Quando
Kardec Voltar...
por Hermínio C. Miranda
Reformador (FEB) Outubro 1972
Allan Kardec dedicou os últimos quinze anos de
sua existência na carne à implantação da Doutrina Espírita e ao lançamento dos
primeiros impulsos do movimento que não mais cessaria de crescer pelo mundo
afora. Ele próprio parecia, frequentemente, surpreso ante o vulto que tomava o
Espiritismo, surgido tão modestamente daqueles primeiros contatos em casa de
Madame Plainemaison. Foram quinze anos de trabalho intenso, de atividade
prodigiosa.
Ao cabo desse tempo, recolheu-se ao
mundo espiritual, para o convívio dos companheiros que lá ficaram e que de lá
conversaram com ele através da barreira do tempo e do espaço. Muito, porém,
restava fazer e seus amigos disseram-lhe que ele voltaria em outro corpo, ou
seja, em nova encarnação, para dar prosseguimento às tarefas de reformulação
dos conceitos espirituais da humanidade. Chegaram mesmo a estimar o tempo da
volta, que seria cerca de 30 anos mais tarde. Ao que sabemos, isto não se deu,
por motivos certamente muito ponderáveis. Podemos imaginar mil razões
diferentes para que assim fosse. Os programas espirituais se cumprem com os
homens, sem os homens ou a despeito dos homens. Quando se realizam com os
homens, costumam vir dentro do tempo previsto. Sem os homens, atrasam-se um
tanto; a demora maior, não obstante, é quando devem concretizar-se a despeito
dos homens.
No final de contas, porém, eles se
realizam sempre. Nem mesmo as nossas paixões, imperfeições e oposições
conseguem deter a marcha dos acontecimentos programados pelos poderes
superiores que nos governam; apenas se dilatam no tempo, mas que é o tempo? Que
importância tem o lapso de alguns anos ou mesmo séculos, quando diluídos nos
ilimitados oceanos da eternidade? Neste, como em tantos outros exemplos, o
tempo somente adquire importância e valor para aqueles que o perderam, que o
deixaram escorrer desavisadamente, em vez de empregá-lo na reconstrução do
espírito, tarefa intransferível de cada um de nós. “Mind is the builder”, dizia
Edgar Cayce em transe. A mente é que constrói. Kardec fez a sua parte. Quando
se concebeu, nos esplendores do Espaço superior, a síntese consoladora do
Espiritismo, Kardec assumiu o compromisso, a tremenda responsabilidade da
tarefa entre os homens encarnados. Foi, assim, um trabalho para ser realizado
com os homens e não apenas em sua implantação, mas também na sua continuidade,
porque é das próprias colheitas que saem os grãos para novas sementeiras e assim
sucessivamente, para que a semeadura possa repetir-se ao longo do tempo e
ampliar-se para sustentar novas e crescentes levas de seres. O Codificador foi
fiel aos seus mentores, aos seus companheiros e aos seus compromissos e por
isso a Doutrina se implantou no tempo previsto, com os homens.
Não sabemos, porém, se os estágios
seguintes do programa foram cumpridos com a
mesma fidelidade e precisão pela equipe encarnada. Teria havido algum atraso?
Algum
desvio? Alguma falha humana que forçou um pequeno deslocamento no tempo?
Tais perguntas se afiguram legítimas
quando buscamos identificar as razões que contribuíram
para o adiamento do retorno de Kardec. Estamos, aqui, partindo do pressuposto
de que ele ainda não ressurgiu entre nós, porque o vulto do seu espírito já há muito
o teria denunciado. Contando-se trinta anos da data de sua desencarnação, em 1869,
te-l o-íamos de volta, entre nós, aí pelo último ano do século dezenove ou nos
primeiros anos do atual. Como poderia ele ter passado despercebido cerca de 70
anos, se os Espíritos o preveniram de que ele viria dar continuidade ao seu
trabalho e encontraria o
movimento inteiramente desabrochado?
Supondo que ele ainda não tenha
vindo, ou pelo menos ainda não tenha assumido toda
a força da sua estatura, creio legítimo admitir que não deve tardar; apenas
aguardava que algum reajuste fosse feito na marcha dos acontecimentos e no
desenvolvimento do trabalho que competia a outros, para retomar as suas
tarefas.
Estamos, agora, a pouco mais de um século
da sua desencarnação, já no princípio do
segundo século da Doutrina dos Espíritos. Como se portou a mensagem espírita
nesses cento
e poucos anos? Podemos afirmar que se saiu maravilhosamente bem, como era de esperar-se.
Recebeu impactos a que nenhuma estrutura antiga do pensamento humano suportou.
Longe de abater-se ou de anular-se, brilha cada vez mais a tranquila beleza dos seus
postulados, é cada vez mais serena a firmeza da sua edificação filosófica. A
pesquisa científica materialista, que por muito tempo a desprezou e até
ridicularizou, procurou primeiro ignorar os ensinamentos do mundo espiritual.
Passou depois a combatê-los, no que sempre encontrou aliados complacentes nas
religiões ortodoxas institucionalizadas. Houve um tempo - que ainda perdura, de
certa forma - em que a ciência procurou contornar o elevado maciço formulado
pelos Espíritos. Para isso criou, em novos compartimentos da especulação, uma
terminologia inteiramente nova, na tentativa de dar
interpretações e explicações diferentes das que foram ensinadas pelos
Espíritos. Tudo em vão. Os pesquisadores e cientistas, que assim o fizeram,
estão na categoria daqueles a despeito dos quais a marcha dos acontecimentos
segue em frente. (Mais tarde, lá na frente, eles alcançarão os que acompanharam
o movimento evolutivo.) O tremendo surto científico do primeiro século da era
espírita, especialmente nas últimas décadas, trouxe no seu
bojo inúmeras outras implicações, não apenas com relação à doutrina em si, como no
que respeita aos demais aspectos e manifestações da vida em geral, em todo o
Universo. Estamos assistindo a uma violenta aceleração em todos os processos
humanos. A
História ficou mais compacta, mais densa de fatos e acontecimentos, porque
opera simultaneamente em toda parte, num planeta que rapidamente se integrou
num circuito fechado de comunicação instantânea. Somos realmente uma grande
aldeia, onde os povos vivem acontecimentos solidários. Atravessamos uma crise
de obsoletismo filosófico. De repente, os homens começaram a perceber que as
estruturas de pensamento que os sustentaram no passado ficaram totalmente
obsoletas, sem vida, inúteis e até prejudiciais, sob muitos aspectos.
Uma das primeiras construções a ruir
foi a do dogmatismo religioso. Os escombros do edifício religioso soterraram
aspectos relevantes da moral. Uma vez julgando-se livres da tutela de Deus,
acharam os homens que estavam também liberados das obrigações morais. Com isto,
tornou-se incompreensível para muitos a posição do homem no contexto da sociedade
em que vive. Daí a desorientação e o “desligamento” geral, que está levando grandes
massas humanas a um existencialismo inconsequente, sem objetivo, que não traz em
si nenhuma proposta nova, nenhuma sugestão de retomada, nenhuma solução
construtiva, nenhuma alternativa aceitável.
É admirável, pois, que no meio desse
tumulto ético-filosófico, que arrasta na sua correnteza tantos milhões de seres
e tantas instituições respeitáveis, possamos contemplar com
inteira confiança e tranquilidade o rochedo inabalável do Espiritismo, onde são preservadas
as luzes que brilham agora e brilharão no futuro, durante o caos e na bonança
que um dia virá.
Meditando em torno dessas ideias,
uma pergunta pode nos ocorrer. Estamos nós, os encarnados,
correspondendo plenamente às esperanças e anseios dos Espíritos que lançaram a
Doutrina entre os homens? Que pensaria disso tudo Kardec reencarnado?
O momento que vivemos parece-nos
extremamente crítico. Também a Igreja primitiva foi muito bem no decorrer do
primeiro século de existência. A volta do Cristo era esperada
a qualquer momento e, portanto, a vida na Terra com as suas agruras e
frustrações passava a plano secundário. O mundo espiritual orientava os
primeiros passos da nova doutrina, através da mediunidade ostensiva ou da
inspiração. O amor fraterno, a pobreza,
o encantamento da lembrança do Cristo uniam todos os crentes, envolvendo-os num
halo de saudade, de afeição, de esperança, de expectativa. Paulo, na sua visão
universalista, difundia por toda parte a Boa Nova de que o Messias afinal viera
e não apenas
para o povo judeu, mas para toda gente, para todos os povos, para todos os tempos.
O Cristianismo não era uma seita judaica estritamente nacional, mas uma nova e
consoladora filosofia de vida, segundo a qual somos todos irmãos, filhos do
mesmo Pai e que, portanto, a lei maior era a do amor. O serviço religioso,
inteiramente livre de dogmas e
de ritos elaborados, se resumia no exercício das faculdades espirituais, de que
o Apóstolo dos Gentios dá notícia na sua notável Primeira Epístola aos
Coríntios. Não havia dogmas; apenas a mensagem incontaminada do Cristo,
transmitida em linha direta por aqueles que o ouviram e com ele conviveram.
A pregação do Mestre se processava
com os homens. Houve, porém, um momento, ao longo da história do primeiro
século, em que os puros ensinamentos de Jesus começaram sutilmente a receber
adições explicativas, doutrinas subsidiárias, pensamentos complementares, tudo,
evidentemente, na melhor das intenções e no mais legítimo dos propósitos.
Alguns achavam que o Cristianismo era uma nova lei provinda de Deus para
regulamentar as vidas humanas. Aqueles que a respeitassem seriam premiados com
as bênçãos da imortalidade. Outro grupo pensava que o ser humano era
essencialmente corrupto e que sua natureza mortal se transformava gradualmente
até alcançar a espiritualização. Caberia a Irineu, Bispo de Lyon - aí mesmo
onde renasceria Kardec um dia, no futuro - conciliar as duas correntes que
poderiam acabar cindindo a Igreja. 'Para o bispo pacificador - sentido, aliás,
do seu nome em grego - a salvação apresentava-se sob dois aspectos,
resolvendo-se "numa libertação do homem com relação ao demônio, e consequente
transformação da sua natureza pela realização de Deus em si mesmo. Em outras
palavras: ao libertar-se das suas paixões inferiores, o homem encontrava Deus.
Mas, isso era elaboração, já se formavam em torno dos ensinamentos de Jesus as
teias de uma teologia que a passagem do tempo e dos homens somente fez agravar
e complicar cada vez mais.
Para a Doutrina Espírita, o risco de
uma corrupção teológica é muito menor. Há, no entanto,
aspectos que oferecem campo ao exercício das nossas imperfeições. É que o
Espiritismo não é obra acabada, com todas as questões resolvidas, com todos os
aspectos da vida já pensados por nós. É uma síntese, um projeto grandioso,
desenvolvido até um ponto determinado pela sabedoria divina, para poder
conter-se nos limites do nosso conhecimento, da nossa faculdade de percepção e
estágio evolutivo. É uma estrutura montada em cima de um inabalável alicerce,
sobre a qual ainda há o que construir.
A cada um de, nós, seres encarnados
e desencarnados, cabe uma tarefa nas novas etapas
de construção, ampliação e embelezamento da obra. Essa obra não termina em Kardec;
ao contrário, começa nele. E agora, a 103 anos de seu regresso ao convívio de seus
companheiros do mundo superior e a 115 anos do lançamento de “O Livro dos
Espíritos””, o que teríamos a mostrar a Kardec, o que diríamos a ele, que
conselhos ouviríamos dele, que rumo nos indicaria ele? Um pouco de humildade
será de extrema utilidade para este exame de consciência, porque em todas as
tarefas humanas entra o componente da nossa imperfeição. E, neste caso, o valor
e a importância da obra tem que ficar acima de qualquer prurido de
personalismo.
Nosso objetivo não é buscar a
Doutrina para brilhar nela, mas fazê-la brilhar em nós, conduzir a tocha, sem
deixar que a chama esmoreça e se apague, porque não apenas nós precisamos da
luz, mas também o irmão que caminha ao nosso lado, e os que vêm atrás de
nós. É, pois, um movimento coletivo, gerado por uma doutrina formulada
coletivamente, para a grande coletividade humana. Se não atrapalharmos a marcha
dos nossos maiores, que seguem à frente, já estaremos fazendo bastante na
humildade da parte que nos toca. É, assim, enorme a responsabilidade daqueles
como nós, que estamos do lado de cá da vida, em tarefas doutrinárias. A
Doutrina está caminhando conosco, sem nós, ou a despeito de nós mesmos?
Neste novo outubro em que se
relembra Kardec mais uma vez, levantemos os olhos
para o seu vulto. Nele veremos as grandezas da sua humildade, a serenidade da
sua autoridade,
a segurança do seu trabalho, a profundeza da sua bondade, a ternura do seu
coração diante da figura imensa do Cristo. Na sua obra estão as estruturas
majestosas do futuro
e no seu Espírito as claridades que nem a sua modéstia consegue esconder.
Possamos nós, ou aqueles que retomarem de nossas mãos o facho, reconhecê-lo e
amá-lo, quando
voltar a viver entre os homens. Possa ele identificar em nosso pensamento a
pureza primitiva da Doutrina que nos confiou, enquanto foi buscar novo alento
no mundo maior.
Quando ele chegar de volta, diremos apenas:
- Amigo querido, aqui estivemos
apenas vigiando o fogo sagrado, para que não se extinguisse
a chama dos teus sonhos. Sê bem-vindo e retoma em paz as tuas tarefas de amor, que os tempos são ásperos e as dores se
aproximam.
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