terça-feira, 30 de dezembro de 2014

7d. AntiCristo senhor do mundo


7d

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            Mas já ressuscitou. Oportunamente diremos quando e de que modo. Antes de o fazer, cumpre lançarmos ainda um rápido golpe de vista sobre os pródromos e o desenvolvimento do que se pode considerar a crise contemporânea, remontando não mais que vinte anos o curso da historia.

            Nas vésperas de estalar a grande conflagração, quando as nações europeias vergavam sob o peso de formidáveis contribuições para manter os gastos da paz armada, isto é, um gigantesco preparo bélico que devorava as economias dos povos, esmagando-os, havia não obstante, ou por isso mesmo, um anseio geral pela paz, e não foram poucas as vozes generosas que se elevaram - espécie de pressentimento do que seria a tremenda catástrofe em preparativo - clamando por uma conciliação, de que a mais alta expressão organizada, no ponto de vista das relações internacionais, foi o Tribunal de Haia.

            Tentava-se ao mesmo tempo construir uma nova ordem de coisas que satisfizesse as aspirações, mais que isso, as exigências das classes oprimidas e insatisfeitas com a remuneração do trabalho e a iniqua distribuição das riquezas, sem contudo alterar a composição do estado social, solapado em seus fundamentos por muitos séculos de mentira religiosa e de mistificação politica. Solução de resto impossível, dado o antagonismo cada vez mais acentuado entre os dois grandes agrupamentos em que se achavam divididas as sociedades ocidentais, o proletariado e a burguesia, detentora esta última, até certo ponto, das prerrogativas e vantagens da nobreza feudal desaparecida, a que, sob nova e atenuada modalidade, havia sucedido.

            Porque na consciência das massas, que constituíam o primeiro desses agrupamentos e a elevação do nível da instrução tornara receptivas às predicas do radicalismo socialista, adquirira foros de convicção o postulado revolucionário de que "a propriedade é um roubo". O que urgia, portanto, a seu ver, era socializar a riqueza, não apenas tornando extensivos à classe proletária o conforto e as comodidades que o "capitalismo", numa sorte de desafio à miséria em que a via debater-se, reservava exclusivamente para si, mas sobretudo transferir às suas mãos, arrebatando-o às da burguesia, o governo das nações. Era, numa palavra, a subversão do estado social existente o que fazia objeto das reivindicações inseridas no programa do radicalismo socialista, daí resultando extremarem-se as posições e tornar-se de ano para ano mais intenso e ameaçador o conflito latente, de que as manifestações do 1º de maio, por ocasião da celebração anual da festa do trabalho, eram apenas superficiais e transitórias explosões.

            Do estado de latência no terreno econômico e doutrinário, com frequente repercussão no domínio da realidade prática pelas repetidas greves que se declaravam, num entendimento internacional, ora na Europa, ora na própria América do Norte, não tardaria porventura muitos anos a passar o conflito à esfera política, transformado na grande e anunciada revolução social, quando o atentado de Sarajevo, como uma corrente de ar frio em atmosfera carregada de eletricidade, precipitando a catástrofe europeia, serviu de pretexto à declaração de guerra.

            Entrechocaram-se as massas humanas, silenciaram as vozes doutrinárias, fez-se por toda parte a "união sagrada" e durante quatro angustiosos anos o sangue  fratricida derramado, ensopou o solo da Europa, convertido em alucinante anfiteatro de extermínio, a que todos os aperfeiçoamentos da ciência especializada, particularmente na mecânica e na química, ofereceram, em diabólico requinte, os mais eficazes instrumentos.

            Terminada a carnificina, uma estatística anos depois organizada, sobre dados oficiais, pela Liga das Nações apresentava estes espantosos resultados: - mortos (conhecidos e presumíveis) 12 milhões, 990 mil 571; - feridos 20 milhões, 297 mil 551 representando um total de 33 milhões e perto de 300 mil vítimas, a maior destruição de vidas e mutilação de seres humanos que a história jamais registrara numa guerra, sem falar no valor das propriedades destruídas, fruto do penoso labor de sucessivas gerações.

            Dessa gigantesca tragédia, preparada no plano material, ou dos efeitos, em que vivemos, pela ambição de predomínio político de uns e fomentada pelas rivalidades comerciais de outros, mas urdida no plano espiritual, ou das causas, em que todos os sucessos humanos são previamente elaborados, pelas forças inteligentes que os dirigem, muitos foram os ensinamentos resultantes, não sendo o menor deles a demonstração da falência religiosa do ocidente.

            Qual deve ser, com efeito, o papel das religiões na educação, preparo e direção superior dos povos, senão incutir-lhes como regra absoluta, a que se devem subordinar todos os seus atos, a obediência aos imperiosos ditames da Lei de Deus e a prática da fraternidade - princípios básicos que em todas elas se contêm?1

            Ora, dentre as nações que se empenharam na carnificina de 1914 a 1918 somente uma, a Turquia, aliada a esse tempo dos impérios centrais, adota um código religioso diferente, o maometano. Todas as outras se ornam com o título de cristãs.

            Mas o Cristianismo, que, segundo a palavra do seu Divino Instituidor, não viera destruir a lei antiga, no que, evidentemente, ela encerrava de imutável, como preceitos de moral eterna, isto é, o Decálogo, não somente manteve o imperativo insofismável - "não matarás" - senão que o ampliou, sublimando-o na persuasiva recomendação: "Amai-vos uns aos outros."

            Que fizeram desses princípios basilares as nações do ocidente, desde tantos séculos beneficiadas com a Boa Nova? É verdade que não foi apenas a deflagração dessa última guerra e em todas as fases do seu desenvolvimento que foram brutalmente desrespeitados: excetuadas as gerações cristãs dos três primeiros séculos - essas legitimamente portadoras da excelsa denominação - que se deixavam heroica e voluntariamente matar, reproduzindo, para o triunfo, a que serviam, do seu altíssimo ideal, o sacrifício do Cordeiro, não cessaram os povos do ocidente de praticar o morticínio organizado, em guerras de conquista, sob a direção de príncipes que se intitulavam cristãos e até - como o tivemos precedentemente ocasião de assinalar - por instigação, quando não por iniciativa pessoal de papas, divorciados de sua função puramente espiritual e das preocupações, que deveram ser exclusivas, do seu ministério sagrado.

            Desse erro inicial ter-se-ia contudo até certo ponto redimido a igreja, se, transcorridos os primeiros séculos, após a queda do império romano, em que, para substituir o seu poderio politico, era a única instituição organizada, capaz de  assumir a direção dos povos, se houvesse gradualmente retrotraído, renunciando a toda interferência direta nos negócios do século e pairando assim na atmosfera serena da influência exclusivamente espiritual. O contrario, porém, foi o que temos visto. Obsidiada pela tentação do poderio mundano, causa, entretanto, da ruína moral e do crescente desprestígio que a vem debilitando, não cessou a igreja de obstinar-se na posse de um reino, que jamais deveria pretender na terra, para ser fiel à palavra e ao plano traçado pelo Mestre para a fundação da verdadeira Igreja Cristã.

            Obliterado, em tais condições - cumpre insistir – o senso de sua missão, rebelde às próprias lições da história, que lhe mostraram, logo em seguida à perda completa do poder temporal e durante o longo e tranquilo pontificado de Leão XIII, verdadeiro apóstolo, diplomata e humanista, qual o rumo a seguir, pelo menos daí em diante, para reconquistar a estima e o respeito, que viessem de futuro a reintegra-la em sua função legitima, não soube ou não pode a igreja de Roma permanecer na obediência a essa diretriz, que a experiência lhe indicava. O resultado foi continuar meramente convencional, de fato inexistente, a autoridade do pretendido chefe espiritual da cristandade.

            Exageramos? - A primeira condição para um chefe e que melhor caracteriza a sua supremacia é ser obedecido. Qual foi, entretanto, nesse caso da conflagração europeia, a ação do pontífice romano? Fosse ele depositário realmente da suprema autoridade sobre os povos e sobre os dirigentes dos povos, e a sua palavra serena e pacificadora, dominando o tumulto das paixões desenfreadas, teria sido filialmente obedecida e a catástrofe seria conjurada.

            Como, porém, fulminar de reprovação a guerra e impor aos homens a paz o chefe de uma igreja que, em toda a sua historia, não se limitara a envolver-se nas contendas do século, disputando a sua parte, que pretendeu fosse a maior, no poderio mundano, mas fizera tantas vezes ela própria a guerra, maculando-se de sangue? Ah! Quando o AntiCristo induziu os apóstatas da doutrina do Cristo, rotulados de seus legítimos depositários e representantes, a enveredar por esse funesto resvaladouro, bem sabia até que ponto os invalidava para a obra de paz e de confraternidade humana, em que devera consistir primordialmente o seu apostolado.

            E, se resultou nula a intervenção pessoal do pontífice romano para evitar a conflagração e até mesmo, posteriormente, para mitigar lhe os horrores, a ação do clero de todas as nações nela envolvidas não foi, no mesmo sentido, somente negativa. Viram-se, com efeito, os sacerdotes, de um e outro lado, deprecar à Divindade não o restabelecimento da paz sem efusão de sangue, mas a vitória para as armas e as bandeiras sob que, respectivamente, se alistavam. Mais ainda: nos campos de batalha não se limitou a ação desses ministros do altar a levar o conforto religioso aos moribundos e feridos; muitos deles, incorporados às fileiras como simples combatentes, empunharam as mesmas armas homicidas que os seus concidadãos, tomando ativa parte na peleja, distinguindo-se por "atos de bravura" e até procurando, como sucedeu com o clero da França, inintencionalmente, é de crer, nos impulsos individuais, mas com indubitável aplauso do partido político romano, reconquistar o apreço de que ali decaíra a igreja nos anos precedentes, depois da revogação da Concordata. Teriam do mesmo modo - esta consideração lhes não ocorreu de certo - feito jus à aprovação daquele em cujo nome se haviam comprometido a apascentar os homens, não empunhando mortíferos fuzis, mas a cruz da redenção?

            Há um outro fato, verificado durante a grande guerra, não menos demonstrativo da falência religiosa do ocidente e que o cronista internacional de importante diário assinalava, há alguns anos, apreciando a diminuição moral das nações europeias no conceito dos povos orientais. “O mundo islâmico - dizia ele - perdeu completamente o respeito pela moral e pela civilização do cristianismo. Os muçulmanos viram que, enquanto todos os beligerantes cristãos violavam os compromissos assinados poucos anos antes na Conferência de Haia e, não raro, cometeram atrocidades, a única potência que observou os tratados e cumpriu as estipulações das convenções internacionais, que soube amenizar os horrores da luta, sendo compassiva para com os seus prisioneiros e dispensando aos oficiais inimigos, que lhe caiam nas mãos, as considerações devidas a sua posição, foi uma nação maometana, a Turquia."

            Outro não tem sido o sistemático objetivo do AntiCristo senão desprestigiar e tornar mesmo odiosa a religião cristã, fomentando tais atitudes, contraditórias de seus preceitos básicos, nos indivíduos e nos povos que se dizem a ela filiados, estabelecendo e entretendo intencionalmente a confusão entre o Cristianismo e o catholicismo romano, que é de fato a sua desfiguração.

            Prova disso teve o mundo há poucos anos, corporificada na campanha levada a efeito pelo governo soviético da Rússia, quando, por ocasião do Natal de 1925, o presidente dessa República iniciou um "tríduo anti-religioso", fazendo publicar em seus jornais artigos de combate a todas as religiões, especialmente ao Cristianismo, ora assim, ora indiferentemente designado "catolicismo", promovendo além disso, nos institutos científicos e nas escolas, assim como por meio da radiotelefonia, conferencias apologéticas do ateísmo e "atacando rudemente o catolicismo ."

            Não foi sem doloroso confrangimento que num diário desta capital lemos, a esse tempo, o telegrama do seu correspondente em Moscou, que tal noticiava, acrescentando que, além da publicação de artigos violentos no Pravda e no Investia, em que eram ridicularizadas as cerimônias do culto "cristão" que se celebra "por ocasião da Natividade de Jesus Cristo", o presidente Rykoff lançara, "um manifesto ao povo, atribuindo ao Cristianismo - note-se bem, ao Cristianismo - os grandes males dos tempos atuais ", pois, acentuava - "dele nasceu o capitalismo, a plutocracia, a divisão dos povos em oprimidos e opressores."

            Dolorosa, com efeito, essa caluniosa e deplorável confusão, para quem sabe, como o assinalamos num dos primeiros capítulos, que os primitivos cristãos, observando fielmente os preceitos do Mestre, praticavam singelamente o comunismo, o verdadeiro comunismo, fraternista e igualitário, fundado no amor e não em odiosos antagonismos de classes, e que as deturpações, que desfiguraram a doutrina e perverteram os costumes, vieram posteriormente pela mão dos infiéis depositários, vítimas das malévolas e subjugadoras insinuações do AntiCristo. Com que júbilo teria este observado, senão ainda sugerido, que os ignorantes da história evangélica, obnubilados pelo sectarismo politico, atribuíam à doutrina daquele que viera libertar os homens, sem distinção de classes, nem raças ou nacionalidades, de todas as opressões morais, sociais e espirituais, atribuíam - dizemos - os males que, dezenove séculos depois, ainda afligem esses mesmos homens e os tornam infelizes, precisamente por haverem menosprezado os seus ensinamentos! Júbilo diabolicamente vitorioso do responsável autor dessa obra transitoriamente aniquiladora.


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