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Tratando do movimento reformista,
não devemos omitir uma referencia à preponderante figura do seu principal colaborador
doutrinário. Falamos de Filipe Melanchton que, dotado de grande serenidade de
espírito, conciliador por natureza e tendo recebido primorosa educação
intelectual, que os estudos clássicos haviam consolidado, estava destinado a
ser o elemento, em certos casos, ponderador do extremismo de Lutero e dos
tumultuários excessos de linguagem a que este se entregava. Em seus Lugares Comuns expôs claramente a
doutrina reformada, sustentando que a justificação se faz perante Deus
unicamente pela fé, a qual é determinada pela graça, independentemente da
vontade do homem.
Foi ele o principal autor da "Confissão de Augsburg", formulada
perante a dieta, que aí se reuniu em 1530, convocada e presidida por Carlos V,
contendo as afirmações fundamentais do novo Credo e dividida em três partes. A
primeira versava sobre os pontos gerais não contestados; a segunda sobre os
artigos que os luteranos admitiam parcialmente; a terceira sobre as cerimônias
e os usos em que diferiam da igreja romana, como a supressão do cálice, o
celibato dos padres, a missa como sacrifício, a confissão particular, os votos
monásticos, os jejuns e o poder episcopal.
"Melanchton, assustado
com a desordem, que ameaçava a sociedade, e com a tirania secular, que prometia
suceder a abolição do governo eclesiástico, redigiu a Confissão nos termos que lhe pareceram mais conducentes a aproximar
os dissidentes; não obstante, foi corrigida e remodelada muitas vezes."
Já anteriormente, quando em 1527,
Lutero, persuadido de que a sua interpretação da Escritura era a verdadeira,
publicara a ‘Instrução para os Pastores’,
como regra ele fé, prevalecendo-se
do ascendente que sobre ele exercia, Melanchton, sempre conciliador, modificou
alguns dogmas, como a negação do livre arbítrio e a ineficácia das boas obras.
"O seu
Corpus Doctrinae Christianae ficou
sendo considerado pelos protestantes como um dos seus livros simbólicos".
Duas outras personalidades surgiram
nessa época, a intervir de modo preponderante no movimento reformista, não devendo
ser, por isso, igualmente omitidas na breve resenha que dele nos temos proposto
fazer: Ulrich Zwinglio e João Calvino, cuja atividade, iniciada na Suíça, enquanto
a de Lutero se exercia particularmente na Alemanha, irradiou mais
tarde pela França e a Itália.
Mas a Reforma não estava destinada a
ser unicamente um movimento de retificação e de renovação religiosa:
correspondendo à ânsia de liberdade que trabalhava os espíritos, fatigados
de opressões tanto da parte dos príncipes e reis como da monarquia pontifícia,
os seus efeitos deviam simultaneamente refletir-se na esfera político-social. A
vulgarização da Biblia posta em prática por Lutero, levando ao conhecimento do
povo os princípios igualitários do Evangelho, suscitou legítimas
reivindicações, que tiveram infelizmente um
epílogo
sanguinolento.
"Proclamada
a liberdade religiosa - observa o historiador – os homens dos campos, que
encontravam no Evangelho Deus e o rei, mas não a nobreza, e liam nele que todos
os homens são iguais, quiseram também conquistar a liberdade civil e queixaram-se
acerbamente dos pequenos senhores, que os oprimiam, a exemplo dos grandes.
Cristovão Schappler, eclesiástico suíço, formulou os seus agravos e as suas
reclamações em doze capítulos, a um tempo moderados e ousados: devia ser licito
à gente do campo eleger padres encarregados de lhe anunciar, em toda a pureza,
a palavra divina. Se até então haviam tolerado que os tratassem como escravos,
apesar de resgatados pelo sangue do Cristo, não queriam mais semelhante
tratamento, a não ser que os convencessem, com a Escritura, de que estavam em
erro."
Como não fossem atendidos, apesar da
justiça de suas reclamações, e o próprio Lutero, convidado a servir de árbitro
entre eles e os senhores, depois de haver exortado os senhores
a serem justos e pregado aos vilões o dever do sofrimento e da servidão
resignada, se tivesse colocado do lado do poder, "de que já
participava", os camponeses se sublevaram em massa e cometeram excessos.
As suas desordenadas legiões foram, todavia, facilmente desbaratadas pelas
tropas regulares dos nobres e passadas a espada. Morreram cem
mil pessoas que usavam a cruz branca, praticaram-se cruéis atrocidades e os
chefes do movimento tiveram que expatriar-se, prosseguindo contudo as agitações
parciais que convulsionavam a sociedade civil.
"Essas
tempestades populares - observa ainda o historiador - não eram tanto resultado da Reforma como efeitos das mesmas causas que
a haviam produzido; todavia Lutero assustou-se, deixou de querer ser popular,
fez causa comum com os príncipes e sustentou abertamente a monarquia. Ao
eleitor Frederico, o Sábio, seu protetor moderado, havia já sucedido João, o
Constante, e esse príncipe o auxiliou sem restrições: aboliu nos seus Estados a
jurisdição eclesiástica e entregou o governo da Igreja nacional a uma com
missão de padres seculares."
Diferentes foram a feição e as
consequências políticas resultantes das doutrinas pregadas por Zwinglio e, em
seguida, por Calvino, como o veremos adiante.
Sendo, ao começo de sua insurgência,
cura de Glaris, Ulrich Zwinglio, indignado com a idolatria de que era objeto a
imagem da Virgem de Einsiedeln e com o anúncio da indulgência plenária afixado
em cartazes nessa povoação, entrou a pregar contra semelhantes práticas.
Nomeado pastor de Zurich, declarou que se cingiria exclusiva e integralmente ao
Evangelho; declamou contra os maus costumes, a venalidade do clero e a
autoridade opressiva da Igreja e expulsou o frade Bernardo Sansão que se
apresentara na cidade
para vender indulgências.
Admoestado pelo bispo de Constança,
declarou que repelia toda e qualquer decisão dos homens em assuntos de fé e que
não admitia nenhuma satisfação perante Deus, a
não
ser aquela que fora dada por Jesus Cristo.
Essa vigorosa propaganda agitou os
cantões suíços, formaram-se dois partidos e foram publicamente debatidos muitos
ritos e dogmas fundamentais, sendo afinal proibidas as procissões, os órgãos, a
adoração da hóstia e a extrema unção.
"Os reformadores suíços
- assinala o
historiador - iam, pois, muito adiante de
Lutero, que conservou diferentes práticas religiosas como as imagens, as velas,
os altares, o pão ázimo, a confissão auricular. Lutero queria conservar na
Igreja tudo que lhe não parecia expressamente contrário à Escritura: Zwinglio
suprimia tudo que se não podia provar com o seu texto. Um queria ficar com a
Igreja de todos os séculos, depurando-a do que repugnava à palavra divina; o
outro voltava aos tempos apostólicos e transformava a Igreja com a pretensão de
faze-la volver ao estado primitivo."
As consequências políticas dessas
divergências foram diametralmente opostas. Lutero, conservador, pregando num país
de príncipes, sustentou as ideias de absolutismo, favoreceu a usurpação dos
bens do clero e, na jurisdição mista; considerou a autoridade eclesiástica uma
instituição humana e um atributo da soberania; Zwinglio, republicano e radical
derribava o poder das igrejas, mas, em vez de o dar aos príncipes, o restituía
ao povo.
Da teoria passou-se aos fatos.
Exaltaram-se os ânimos e os dois partidos religiosos, de cujo embate veio
finalmente a resultar a divisão dos cantões em católicos, reformados e mistos,
pegaram em armas, um constituindo a "Liga
para defesa da Religião", sob o patrocínio de Fernando, rei dos
romanos, o outro organizando a "Confraria
Cristã", dirigida por
Zwinglio. Feriu-se uma batalha em Capel, aí morrendo Zwinglio, "que havia trocado a espada da palavra pela de
ferro e o púlpito por um cavalo."
Os católicos processaram o cadáver do reformador e o
fizeram em pedaços; mas um dos vencedores exclamou: "Fosse qual fosse a tua crença, foste um leal e sincero confederado.
Deus receba a tua alma."
Mais afortunado que Zwinglio - se é
fortuna conservar-se a vida terrestre, maculando-a de atrocidades - Calvino,
tendo abraçado em 1534 a Reforma, já triunfante, e propendendo para a
orientação radical de Zwinglio, pôs-se a interpretar a Bíblia segundo o seu
modo de ver. "Se, porém, abominava a
corrupção da igreja, também o indignou a desordem produzida pelos reformadores
e empreendeu por termo a essa desordem. Ao período, portanto, de emancipação de
Lutero seguiu-se o período organizador de Calvino, que pretendeu reconstituir a
Igreja."
Indicado para essa missão por suas
qualidades de caráter, sem os rasgos geniais, a violência e as ingenuidades de Lutero,
nem a inabalável convicção de Zwinglio, mas possuindo a lógica inflexível do
organizador, fez-se o medianeiro entre o papismo de um e o radicalismo do outro
e publicou em francês elegante a Instituição
da Religião Cristã, obra que
se espalhou nas classes ilustradas e, com o Catecismo publicado em 1538, veio a constituir o sistema doutrinário
calvinista.
Instalado em Genebra, que tornou-se
em poucos anos a Roma do protestantismo, desenvolveu uma ação implacável contra
os dissidentes do sistema que recebera o seu nome. Tendo Lutero demolido a
monarquia católica, ele, por sua vez, derrubou a aristocracia luterana e,
auxiliando as ideias republicanas de Genebra, aboliu o episcopado e confiou a
escolha dos ministros à comunidade religiosa. Estabeleceu um Consistório,
composto dos pastores, para administrar as coisas da religião e corrigir os
costumes. "Assim chegava ao governo
democrático, porém, ao contrário de tudo quanto se havia feito antes,
subordinou o poder civil ao religioso, preparando um centro para os revolucionários
futuros. O efeito do calvinismo, não moderado por nenhuma autoridade, devia
ser, portanto, maior, e maior também a cultura intelectual. Daí uma infinidade
de seitas e a emissão de tantas ideias políticas."
A correção dos costumes, confiada ao
consistório, produziu uma verdadeira inquisição, pois que até violava os
segredos das famílias, dando lugar a denúncias e a severas penalidades por
motivos, algumas vezes, insignificantes. Levando ao máximo extremo os seus
rigores, Calvino fez proibir todos os espetáculos, as danças, a alegria
estrepitosa, os divertimentos patrióticos.
A mesma intolerância que o levava a
crer que só devia existir uma Igreja e essa única devia ser a sua, levava
Calvino a proferir, "com uma cólera
fria e prosaica, as mais violentas injúrias contra
quem sobressaía, na primeira plana, entre os reformados. Logo que implantou a
sua profissão de fé, fez dela uma arma para condenar como impostores os outros
inovadores, que pela sua parte o excomungaram. Além disso, pois que essa
profissão tinha sido adoptada como lei do Estado, quem a não aceitava era
rebelde".
Puro regime inquisitorial.
Dessa feroz intransigência foi vítima,
entre outras personalidades ilustres, Miguel Servet, médico, astrólogo, editor de
Ptolomeu. "Tendo-se aplicado aos
estudos religiosos, numa época em que
cada qual proclamava um sistema de teologia, quis ser também reformador e
publicou um livro intitulado De Trinitate
Erroribus, etc. Christianismi Restitutio, no qual acusava Roma de ter
convertido Deus em três quimeras. Os católicos o toleraram na Itália. Calvino,
porém, não lhe pode perdoar umas cartas em que ele chamava às suas razões
insulsas e lhe perguntava: unde tibi
auctoritas constituenti leges? -
Quando, ao cabo de sete anos de espera, o pode haver às mãos, teve-o preso
muito tempo, infligindo lhe maus tratos. Servet pediu baldadamente que lhe
dessem um advogado, que abreviassem as delongas do processo, verdadeira tortura
moral, a mais cruel de todas. Pediu a Calvino a esmola de uma camisa; recusaram-na.
Afinal, foi queimado vivo, em nome de uma religião que rejeitava a autoridade,
e, como se as chamas não bastassem, ultrajaram-lhe até a coragem com que vira
avizinhar-se a morte (1553)."
Todos os cantões reformados aplaudiram
a execução e pediram que ele separasse por essa forma o trigo do joio.
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