6c
*
Comentando a decisão adotada a cerca
da autoridade absolutista e discricionária conferida ao pontífice, assim se
exprime o historiador:
"Esse resultado era fácil
de prever-se: por uma parte os bispos, em vez de aspirar a uma autoridade nova
em detrimento da do papa, sentiam a necessidade de salvar a sua à sombra da de
Roma; por outro lado os príncipes tinham compreendido que a paz e a segurança
dos Estados estavam sendo comprometidas pelas contendas teológicas e que,
portanto, mais lhes convinha fazer com que o poder eclesiástico lhes servisse
de apoio do que discutir-lhe os limites. Contudo, as dissenções renasciam
incessantemente no seio da assembleia, e os soberanos formulavam queixas e
reclamações: diziam que os debates se iam excessivamente protelando, que a
discussão não era livre, que as deliberações vinham preparadas de Roma e que os
prelados curavam demasiadamente do engrandecimento do papado. A verdade, porém,
é que eles intrigavam tanto como a cúria, assustavam-se com certas reformas e
queriam que o concílio servisse para os seus fins particulares."
"Pio
IV e os seus teólogos - prossegue - tiveram um trabalho infinito para dirigir
o concílio através de tão encontradas pretensões estranhas e ir sempre
satisfazendo as próprias; por fim despacharam-se as matérias concernentes ao
casamento, ao purgatório, à invocação dos santos, ao culto das imagens e das
relíquias, aos jejuns e às indulgências."
E, depois de enumerar as decisões
relativas a assuntos disciplinares, como as ordenações, o sacrifício, as
investiduras eclesiásticas abrangidas no sacramento da ordem, a residência dos
prelados e a independência do clero em relação ao poder civil, assinala:
"O concílio
encerrou-se a 26 de janeiro de 1564, e Pio IV confirmou solenemente os seus
decretos, Quem tinha esperado que a união se restabelecesse na igreja, viu que,
pelo contrário, havia sido proclamada a sua divisão. Quando a
assembleia se dissolveu, já cada qual tinha tomado o seu partido; os interesses
políticos influíam nas opiniões religiosas, e o mundo estava dividido em dois
campos. O resultado mais proveitoso do concílio foi, pois, aliviar a doutrina
católica de muitas superfluidades e de alguns absurdos, reduzir a teologia a um
corpo de ciência definido e desembaraça-la da dialética. Mas nem sequer os católicos
aceitaram, todos sem restrição, as decisões conciliares. Aceitou-as, primeiro
que os outros Estados, a república de Veneza e seguiram-se lhe de perto a
Toscana, a Polônia e Portugal. Mas Filipe II só as admitiu com a reserva de
observar na execução as leis dos seus Estados. Em França, Carlos IX
rejeitou-as, porque lesavam as prerrogativas regias e podiam exasperar os
dissidentes; quando Henrique IV resolveu aceita-las, encontrou oposição, de
modo que, embora tacitamente reconhecidas, nunca foram recebidas formalmente no
reino. Na Alemanha, visto que o pontífice recusava a comunhão sob duas espécies
e o casamento dos padres, o concílio nunca foi admitido como lei do Império,
mas tão somente a titulo subsidiário, embora os pontos de doutrina se
considerassem como emanados da Igreja, e o mesmo sucedeu na Hungria."
Pio IV fez redigir em 1564 uma
profissão de fé, que foi assinada por todos os eclesiásticos e doutores,
"em que expôs o dogma com mais clareza do que o expusera o concílio".
Foi também posteriormente publicado,
em obediência à determinação adotada em Trento, um catecismo, de cuja redação
se encarregou Carlos Borromeu, auxiliado por três dominicanos, para uso e
instrução do povo. Veio a ser esse o Catecismo romano, em sua edição de 1574
sob a forma de perguntas e respostas.
"Apesar das
desordens da época - remata o historiador - e do orgulho, que receava dar razão aos dissidentes, realizou-se em
parte a reforma moral da igreja, A idolatria clássica cedeu o passo ao
sentimento religioso nas artes, nas letras e no teor de vida. Celebraram-se muitos
concílios provinciais, para extirpar as superstições e as práticas absurdas.
Decidiu-se reunir outros sínodos de quando em quando, e apareceram reformadores
tão zelosos que se diria esperavam fazer voltar a igreja aos tempos apostólicos.
Carlos Borromeu, em seu RITUAL, restabeleceu
as penitências dos primeiros séculos; João Francisco Bonomo, bispo de Vercelli,
delegado para visitar a diocese de Como, dirigiu severas admoestações ao
prelado; fez-lhe notar que não devia ter em seu uso móveis de preço e, muito
menos, vasos e candelabros de prata, cujo valor podia ser aplicado à
sustentação dos pobres. Gregório XIII, para executar rigorosamente os decretos
do concilio de Trento, mandou visitadores apostólicos encarregados de examinar
as contas das igrejas, dos estabelecimentos de beneficência e das confrarias ;
esses delegados, porém, rígidos demais, provocaram descontentamentos, e alguns
príncipes, a exemplo de Filipe II, os excluíram dos seus Estados."
Como efeitos salutares da reação
moral operada na igreja e resultante das deliberações adoptadas em Trento o
historiador menciona ainda as severas medidas decretadas por Pio V, levadas a
extremo exagero, como a condenação a permanecer um dia inteiro de pé à porta da
igreja, com as mãos atadas às costas, lançada contra quem violasse o domingo, a
pena de açoites, em caso de reincidência, e, no de nova reincidência, a de
"ser mandado para as galés, depois
do carrasco lhe furar a língua"; recorda que a corte de Roma e a própria
cidade assumiram uma fisionomia inteiramente eclesiástica e nelas se introduziu
o espírito de regularidade"; assinala que
"a púrpura e a mitra foram ilustradas por homens notáveis", cujos
nomes indica, assim na Itália como na França e em Portugal (frei Bartolomeu dos
Mártires, por exemplo, "o santo arcebispo de Braga") e acentua:
"A proteção ao
saber tomou melhor direção. Na decadência dos estudos religiosos, os jesuítas,
animados pelo espírito do catolicismo reformado, puderam apoderar-se do ensino;
proveram de colégios, primeiro, Viena, depois Colônia e Ingolstadt, donde se
espalharam pela Áustria, pelas margens do Reno e do Meno e estabeleceram-se em
Munique, a "Roma alemã". O seu fim era tornar as universidades católicas
não inferiores ás dos protestantes. Nessa invasão de um novo gênero da Europa
germânica pela Europa romana, os teólogos alemães, em luta uns com os outros e
divididos em matéria de crenças, eram vencidos por espíritos menos elevados,
porém concordes e que representavam uma doutrina fixa e completamente definida.
Ao mesmo tempo os jesuítas instituíam escolas para os pobres e aplicavam-se à pregação
com grade êxito. "
Essa ampliação do papel dos sectários
de Loiola no movimento de restauração promovido na igreja, após a assembleia de
Trento, estava na lógica das suas atitudes e era o corolário,
de certo modo, inevitável da preponderância exercida naquela assembleia, que
lhes deveu, incontestavelmente, o êxito, do começo ao fim, dos seus trabalhos.
Porque, como o assinalara inicialmente o historiador, ocupando-se das
preliminares do concilio:
"Os abusos tinham
criado raízes, e os interesses pessoais obstavam a promtas e salutares mudanças
- O alto clero envelhecera no meio de costumes e de ideias muito arredadas da
austeridade religiosa. O clero inferior, com poucas exceções,
seguia os exemplos dos chefes e, além disso, a educação não lhe havia dado as
bem temperadas armas de que precisaria para uma luta decisiva. A disciplina se
tinha relaxado nas ordens monásticas, algumas das quais davam escândalo com a
sua opulência ociosa e outras provocavam o escárnio com a sua pobreza,
degenerada em sujidade, com a simplicidade tornada ignorância e até com o seu
zelo, ingênuo de mais para uma época de dúvida e discussão" Pelo que,
conclui que "Inácio de Loiola apareceu muito a propósito para fornecer a
Roma a milícia de que ela precisava."
A influência que, a partir do concílio
de Trento e durante os dois primeiros séculos que se lhe seguiram, exerceu essa
milícia nos negócios da igreja, tanto como a destacada personalidade do seu criador,
merecem que nos detenhamos um pouco a examiná-las, sobretudo porque numa e na
outra se insinua irrefragavelmente, para quem tenha "olhos de ver", a
ação dominadora do AntiCristo, pondo em prática o seu método habitual de subjugar
a consciência dos desamparados da humildade cristã, quando os não possa
arrebatar no tumulto das dissoluções mundanas, para os converter em
instrumentos de opressão e intolerância, antagônicas da mansidão evangélica. As
medidas de reabilitação moral, exigidas pela situação da igreja e que deveriam
fazer objeto das deliberações do concílio, reclamavam homens de fé. Em seu lugar
surgiram fanáticos, sendo a primeira vítima o fundador da Companhia de Jesus,
cujo determinismo psicológico, à mingua de uma longa preparação anterior, deu lugar
à deturpação do que, de começo, se revelara como vocação verdadeiramente
genial.
É o que, numa apreciação,
necessariamente sintética, dada a índole deste trabalho, ressalta do exame de
sua vida e sua obra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário