quinta-feira, 19 de março de 2015

A Dor é instrumento da lei divina

A dor é
instrumento da lei divina

Parte 1
Indalício Mendes
Reformador (FEB) Jan 1973


            Tudo o que vive neste mundo, natureza, animal, homem, sofre e, todavia, o amor é a lei do Universo e por amor foi que Deus formou os seres. Contradição aparentemente formidável, problema angustioso, que perturbou tantos pensadores e os levou à dúvida e ao pessimismo. O animal está sujeito à luta ardente pela Vida. Entre as ervas do prado, as folhas e a ramaria dos bosques, nos ares, no seio das águas, por toda parte desenrolam-se dramas ignorados. Em nossas cidades prossegue sem cessar a hecatombe de pobres animais inofensivos, sacrificados às nossas necessidades ou entregues nos laboratórios ao suplício da vivissecção. Quanto à Humanidade, sua história não é mais que um longo martirológio. Através dos tempos, por cima dos séculos, rola a triste melopeia dos sofrimentos humanos; o lamento dos desgraçados sobe com uma intensidade dilacerante, que tem a regularidade de uma vaga. A dor segue todos os nossos passos; espreita-nos em todas as voltas do caminho. E, diante  dessa esfinge que o fita com seu olhar estranho, o homem faz a eterna pergunta: Por que existe a dor?" Assim começa o admirável Léon Denis um dos capítulos mais sedutores do seu famoso livro "O Problema do Ser, do Destino e da Dor". (1)

            A dor é uma consequência da nossa inferioridade moral e espiritual. É produzida pelo mau emprego que fazemos do livre arbítrio que possuímos. Nós somos a causa e o sofrimento é o efeito dos nossos erros. Se pensamos e agimos bem, de nada temos que recear; se pensamos mal e procedemos mal, podemos esperar o resultado desfavorável do nosso comportamento. Esse o conceito comum da lei cármica, como consequência, mediata ou imediata, do bom ou mau uso que fazemos da nossa liberdade de pensar e de proceder, liberdade que está intimamente ligada à responsabilidade que cabe a cada um pelo que pensa, pelo que diz e pelo que faz.

            O carma humano, pois é a ele que nos estamos referindo, é movimentado por nós mesmos. A errada interpretação da Lei é que nos faz supor que somos punidos ou recompensados por qualquer poder sobrenatural. Nada disso. “A ninguém devemos o destino senão a nós próprios", são as palavras de André Luiz, ao esclarecer que “nossos atos tecem asas de libertação ou algemas de cativeiro, para a nossa vitória ou nossa perda", e aduz: "Entretanto, se é verdade que nos vemos hoje sob as ruínas de nossas realizações deploráveis, não estamos sem esperança", porquanto, “se somos vítimas de nós mesmos, somos igualmente beneficiários da Tolerância Divina, que nos descerra os santuários da vida para que saibamos expiar e solver, restaurar e ressarcir". (2) A força motriz do carma é o livre arbítrio. Como temos a razão, a consciência, a capacidade de ponderar, comparar e decidir, é também inteiramente nossa a responsabilidade pelas atitudes que tomamos, como pelos pensamentos que as determinam.

            Evidentemente, a lei cármica não se resume na simples menção de "causa e efeito". Ela abrange um campo vasto, mesmo quando nos restringimos a apreciá-la segundo o campo de ação explicitamente humano, isto é, envolvendo os seres humanos, de per si, e em grupos pequenos ou desenvolvidos, como os de uma família, de uma cidade, de um país, de uma raça, etc. Afirma-se que o povo que se fixou nos Estados Unidos da América do Norte, na época da sua primeira colonização, provinha de Espíritos que, outrora, viveram encarnados no Império Romano. Os carmas coletivos são muito comuns, desde redobrados séculos. Tão antigos quanto os carmas individuais. Daí por que se podem considerar, sob a ideia dos ciclos, os homens e os povos.

            Os homens e as nações estão sujeitos à ação cármica simples ou acumulada. A Bíblia nos relata fatos tipicamente cármicos, repetidos pela História. As tragédias de nações, de povos inteiros destruídos, como os de Herculano, Pompéia e outros, são retratos dolorosos de resgates cármicos coletivos. O Espiritismo não admite o acaso, repele certos conceitos de coincidência, recusa o que se chama fatalidade, refuta o fatalismo. Ensina-nos a procurar a verdade dentro de nós mesmos, porque, desde que a encontremos, tornando-a uma bússola para o nosso comportamento individual, abrir-se-ão novos horizontes, mais claros e amplos, para que o Espírito avance mais resolutamente para o futuro. Cada qual tem o seu carma específico, porque o modo pelo qual o homem pensa e age é que cria o rumo que deverá seguir no momento adequado.

            Percebe-se, pelo que acabamos de dizer, que a alma humana é que tece o seu destino. Como as obrigações contraídas não lhe permitem resgatá-las todas de uma só vez, é o Espírito compelido a reencarnar, a fim de ir ressarcindo os débitos. Não raro, esses débitos se acumulam, exigindo, por isto mesmo, maiores resgates, provas mais dolorosas e mais longas, que podem estender-se por várias encarnações. Depende da criatura humana o futuro que a espera. O desejo de progredir e a necessidade de aperfeiçoar-se, em todos os sentidos, leva-a a engendrar novos compromissos, se não põe o seu comportamento dentro de normas suscetíveis de aliviar a carga que lhe pesa na consciência. Não há existências estanques, não há vidas isoladas. Antes, verifica-se um encadeamento impressionante das vidas de uns e de outros, a ponto de, em certos aspectos, dar a impressão de simples e fortuito acontecimento. Entretanto, a verdade é que não há o acaso em nossas vidas.

            Há muitos anos, por exemplo, ocorreu um naufrágio que amargurou a humanidade: o do belo navio "Titanic". Nele se reuniram pessoas de raças diferentes, de nacionalidades diversas, de crenças dessemelhantes, vindas de lugares distintos, a fim de realizarem uma viagem que seria, por todos os títulos, memorável. Chocando-se com um "iceberg", isto é, com um gigantesco bloco de gelo que se deslocava pelo mar, o "Titanic" afundou, causando inúmeras mortes, entre as quais a do célebre jornalista William Stead, amigo de Ruy Barbosa e adepto do Espiritismo. Fatos como o citado enchem os jornais do passado e da atualidade, como desmoronamentos, desabamentos, desastres de aviões, de transatlânticos, de trens, etc. Os que perdem a vida são os que tiveram chegada a hora do resgate. Os que se salvam, é porque ainda não haviam atingido o momento decisivo da quitação ou do ressarcimento.

            Convém frisar, no entanto, que nem tudo o que acontece deve ser atribuído ao carma. "Se o efeito recai sobre o ser imediatamente, isto é, se a , a causa e o efeito reativo se verificam simultaneamente, então não é possível falar de carma, porque, neste caso, o ser que produziu o efeito desejado o quis diretamente, pode prevê-lo e conhece todos os fatores que determinaram seu aparecimento. Em casos tais não se deve falar de carma, absolutamente(3) O curto ciclo de uma existência nem sempre revela as relações que ela tem com existências passadas. Mas podemos inferir, da observação do que ocorre na vida atual, o que representa a bagagem cármica de um indivíduo acossado pelo infortúnio, perseguido pela miséria, "desamparado da sorte". Propositadamente usamos esta última expressão: "desamparado da sorte". A vida humana não é uma loteria, como a muitos parece. Nela o determinismo cármico é incontestável. Assim se exprime Sânzio, a ilustre personagem mencionada por André Luiz, quando lhe pedem que diga algo sobre o carma: "Sim, o carma, expressão vulgarizada entre os hindus, que em sânscrito quer dizer "ação", a rigor, designa "causa e efeito", uma vez que toda ação ou movimento ,deriva de causa ou impulsos anteriores. Para nós expressará ,a conta de cada um, englobando os créditos e os débitos que, em particular, nos digam respeito. Por isso mesmo, há contas dessa natureza,  não apenas catalogando e definindo individualidades, mas também povos e raças, estados e instituições.” (4)

            No trabalho humano, não só a causa produz o efeito, como, em certos casos, o efeito cria oportunidade para o surgimento de nova causa, estabelecendo, dessa maneira, um círculo vicioso, comum na situação de indivíduos reincidentes no vício, cujas responsabilidades cármicas crescem, acumulando-se, provocando o prolongamento de expiações dolorosas. Neste trabalho ligeiro, que não nos dá ensanchas de entrar mais a fundo nas manifestações do carma, é nos impossível apresentar fatos que demonstrem quão verdadeira e estupenda é a dor como instrumento da Lei Divina. Convidamos o leitor que ainda não conheça “O Céu e o Inferno”, de Allan Kardec, a ler essa obra magnífica. A segunda parte desse livro se ocupa de espíritos felizes e de Espíritos infelizes, reproduzindo o que eles lhe disseram, em sessões absolutamente idôneas. Ver-se-á em cada caso uma expressão cármica peculiar ao estado deles na Espiritualidade.

                (1) Léon Denis - "O Problema do Ser, do Destino e da Dor", edição da FEB, 1947, págs. 411 e segs.
                (2) André Luiz - "Ação e Reação", edição da FEB, 1957, págs. 21 e segs.
                (3) R. Steiner - "Las manifestaciones deI Karma", edição da Glem, Buenos Aires, 1958, págs. 13 e segs.
                (4) André Luiz, ob. cit., págs. 83 e segs.


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