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Mas já ressuscitou. Oportunamente
diremos quando e de que
modo. Antes de o fazer, cumpre lançarmos ainda um rápido golpe de vista sobre
os pródromos e o desenvolvimento do que se pode considerar a crise contemporânea,
remontando não mais que vinte anos o curso da historia.
Nas vésperas de estalar a grande
conflagração, quando as nações europeias vergavam sob o peso de formidáveis
contribuições para manter os gastos da paz armada, isto é, um gigantesco
preparo bélico que devorava as economias dos povos, esmagando-os, havia não
obstante, ou por isso mesmo, um anseio geral pela paz, e não foram poucas as
vozes generosas que se elevaram - espécie de pressentimento do que seria a
tremenda catástrofe em preparativo - clamando por uma conciliação, de que a
mais alta expressão organizada, no ponto de vista das relações internacionais,
foi o Tribunal de Haia.
Tentava-se ao mesmo tempo construir
uma nova ordem de coisas que satisfizesse as aspirações, mais que isso, as exigências
das classes oprimidas e insatisfeitas com a remuneração do trabalho e a iniqua
distribuição das riquezas, sem contudo alterar a composição do estado social,
solapado em seus fundamentos por muitos séculos de mentira religiosa e de mistificação
politica. Solução de resto impossível, dado o antagonismo cada vez mais
acentuado entre os dois grandes agrupamentos em que se achavam divididas as
sociedades ocidentais, o proletariado e a burguesia, detentora esta última, até
certo ponto, das prerrogativas e vantagens da nobreza feudal desaparecida, a
que, sob nova e atenuada modalidade, havia sucedido.
Porque na consciência das massas,
que constituíam o primeiro desses agrupamentos e a elevação do nível da instrução
tornara receptivas às predicas do radicalismo socialista, adquirira
foros de convicção o postulado revolucionário de que "a propriedade é um
roubo". O que urgia, portanto, a seu ver, era socializar a riqueza, não
apenas tornando extensivos à classe proletária o conforto e as comodidades que
o "capitalismo", numa sorte de desafio à miséria em que a via
debater-se, reservava exclusivamente para si, mas sobretudo transferir às suas
mãos, arrebatando-o às da burguesia, o governo das nações. Era, numa palavra, a
subversão do estado social existente o que fazia objeto das reivindicações
inseridas no programa do radicalismo socialista, daí resultando extremarem-se
as posições e tornar-se de ano para ano mais intenso e ameaçador o conflito
latente, de que as manifestações do 1º de maio, por ocasião da celebração anual
da festa do trabalho, eram apenas superficiais e transitórias explosões.
Do estado de latência no terreno
econômico e doutrinário, com frequente repercussão no domínio da realidade prática
pelas repetidas greves que se declaravam, num entendimento internacional, ora
na Europa, ora na própria América do Norte, não tardaria porventura muitos anos
a passar o conflito à esfera política, transformado na grande e anunciada
revolução social, quando o atentado de Sarajevo, como uma corrente de ar frio
em atmosfera carregada de eletricidade, precipitando a catástrofe europeia,
serviu de pretexto à declaração de guerra.
Entrechocaram-se as massas humanas,
silenciaram as vozes doutrinárias, fez-se por toda parte a "união
sagrada" e durante quatro angustiosos anos o sangue fratricida derramado,
ensopou o solo da Europa, convertido em alucinante anfiteatro de extermínio, a
que todos os aperfeiçoamentos da ciência especializada, particularmente na mecânica e
na química, ofereceram, em diabólico requinte, os mais eficazes instrumentos.
Terminada a carnificina, uma estatística
anos depois organizada, sobre dados oficiais, pela Liga das Nações apresentava
estes espantosos resultados: - mortos (conhecidos e presumíveis)
12 milhões, 990 mil 571; - feridos 20 milhões, 297 mil 551 representando um
total de 33 milhões e perto de 300 mil vítimas, a maior destruição de vidas e
mutilação de seres
humanos que a história jamais registrara numa guerra, sem falar no valor das
propriedades destruídas, fruto do penoso labor de sucessivas gerações.
Dessa gigantesca tragédia, preparada
no plano material, ou dos efeitos, em que vivemos, pela ambição de predomínio
político de uns e fomentada pelas rivalidades comerciais de outros, mas urdida
no plano espiritual, ou das causas, em que todos os sucessos humanos são
previamente elaborados, pelas forças inteligentes que os dirigem, muitos foram
os ensinamentos resultantes, não sendo o menor deles a demonstração da
falência religiosa do ocidente.
Qual deve ser, com efeito, o papel
das religiões na educação, preparo e direção superior dos povos, senão incutir-lhes
como regra absoluta, a que se devem subordinar todos os seus atos, a obediência
aos imperiosos ditames da Lei de Deus e a prática da fraternidade - princípios
básicos que em todas elas se contêm?1
Ora, dentre as nações que se
empenharam na carnificina de 1914 a 1918 somente uma, a Turquia, aliada a esse
tempo dos impérios centrais, adota um código religioso diferente, o maometano.
Todas as outras se ornam com o título de cristãs.
Mas o Cristianismo, que, segundo a
palavra do seu Divino Instituidor, não viera destruir a lei antiga, no que,
evidentemente, ela encerrava de imutável, como preceitos de
moral eterna, isto é, o Decálogo, não somente manteve o imperativo insofismável
- "não matarás" - senão que o ampliou, sublimando-o na persuasiva
recomendação: "Amai-vos uns aos outros."
Que fizeram desses princípios
basilares as nações do ocidente, desde tantos séculos beneficiadas com a Boa
Nova? É verdade que não foi apenas a deflagração dessa última guerra e em todas
as fases do seu desenvolvimento que foram brutalmente desrespeitados:
excetuadas as gerações cristãs dos três primeiros séculos - essas legitimamente
portadoras da excelsa denominação - que se deixavam heroica e voluntariamente
matar, reproduzindo, para o triunfo, a que serviam, do seu altíssimo ideal, o
sacrifício do Cordeiro, não cessaram os povos do ocidente de praticar o morticínio
organizado, em guerras de conquista, sob a direção de príncipes que se
intitulavam cristãos e até - como o tivemos precedentemente ocasião de
assinalar - por instigação, quando não por iniciativa pessoal de papas,
divorciados de sua função puramente espiritual e das preocupações, que deveram
ser exclusivas, do seu ministério sagrado.
Desse erro inicial ter-se-ia contudo
até certo ponto redimido a igreja, se, transcorridos os primeiros séculos, após
a queda do império romano, em que, para substituir o seu poderio politico, era
a única instituição organizada, capaz de assumir a direção dos povos, se houvesse
gradualmente retrotraído, renunciando a toda interferência direta nos negócios
do século e pairando assim na atmosfera serena da influência exclusivamente
espiritual. O contrario, porém, foi o que temos visto. Obsidiada pela tentação
do poderio mundano, causa, entretanto, da ruína moral e do crescente desprestígio
que a vem debilitando, não cessou a igreja de obstinar-se na posse de um reino,
que jamais deveria pretender na terra, para ser fiel à palavra e ao plano
traçado pelo Mestre para a fundação da verdadeira Igreja Cristã.
Obliterado, em tais condições -
cumpre insistir – o senso de sua missão, rebelde às próprias lições da história,
que lhe mostraram, logo em seguida à perda completa do poder temporal e durante
o longo e tranquilo pontificado de Leão XIII, verdadeiro apóstolo, diplomata e
humanista, qual o rumo a seguir, pelo menos daí em diante, para reconquistar a
estima e o respeito, que viessem de futuro a reintegra-la em sua função
legitima, não soube ou não pode a igreja de Roma permanecer na obediência a
essa diretriz, que a experiência lhe indicava. O resultado foi continuar
meramente convencional, de fato inexistente, a autoridade do pretendido chefe
espiritual da cristandade.
Exageramos? - A primeira condição
para um chefe e que melhor caracteriza a sua supremacia é ser obedecido. Qual
foi, entretanto, nesse caso da conflagração europeia, a ação
do pontífice romano? Fosse ele depositário realmente da suprema autoridade
sobre os povos e sobre os dirigentes dos povos, e a sua palavra serena e
pacificadora, dominando o tumulto das paixões desenfreadas, teria sido
filialmente obedecida e a catástrofe seria conjurada.
Como, porém, fulminar de reprovação
a guerra e impor aos homens a paz o chefe de uma igreja que, em toda a sua
historia, não se limitara a envolver-se nas contendas do século,
disputando a sua parte, que pretendeu fosse a maior, no poderio mundano, mas
fizera tantas vezes ela própria a guerra, maculando-se de sangue? Ah! Quando o
AntiCristo induziu
os apóstatas da doutrina do Cristo, rotulados de seus legítimos depositários e
representantes, a enveredar por esse funesto resvaladouro, bem sabia até que
ponto os invalidava para a obra de paz e de confraternidade humana, em que
devera consistir primordialmente o seu apostolado.
E, se resultou nula a intervenção
pessoal do pontífice romano para evitar a conflagração e até mesmo,
posteriormente, para mitigar lhe os horrores, a ação do clero de todas as
nações nela envolvidas não foi, no mesmo sentido, somente negativa. Viram-se,
com efeito, os sacerdotes, de um e outro lado, deprecar à Divindade não o
restabelecimento da paz sem efusão de sangue, mas a vitória para as armas e as
bandeiras sob que, respectivamente, se alistavam. Mais ainda: nos campos de
batalha não se limitou a ação desses ministros do altar a levar o conforto
religioso aos moribundos e feridos; muitos
deles, incorporados às fileiras como simples combatentes, empunharam as mesmas
armas homicidas que os seus concidadãos, tomando ativa parte na peleja,
distinguindo-se por
"atos de bravura" e até procurando, como sucedeu com o clero da
França, inintencionalmente, é de crer, nos impulsos individuais, mas com
indubitável aplauso do partido político romano, reconquistar o apreço de que
ali decaíra a igreja nos anos precedentes, depois da revogação da Concordata.
Teriam do mesmo modo - esta consideração lhes não ocorreu de certo - feito jus à
aprovação daquele em cujo nome se
haviam comprometido a apascentar os homens, não empunhando mortíferos fuzis,
mas a cruz da redenção?
Há um outro fato, verificado durante
a grande guerra, não menos demonstrativo da falência religiosa do ocidente e
que o cronista internacional de importante diário assinalava, há alguns anos,
apreciando a diminuição moral das nações europeias no conceito dos povos orientais.
“O mundo islâmico - dizia ele - perdeu completamente o respeito pela moral e
pela civilização do cristianismo. Os muçulmanos viram que, enquanto todos os
beligerantes cristãos violavam os compromissos assinados poucos anos antes na
Conferência de Haia e, não raro, cometeram atrocidades, a única potência que
observou os tratados e cumpriu as estipulações das convenções internacionais,
que soube amenizar os horrores da luta, sendo compassiva para com os seus
prisioneiros e dispensando aos oficiais inimigos, que lhe caiam nas mãos, as
considerações devidas a sua posição, foi uma nação maometana, a Turquia."
Outro não tem sido o sistemático
objetivo do AntiCristo senão desprestigiar e tornar mesmo odiosa a religião
cristã, fomentando tais atitudes, contraditórias de seus preceitos básicos, nos
indivíduos e nos povos que se dizem a ela filiados, estabelecendo e entretendo
intencionalmente a confusão entre o Cristianismo e o catholicismo romano, que é
de fato
a sua desfiguração.
Prova disso teve o mundo há poucos
anos, corporificada na campanha levada a efeito pelo governo soviético da Rússia,
quando, por ocasião do Natal de 1925, o presidente dessa República
iniciou um "tríduo anti-religioso", fazendo publicar em seus jornais
artigos de combate a todas as religiões, especialmente ao Cristianismo, ora
assim, ora indiferentemente designado "catolicismo", promovendo além
disso, nos institutos científicos e nas escolas, assim como por meio da
radiotelefonia, conferencias apologéticas do ateísmo e "atacando rudemente
o catolicismo ."
Não foi sem doloroso confrangimento
que num diário desta capital lemos, a esse tempo, o telegrama do seu
correspondente em Moscou, que tal noticiava, acrescentando que,
além da publicação de artigos violentos no Pravda
e no Investia, em que eram
ridicularizadas as cerimônias do culto "cristão" que se celebra
"por ocasião da Natividade de Jesus Cristo", o presidente Rykoff
lançara, "um manifesto ao povo, atribuindo ao Cristianismo - note-se bem,
ao Cristianismo - os grandes males dos tempos atuais ", pois, acentuava
- "dele nasceu o capitalismo, a plutocracia, a divisão dos povos em oprimidos
e opressores."
Dolorosa, com efeito, essa caluniosa
e deplorável confusão, para quem sabe, como o assinalamos num dos primeiros capítulos,
que os primitivos cristãos, observando fielmente os preceitos do Mestre,
praticavam singelamente o comunismo, o verdadeiro comunismo, fraternista e
igualitário, fundado no amor e não em odiosos antagonismos de classes, e que as
deturpações, que desfiguraram a doutrina e perverteram os costumes, vieram
posteriormente pela mão dos infiéis depositários, vítimas das malévolas e
subjugadoras insinuações do AntiCristo. Com que júbilo teria este observado,
senão ainda sugerido, que os ignorantes da história evangélica, obnubilados
pelo sectarismo politico, atribuíam à doutrina daquele que viera libertar os
homens, sem distinção de classes, nem raças ou nacionalidades, de todas as
opressões morais, sociais e espirituais, atribuíam - dizemos - os males que,
dezenove séculos depois, ainda afligem esses mesmos homens e os tornam
infelizes, precisamente por haverem menosprezado os seus ensinamentos! Júbilo
diabolicamente vitorioso do responsável autor dessa obra transitoriamente
aniquiladora.
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