão até ao estabelecimento de um Estado livre e consolidado. Não são apenas ensinamentos religiosos  que chegam do mundo espiritual, mas também observações e instruções de caráter político e até militar. Parece que a ideia era criar uma nação monoteísta, como sementeira e modelo das futuras nações da Terra. Isso é tanto mais verdadeiro que, ao decidir interferir pessoalmente nos negócios humanos, Jesus escolheu o povo de Israel como campo de trabalho.
            
Diante disso, é claro que a mediunidade devesse ser cuidadosamente regulamentada e policiada, para não tumultuar os planos. Do contrário, cada médium teria o seu guia diferente, ideias e conceitos diferentes, e seria impraticável fundir aquela massa toda numa só peça. Mas, inegavelmente, foi a mediunidade que colocou Israel no painel da História. É, pois, totalmente inconsistente a afirmativa de que a Bíblia proíbe o exercício da mediunidade; o texto apenas o restringe e regulamenta.

            Para comprovação disso, não precisamos buscar outras fontes; ela se encontra claramente na Bíblia mesma.

            Passado o período mais crítico do Êxodo, em que a existência de falsos guias poderia por em perigo a segurança do povo, vemos uma história bem diferente no Deuteronômio. Lemos aí, no capítulo 18, versículos 9 e seguintes, estas instruções:

            "Quando entrares na terra que Javé, teu Deus, te deu, não aprenderás a cometer abominações como as de tais nações. Não há de haver em ti ninguém que faça passar seu filho ou sua filha pelo fogo, que pratique adivinhação, astrologia, feitiçaria ou magia; nenhum encantador, nem quem consulte espetros, nem adivinho, nem evocador de mortos. Porque todo aquele que faz estas coisas é uma abominação para Javé, teu Deus, e por causa dessas abominações desaloja Javé, teu Deus, a estas nações diante de ti. Hás de ser totalmente fiel a Javé, teu Deus. Porque essas nações que vais desalojar escutam astrólogos e adivinhos, mas a ti Javé, teu Deus, não permite semelhante coisa. Javé, teu Deus, suscitará dentre vós, dentre teus irmãos, um profeta como eu, a quem ouvirás. É exatamente o que pediste a Javé, teu Deus, no Horeb, no dia da Assembleia, dizendo: "Para não morrer, não voltarei a escutar a voz de Javé, meu Deus, nem verei mais esta grande chama"; então, Javé me disse: "Está bem o que disseram. Eu suscitarei um profeta semelhante a ti, porei minhas palavras na sua boca e ele lhes dirá tudo o que eu mandar. (1) Se alguém não ouvir minhas palavras, as que este profeta pronunciar em meu nome, eu mesmo pedirei contas a ele. Mas, se um profeta tiver a presunção de dizer em meu nome uma palavra que eu não o tenha mandado dizer, e se falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá." Talvez digas no teu coração: "Como saberemos que tal palavra não foi dita por Javé? Se esse profeta fala em nome de Javé e o que diz permanece sem efeito e não se cumpre, então é porque Javé não disse tal palavra: o profeta a pronunciou por presunção; não hás de temê-to."

            Analisemos o texto em suas óbvias implicações. O povo judeu está prestes a entrar na posse da terra prometida e o Espírito manifestante o previne contra as falsas práticas e os falsos profetas, mas, definitivamente não proíbe o exercício da mediunidade; ao contrário, estabelece claramente que o povo continuará a ser orientado do mundo espiritual pela boca de novos profetas, que Deus suscitará. Tais profetas, no entanto, ou seja médiuns, serão recrutados no seio da própria gente judia. Será um profeta como eu, isto é, como o próprio Moisés. Surge, então, o problema crítico da autenticidade. Como poderá o povo saber se o médium é falso ou se está apoiado por um genuíno mandato divino? O Espírito que fala em nome de Javé ensina que se conhecerá o médium pelas suas obras (Jesus diria mais tarde que se conheceriam as árvores pelos seus frutos). Se o que o médium anunciar se realiza, então ele tem o suporte divino, se não se realiza, é falso e deve ser excluído do convívio do povo. Não seria legítimo também o médium que pregasse em nome de "outros deuses", pois era necessário preservar a ideologia religiosa da nascente nação. O teste da mediunidade autêntica era, pois, duplo: fidelidade absoluta à doutrina religiosa de Javé e realização, no plano humano, dos acontecimentos anunciados em estado de transe. É fácil concluir pela segurança desse duplo critério, pois nem um nem outro isoladamente seria suficiente para autenticar a mediunidade do "profeta".

            E foi assim que, ao correr dos séculos, a Bíblia passou a representar um repositório precioso de fenômenos mediúnicos da mais extensa variedade: psicografia, psicofonia, materializações, escrita direta, desdobramentos (1) espirituais, transfiguração, xenoglossia, sonhos premonitórios, transporte e tantos outros.



                (1) Esse texto tem sido, às vezes, interpretado como um anúncio da vinda do Cristo, opinião da qual não partilha o autor deste artigo. Deus não estabeleceria testes de autenticidade para Jesus, como o texto indica. Mesmo, porém, admitida aquela interpretação, não fica prejudicada a tese proposta no artigo, como se verá mais adiante.

            Em Gênese, capítulo 41, o faraó é avisado, por meio de um sonho premonitório, dos anos de penúria que iriam desabar sobre o Egito. José interpreta o aviso corretamente e, conquistando a confiança do faraó, acabou sendo seu principal ministro.

            No capítulo 3º do primeiro livro dos Reis, Eli é informado, através da nascente mediunidade de Samuel, que havia caído em desgraça porque não repreendera devidamente seus filhos pelo mau procedimento que haviam demonstrado. Ainda nesse mesmo livro, capítulo 9, versículo 17, Saul é apontado mediunicamente como futuro rei de Israel. Assim que Samuel pousou nele os seus olhos, Javé - isto é, o Espírito-guia - lhe disse ao ouvido: "Esse é o homem de quem te tenho falado. Ele reinará sobre o meu povo." O capítulo 28, ainda nesse mesmo livro, nos conta, com nitidez e sem artifícios, todo o desenrolar de uma sessão mediúnica, na qual Saul - cuja mediunidade, aliás, havia sido bruscamente retirada - busca desesperadamente falar com o Espírito Samuel, que pergunta secamente: "Para que me consultas se Javé já te abandonou e passou para outro?" Em seguida, anuncia o fim de Saul na batalha a ser ferida, o que realmente se deu.

            Em Daniel, capítulo 5º, a mão materializada de um Espírito escreve na parede da sala do festim uma mensagem em língua desconhecida. Como profeta e, portanto, médium, Daniel também é chamado a interpretá-las e anuncia corajosamente o fim do império de Baltazar.

            Estes são alguns dos muitos exemplos, mas a tessitura mediúnica se espalha por todo o Velho Testamento e alcança também o Novo, que conta não apenas os fenômenos produzidos por Jesus, como também os que se seguiram à crucificação, especialmente, neste último caso, nos Atos dos Apóstolos, que documentam a insofismável orientação mediúnica nos primeiros movimentos da Igreja primitiva, da mesma forma pela qual havia sido orientado o povo de Israel nos velhos tempos.

            Dessa maneira, não precisamos nem tocar nesse manancial de revelações mediúnicas que iluminou a Idade de Ouro da Profecia, quando viveram os grandes de Israel: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, etc. Esses espíritos desassombrados levantavam a voz mesmo contra os poderosos da época, pregavam a palavra de Deus, anunciavam glórias e desgraças, mas havia um tema constante na pregação desses homens: a vinda do Messias, minuciosamente descrito e ansiosamente esperado. Tantos foram os sinais revelados profeticamente que o povo não poderia deixar de reconhecê-lo, mas, quando os tempos chegaram e veio Jesus, poderosos interesses contrariados conseguiram seu intento de assassinar o Messias sonhado, com o que, por sua vez também, se cumpriram as predições que anunciavam o seu fim trágico.

            Podemos, pois, afirmar com absoluta segurança que sem mediunidade não haveria Bíblia. Como aceitar, assim, a proibição do seu exercício?
          
           Há mais, porém. Se alguma dúvida ainda persistisse quanto ao funcionamento vigiado das faculdades psíquicas, bastaria o texto preservado no capítulo 11 de Números. Novamente, precisamos descrever o "background" dos acontecimentos, para entender bem o que aconteceu. O povo de Israel "proferia queixas amargas aos ouvidos de Javé". Já há muito andavam pelo deserto, em desconforto e pobreza e enjoados do maná; pediam carne e peixe, dos quais se lembravam dos tempos de cativeiro no Egito. Ouvidas as queixas impertinentes, Moisés também se irritou e sentiu todo o peso da sua própria responsabilidade na difícil liderança daquela gente turbulenta. E, por sua vez, lamentou-se diante de Javé, vergado ao peso das suas aflições e angústias: "Não posso carregar sozinho com todo esse povo: é demasiado pesado para mim. Se continuas a tratar-me assim, mata-me, por favor, se é que mereço a graça diante de ti, para que não vejas mais minha desventura."

            Javé lhe ordena, então, que reúna setenta anciãos de Israel na Tenda das Reuniões. "Eu baixarei para falar contigo - diz o Espírito -; tomarei parte do espírito que há em ti e o porei neles, para que levem contigo a carga do povo e não tenhas que levá-la sozinho."

            Em outras palavras: o Espírito propunha difundir mais a mediunidade - que até então pesava exclusiva sobre Moisés - entre outros membros da comunidade, para que se aliviasse a carga do grande profeta.

            Assim foi feito. "Saiu Moisés e transmitiu ao povo as palavras de Javé. Em seguida, reuniu setenta anciães do povo e os colocou em redor da Tenda. Baixou Javé na nuvem e lhe falou. Em seguida, tomou do espírito que havia nele e deu dele aos setenta anciãos. E assim que pousou sobre eles o espírito, se puseram a profetizar, mas não mais voltaram a fazê-Io."

            (1) Há aqui uma divergência. A tradução portuguesa da Bíblia, certamente feita da Vulgata, diz que
profetizaram e não cessaram de o fazer, ao passo que a Bíblia de Jerusalém informa que não mais voltaram a faze-lo, acrescentando, em rodapé, que a faculdade foi dada temporariamente.

            Há, porém, uma sequência extremamente valiosa para os objetivos deste trabalho. Vamos reproduzir o texto:

            "Haviam ficado no acampamento dois homens, um chamado Eldad e outro Meldad. Pousou também sobre eles o espírito, pois que, ainda que não tivessem saído da tenda, (2) estavam também entre os escolhidos. E profetizavam no acampamento. Um jovem correu a a visar Moisés: "Eldad e Meldad estão profetizando no acampamento." Josué, filho de Nun, que estava a serviço de Moisés desde sua mocidade, respondeu e disse: "Meu senhor Moisés o proíbe." Respondeu-lhe Moisés: "Que zelos são esses por mim? Quem me dera que todo o povo de Javé profetizasse, porque Javé lhes daria o seu espírito!" Em seguida, Moisés voltou ao acampamento com os anciãos de Israel" (capítulo II, versículos 26 a 30).

                (2) Certamente o texto indica que eles não saíram de suas tendas particulares para irem à Tenda das Reuniões. 

            Vejamos, pois, o que aí está. O guia espiritual de Moisés, falando sempre em nome de Javé, determina que sejam convocados setenta anciãos, aos quais, em memorável sessão, distribui faculdades mediúnicas, a fim de que pudessem, nesse campo, colaborar com Moisés e aliviar a carga de responsabilidades do líder. Dois desses homens, embora capazes do exercício da mediunidade, deixaram de comparecer à Tenda das Reuniões, mas, como estavam preparados, igualmente receberam Espíritos, do que Moisés foi imediatamente avisado. É notável, neste ponto, observar que o próprio Josué estava na crença de que Moisés proibia a manifestação mediúnica e não hesita em antecipar-se ao Mestre e declarar isso ao jovem. No entanto, Moisés sai com a desconcertante afirmativa de que gostaria que todo o povo de Israel fosse investido da faculdade de profetizar, isto é, exercer alguma forma de mediunidade, para que o Espírito de Deus se espalhasse por toda parte.


            De modo que, na próxima vez em que alguém disser que a Bíblia proíbe o intercâmbio com os "mortos", você pode informar com segurança que isso não corresponde à realidade dos textos. O contato com os irmãos desencarnados não é proibido; ao contrário, é desejado. O que se exige, porém, de quem se dedica a essas tarefas, é boa moral, experiência, conhecimento - e para isso foram escolhidos setenta anciãos - e boa dose de senso crítico, para examinar e testar o que dizem os Espíritos manifestantes e não aceitar cegamente o que nos transmitem, porque entre eles muitos falsos profetas se imiscuirão. Estes conselhos e observações milenares estão igualmente contidos no contexto da Doutrina Espírita codificada por Kardec, da mesma forma que foram lembrados nas Epístolas de Paulo e no Evangelho segundo João. Kardec preferia colocar nove verdades sob suspeição do que acolher uma falsidade.

            Vemos, assim, que, em essência, a mediunidade tem sido uma só, ao longo dos milênios e que, portanto, um só deve ser o cuidado com que a praticamos. Em todos os tempos, o médium tem sido o mensageiro dos irmãos espirituais desencarnados, intermediário entre uma forma de vida e outra, entre um mundo e outro, entre uma faixa vibratória e outra. Os cuidados com esse delicado instrumento de comunicação devem ser os mesmos, para que não se percam nem o instrumento nem o conteúdo da mensagem.

            Muita gente, antes de Kardec, assistiu ao exercício dessa maravilhosa faculdade, mas foi o Mestre de Lyon o primeiro a estudá-la e catalogá-la, de modo a tirar dela todo o proveito de que é capaz, identificando-lhe as imensas possibilidades, tanto quanto os riscos que pode oferecer.

A Bíblia
não proíbe a Mediunidade
Hermínio C. Miranda

Reformador (FEB) Maio 1972

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