6b
"Era costume da Igreja - refere o historiador - se alguma heresia grave perturbava a sua paz
interna, reunir-se em concílio; esse remédio, oportuno quando a autoridade
eclesiástica ainda tinha prestígio, foi proposto logo que se manifestou o
movimento (reformista), e os próprios protestantes apelaram para o concílio,
das excomunhões dos papas. O imperador desejava que os dois partidos se
conciliassem. Os católicos acreditavam que a tão falada reunião poria termo à
discórdia; mas Clemente VII, nascido ilegitimamente e pouco legitimamente
elevado ao pontificado, não podia desejar uma assembleia que teria muito que
lhe censurar a ele e de acusar a instituição por ele representada, e que, além
disso, talvez se declarasse superior ao papado, como a de Basileia.
Tergiversou, portanto, e opôs muitas dificuldades à reunião do concilio,
dizendo principalmente que, se era preciso um sínodo para definir doutrinas
novas, não o podia ser para definir as que já tinham sido objeto de sentenças
definitivas."
"Alexandre
Farnesio, que Clemente VII recomendara à hora da morte, sucedeu-lhe com o nome
de Paulo III (novembro de 1534). Tendo-se
aplicado desde a infância às letras e às artes, principiou o mais famoso palácio
do mundo e edificou uma esplêndida casa de campo perto de Bolsena; seduzido
pelo exemplo de uma época de costumes tão fáceis, teve muitos filhos.
Geralmente benquisto, afável, suntuoso, timbrava em não dizer uma palavra que
não fosse clássica, mas acreditava no influxo dos astros."
Fazendo-se com tudo rodear de
excelentes cardeais, a fim de com eles repartir as graves responsabilidades de
sua complexa missão, empreendeu algumas medidas preparatórias da grande assembleia,
mas somente onze anos depois de sua investidura (setembro de 1545), conseguiu
reunir em Trento o concílio, que devia prolongar por dezoito, intermitentes,
anos os seus trabalhos e no qual se fez representar, como presidentes,
por três legados seus, que ele chamava "anjos da paz".
O fim da assembleia, segundo o
declarou, "era extirpar as heresias,
corrigir os costumes e a disciplina, restabelecer a concórdia entre os príncipes
cristãos".
"Os trabalhos preliminares - refere ainda o historiador
- foram longos; houve renhida discussão, verdadeira luta entre duas opiniões
antagônicas. O partido francês, de que era um dos corifeus o cardeal Contarini,
desejava a reforma dos abusos papais, esperava que da confissão dos pecados e
da sincera penitência viesse a resultar o restabelecimento da unidade da
Igreja; o partido dos jesuítas, pelo contrário, queria apenas retemperar a
autoridade do papa e afirmar a inflexibilidade do dogma. Esses dois partidos se
digladiaram vigorosamente quando se tratou de saber se o concílio havia de
tratar da disciplina ou do dogma, da reforma dos costumes eclesiásticos ou da
renovação da fé; venceram afinal os jesuítas, e as questões teológicas
preteriram as disciplinares. Em vista dessa vitória, os protestantes (que não
compareceram ao concílio - advirtamos - por terem legitimamente pretendido, sem
resultado, "que o papa comparecesse
no seu seio, não como chefe, mas como parte", e haviam recusado
"submeter-se previamente às suas decisões se os não admitissem nele e com voto deliberativo") declararam na dieta de
Ratisbonna (1546) que se não submeteriam às decisões do concílio."
Estava assim frustrado um dos
principais objetivos da assembleia, que era obter o restabelecimento da
unificação no rebanho chefiado pela igreja romana, e esse primeiro resultado
foi devido, como se vê, à preponderância dos jesuítas nas suas deliberações.
Essa influência dominadora continuou a se fazer sentir assim nas questões dogmáticas,
que eclipsaram inteiramente as puras doutrinas evangélicas em seu espírito de
mansidão e de concórdia, como no referente à discricionária autoridade papal,
consoante, no prosseguimento da narrativa; que resumimos, o assinala o
historiador. Traçado o mencionado rumo na orientação dos trabalhos, o concílio,
depois de muito tempo gasto em tratar do cerimonial, das formas, do voto e até
do seu titulo, começou a revisão do sistema católico, com o firme propósito da
sua grande maioria de não fazer concessões. As primeiras deliberações versaram
sobre assuntos capitais: declarou-se que todos os livros do antigo e do novo
Testamento tinham igual autoridade; reconheceu-se como autêntica a tradução da
Vulgata, de que se mandou fazer uma edição exata; admitiu-se o dogma do pecado
original e condenou-se quem o negasse".
"A doutrina da graça e
da justificação, que era uma das causas principais da dissidência, foi tratada
logo nas primeiras sessões. Contarini emitiu uma opinião conciliadora, fundada
nos argumentos de Pflug e Gropper, que haviam impugnado Lutero. Queria ele que
o concílio reconhecesse a coexistência de duas justiças: uma inerente ao homem,
imanente nele, ativa nas suas obras, manifesta nas suas virtudes e pela qual
ele é filho de Deus, mas só por si insuficiente; outra, a par dessa, ou
superior a ela, a justiça divina, a do Cristo, por cujos merecimentos a
humanidade é perdoada e remida, e que é a única salvadora, a única redentora, a
única verdadeiramente completa. Mas os jesuítas Lainez e Salmeron rebateram
esse plano de conciliação. Sustentaram que a justiça divina, inegavelmente
distinta da humana, nem por ser distinta se separa do mundo, porque só se
revela pela fé e pelas obras; que o homem não é simultaneamente governado por
ambas, por um livre arbítrio e uma predestinação coexistentes e coeficientes;
que Deus revela-se na fé e nas boas obras, e que os merecimentos das obras
elevam a graça. A assembleia adotou essa opinião, reconheceu também a
necessidade de desenvolver a graça com o auxílio dos sacramentos, e assim
repeliu terminantemente qualquer transação com o protestantismo."
Absorvidos, como se vê, pela
preocupação de fazerem prevalecer os cânones de uma teologia que tinha tudo de
humana, em lugar de buscarem na humildade de coração, que não
possuíam, as inspirações da Verdade divina, esqueceram-se de remontar
singelamente à fonte em que toda ela se contém, isto é, o Evangelho. Porque aí
encontrariam, como tivemos,
em capítulo anterior, ocasião de o assinalar, claramente enunciada a lei
providencial da pluralidade de existências, mediante a qual todas as faltas
cometidas no passado vêm a ser gradualmente resgatadas e a salvação final se
oferece a todos os homens, como destino traçado por Deus às suas criaturas.
Preferiram obstinar-se na ratificação do iníquo dogma do pecado original,
transmissível por herança, e na proscrição, portanto, das doutrinas de Orígenes,
que sustentava aquele magno princípio, para emaranhar-se em sutilezas que,
longe de resolver o problema das desigualdades e do destino humano, o deixam
envolto em inextricáveis obscuridades, com a única vantagem, meramente
temporal, para a igreja de constituir-se ela o árbitro daquele destino,
mediante a imposição de "sacramentos". Prevaleceram desse modo as
preocupações e os interesses mundanos sobre as injunções superiores da Verdade.
Como, porém, não ser assim, se nada,
nas deliberações desse concílio, indica terem os seus membros inquirido, no
santuário de suas consciências, se o que faziam era do agrado do Senhor Jesus e
conforme aos seus ensinamentos? Deliberavam como filhos do século,
representantes que eram do partido politico dominante na direção da
cristandade.
Por isso, adverte com razão o
historiador que, na discussão das doutrinas, a que acabamos de aludir, "e
em todas as outras os jesuítas foram os janizaros da papada", a tal
ponto se fazendo sentir a sua preponderância que, "como Lainez sofria de
febres intermitentes, suspendiam-se as sessões nos dias em que ele tinha
acessos."
O concílio teve, de resto, que ser
suspenso em 1547 por Paulo III, para evitar um cisma quase suscitado por um
antagonismo com o imperador Carlos V, para ser reaberto em dezembro de 1550 por
Júlio III que sucedeu àquele pontífice.
Dissolvido em 1552, depois de haver
tratado apenas de alguns sacramentos, só tornou a reunir-se em dezembro de
1560, graças aos esforços do eminente prelado Carlos Borromeu, que adquirira
notável e legítimo prestígio no pontificado de Pio IV - então reinante.
Nesse longo interregno, que
correspondeu exatamente ao pontificado do cardeal Caraffa, elevado ao trono com
o nome de Paulo IV, ocorreram alguns sucessos dignos de registro com o índice
do nível moral verificado na corte pontifícia, no momento em que se conjugavam,
ou deviam conjugar-se, esforços no sentido de restituir à igreja, com a
integridade de costumes dos seus membros, o prestígio espiritual, que só lhe
poderia advir de uma perfeita conformidade com os preceitos evangélicos.
Pondo de parte o espírito mundano e
dominador de que se mostrou animado nos primeiros anos de sua investidura, em
cujo ato declarou, respondendo à interrogação que lhe fora dirigida, que queria
ser tratado "como um grande príncipe", assinalemos apenas que, na
segunda fase do seu pontificado, em que procurou corrigir os desacertos de sua
política e os abusos de sua autoridade espiritual, Paulo IV "quis dar à inquisição um vigor insólito,
empregando nela seculares: mandou prender o cardeal Morone e o bispo de Modena,
Egídio Foscarari, prelados muito considerados, Thomaz San Felice, bispo de Ia
Cava, Luiz Priuli, bispo de Brescia, acusados de terem professado opiniões heréticas
ou defendido mal os príncipes ortodoxos. A morte livrou o cardeal Pool de ser
tratado do mesmo modo, e outros puderam justificar-se; mas em Roma foram
queimadas e em Veneza afogadas diversas pessoas; nesta última cidade entraram
três nobres para o tribunal do Santo Oficio, muitas outras pessoas tiveram de
retratar-se por medo do castigo, e imaginou-se que as violências da inquisição
podiam dar ao papado a autoridade moral que lhe não adviera do concilio".
Em consequência desses e de outros
excessos, ''o povo concebeu tanto ódio
contra Paulo IV que lhe derribou a estátua, apenas ele morreu, e incendiou o
palácio inquisitorial."
Animado de um espírito diferente,
seu sucessor, Pio IV, "percorria a
cavalo as ruas da cidade, atendendo às pessoas que se lhe dirigiam; no pavilhão
de Belvedere dava audiência sem etiqueta aos embaixadores; reprovava os rigores
do seu antecessor e, apesar de ligado pela sua origem com a casa da Áustria,
compreendeu os males da guerra e assegurou a Roma anos de sossego e de abundância".
Entretanto, "mandou matar os três
sobrinhos de Paulo IV, sem exceção do cardeal, talvez em obediência às
sugestões da Espanha, que queria castigar Caraffa por se ter gabado de lhe
arrebatar o reino de Nápoles. Foi também nepótico e deu o arcebispado de Milão,
e logo depois a púrpura, a um mancebo de vinte e dois anos que nem sequer tinha
recebido ordens."
Trata-se do aludido Carlos Borromeu,
que veio a ser canonizado e de quem diz o historiador: "felizmente o agraciado era digno das mercês;
foi um dos prelados que mais honraram a igreja romana e mais trabalharam para a
sua restauração" .
"Os seus principais
esforços - prossegue, depois de enumerar os consideráveis serviços por ele prestados
- convergiram para a conclusão do concílio de Trento, que tornou efetivamente a
reunir-se (29 de novembro de 1560). A nova assembleia
foi mais numerosa e imponente que a primeira e nela tomaram parte muitos homens
eminentes", cuja nomenclatura indica, mas pouco interesse apresentaria
para o assunto que nos preocupa.
"A
história desse concílio - acrescenta - que ficou escrita por Paulo Sarpi e
Pallavicino, é muito complicada e compreende episódios pouco edificantes, que
tiraram uma grande parcela de autoridade moral às deliberações que nele se tomaram.
No estado de fermentação em que se achavam os espíritos, foi perigoso reuni-lo,
foi difícil, senão impossível, conte-lo dentro de justos limites. Os príncipes
protestantes não quiseram intervir nele; as pretensões dos reis católicos, os
protestos, os conluios dos cardeais e das nações criaram inúmeros e variadíssimos
obstáculos a sua direção. Urdiram-se intrigas, empregaram-se estratagemas,
subornaram-se consciências, praticaram-se violências. Como os prelados
estrangeiros se mostravam exigentes e não davam sólido apoio ao partido de
Roma, esse partido encheu o concilio de bispos italianos, mais pobres, mais dóceis;
e, para que eles preponderassem, fez adotar a votação individual, em vez da
votação por nações. Para nos resumirmos: os acérrimos defensores dessa famosa
assembleia confessam que algumas das suas decisões foram determinadas por
motivos políticos, e essa confissão deixa entrever quanto o tumulto das paixões
e dos interesses mundanos deve ter afugentado de Trento a pomba do Espírito
Santo. "
"Na
primeira sessão do concílio, celebrada durante a guerra de Smalkalde, o dogma
da justificação, que ficou sendo a base do sistema católico, tinha sido
definido claramente; restava discutir as questões de hierarquia. A residência e a
instituição dos bispos eram de direito divino? Até que ponto chegava a independência
deles em relação ao pontífice? As chaves tinham sido dadas unicamente a S.
Pedro? Nesta grave questão os jesuítas foram, como sempre, os campeões de Roma.
Lainez, então geral da companhia, no discurso mais monumental que se proferiu
na assembleia, sustentou que o poder de jurisdição pertencia unicamente ao papa
e que todas as outras jurisdições derivavam da sua. Essa opinião prevaleceu, e
a supremacia dos pontífices, que se pretendera restringir, consolidou-se ainda
mais; decidiu- se que só ele podia interpretar os cânones, só ele ditar as
regras da fé e da moral."
Nessa deliberação, que tão considerável
soma de poderes espirituais, verdadeiramente absolutos, enfeixava nas mãos de
um só indivíduo, conferindo-os implicitamente à função, sem os subordinar às
virtudes de que houvesse dado prévio
testemunho
o seu depositário e que deveriam ser, mas rarissimamente foram, o motivo da
investidura pontifícia, mais que em qualquer outra decisão adotada pelo concílio,
sob a preponderância
dos jesuítas, se patenteia a influência dominadora do AntiCristo, de que ao
demais se haviam eles constituído veículo preferencial.
Já no concilio ecumênico, a que nos
referimos precedentemente, reunido em Éfeso, no ano 431, essa influência
transpareceu visivelmente, quando fez proclamar o pontífice “romano,
o príncipe, a cabeça, a coluna da fé, o fundamento da Igreja”, destarte
proscrevendo a única, suprema, insubstituível e divina autoridade do Cristo,
como chefe, origem, esteio e base da Igreja, é verdade que de Deus, não dos
papas, homens frágeis e prevaricadores, do que temos citado, como ilustração,
alguns exemplos.
O concílio de Trento, fortalecendo
por forma discricionária a autoridade individual do pontífice romano, outra
coisa não fez que confirmar, a uma distancia de onze séculos, aquela
blasfema proclamação. Aproximação histórica esta, que se nos afigura oportuna,
reveladora que é da unidade de pensamento na urdidura do plano tenaz, obstinado
de demolição da Igreja Cristã, concebido pelo seu implacável, infortunado
antagonista.
Veremos, no seguimento destas páginas,
como aos desacertos da assembleia de Trento soube o vigilante Pastor Divino opor
salutares corretivos, suscitando emissários de sua
graça e bondade no seio dessa mesma igreja, para edificação da cristandade. Por
agora, completemos a narrativa das deliberações e resultados do concílio.
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