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Era inevitável. Uma vez que a
igreja, pela obstinação dos seus ministros, se mostrava refratária aos métodos suasórios
com que o Senhor havia procurado reintegra-la em sua missão
apostólica e tutelar da cristandade, cumpria recorrer ao processo revolucionário,
contanto que cessassem de vez os abusos, prevaricações e escândalos que, em
assustador crescendo, ameaçavam de soçobro a ideia cristã no espírito do próprio
povo.
Abramos ainda uma vez a história e
registremos o seu depoimento relativo às preliminares da Reforma.
"Quem refletir na
profunda corrupção de uma sociedade que, tendo perdido os sentimentos cavalheirosos,
não havia adquirido ainda a serenidade da razão - comenta o historiador, numa
judiciosa síntese dos acontecimentos e da situação geral dos espíritos, no
começo do século XVI; - quem pensava, se assim se pode dizer, na paganização
dos costumes, das artes, da politica, das letras e do culto, não podia
desconhecer a evidente necessidade de uma reforma. Precisava dela especialmente
a Igreja, que ainda exercia poderosa influência sobre os espíritos. As chaves
de S. Pedro eram ambicionadas, não por abrirem as portas do céu, senão por
serem de ouro. Os cardeais nomeados por favor, por condescendência com este ou
aquele príncipe ou por dinheiro, não se faziam santos, como dizia Belarmino,
porque queriam ser santíssimos. A importância das famílias, e não o
merecimento, determinava a escolha dos pastores; a corte de Roma cuidava antes
de tudo de tirar proveito das vagaturas e das colações e de multiplicar os direitos
de chancelaria. Outro tanto faziam quase todos os bispos, para engrossarem os
rendimentos da diocese; por dinheiro conseguiam que lhes dessem coadjutores, o
que era um meio de transmitir os bispados aos aderentes ou, como então se
dizia, aos sobrinhos; se algum resignava a mitra, conservava a colação dos
benefícios, ou determinadas rendas.
"Como
se davam prelaturas aos ricos a título de benefícios, introduziu-se a ubiquidade,
isto é, a faculdade de cobrar os proventos desses benefícios em qualquer lugar
de residência; desse modo o mesmo indivíduo podia ser cardeal de uma igreja em
Roma, bispo de Chipre, arcebispo de Gloucester, primaz de Reims, prior da Polônia
e, ao mesmo tempo, tratar na corte do rei cristianíssimo dos negócios do
imperador.
"Em
vez de residirem na diocese, ocupados com a direção do rebanho espiritual,
bispos sem capacidade, mais amigos da boa vida que de bem viver, abandonavam-na
aos vigários, chamados sufragâneos, para que essa delegação lhes ficasse pouco
dispendiosa, fiavam-na de frades mendicantes, que não gastavam nada em luxo e
não recebiam retribuição. Esses religiosos, apesar de já terem muitos privilégios,
ainda os alcançaram mais de Sixto IV, que chegou a ameaçar com a deposição os párocos
que lhes não obedecessem ou de qualquer modo os molestassem. Foram encarregados
da venda das indulgências, mas as próprias vantagens, que lhes advinham do bom
conceito em que eram tidos, comprometeram a sua respeitabilidade, e a sua ordem
tornou-se tão mundana como as outras. Intrigava-se, para lhe alcançar as
dignidades; "perpetravam-se assassínios, não somente com veneno, senão às
claras, a faca, a espadeirada, para não dizer a tiro."
A esse tristíssimo papel -
comentemos - fora reduzida a Ordem franciscana, com tão elevado objetivo
fundada pelo seráfico patriarca! Mas para isso é que o Espírito do mal sugerira
à cúria romana submete-la ao mesmo regime das antigas ordens. Com o fim de a
aniquilar, como se vê.
Prossigamos contudo a transcrição:
"Na Alemanha,
especialmente, os filhos das famílias ilustres monopolizavam os bispados e
levavam para a igreja as paixões e os costumes seculares. Alguns prelados, que
ao mesmo tempo eram príncipes, descuravam e desprezavam o povo, que ficava sem
alimento espiritual e se escandalizava com os desregramentos de tais pastores e
com a opulência que via empregada em fins inteiramente diferentes daqueles a
que a tinham destinado a Igreja e os devotos.
"Durante
a Idade Média algumas vozes clamaram contra o demasiado poder dos pontífices, e
assim fizeram Arnaldo de Brescia e os albigenses; mas os inovadores foram pouco
atendidos. Todavia a autoridade pontifícia tinha sido abolida e desprestigiada
pela transferência da Santa Sé para Avignon e pelas contendas com Felipe, o
Belo e outros reis."
"Obedecendo
à tendência geral do século para constituir principados sobre as ruínas das repúblicas
e das comunas, querendo tirar vantagens mundanas do poder espiritual, os papas
aplicavam-se avidamente a promover os seus interesses temporais; para assegurarem
à família elevadas posições, afagavam os poderosos, cuja oposição temiam, e ao
mesmo tempo oprimiam os fracos, para os explorar. Assim foi que puseram em ação
essa política vergonhosa, tecida de fraudes e violências, que serviu para
fortalecer a sua autoridade terrestre, em detrimento dos pequenos senhorios da
Romanha. Vimos Alexandre VI dar exemplos detestáveis; se, porém, como homem foi
perverso e, como papa, escandaloso, é força confessar que algum bem fez como príncipe,
embora por meios indignos, e que os contemporâneos o aplaudiram, por ter
reprimido as múltiplas tiranias locais."
Passemos em silêncio sobre as
façanhas de Júlio II, para de preferência nos determos no pontificado de Leão X
que, entre outros característicos dignos de nota, apresenta o interesse de ter
tido, por último, que enfrentar a agitação provocada pela Reforma.
De par com certas predileções
mundanas, bem pouco adequadas à espiritualidade de suas funções, prestou contudo
esse papa alguns serviços à igreja. "Esforçou-se
por fazer desaparecerem da Boêmia os restos dos hussitas, propagou o
catolicismo entre os russos, fundou igrejas na América, procurou converter os
abissínios, além disso conseguiu sufocar o cisma com que o sínodo de Pisa
ameaçava a Igreja, fez abolir a pragmática sanção na França e diligenciou ligar
os príncipes cristãos, para os opor aos turcos. "
"Mas - adverte o
historiador - o paganismo tinha invadido a corte pontifícia, onde se favoreciam
todos os homens de merecimento, sem se curar do uso que faziam do seu talento.
Bembo escreve da chancelaria apostólica que Leão X foi elevado ao pontificado
"por mercê dos deuses imortais". Nos seus versos, o gozo de ver a sua
dama parece-lhe mais doce que os prazeres dos eleitos nos céus; chama "colégio
dos augures" o colégio cardinalício", etc.
"É raro -
acrescenta - o não influir a forma sobre as ideias; o brilho da antiguidade
tinha causado tal deslumbramento que já se não via o Cristianismo.
Generalizara-as uma preguiça zombeteira e voluptuosa, a que repugnava o trabalho
de pensar e para a qual a filosofia era a indiferença superficial, acompanhada
pela alegria dos banquetes e pelos prazeres das artes. Os costumes nem queriam
parecer regra dos Bembo, monsenhor della Casa, o cardeal Hipólito D’Este e
muitos outros tinham filhos e não os escondiam. O cardeal Bibiena tinha mandado
construir sobre o Vaticano uma vila ornada de ninfas voluptuosas, pintada pelo
famoso Raphael; felicitava-se por Julião de Médicis levar para Roma a princesa
sua esposa. Toda a cidade exclamava, diz ele: "Louvado seja Deus de ora
avante! porque só aqui faltava uma corte de damas, e essa princesa há de ter
uma , o que tornará perfeita a cruz romana". Dirigia todas as magnificências
da corte de Leão X, os divertimentos do carnaval e as mascaradas.
"Foi ele que fez
com que o papa mandasse representar a Mandrágora,
de Machiavel, e a sua Calandra,
cujas cenas, que até num prostíbulo pareceriam licenciosas, fizeram rir muito
Leão X, Isabel d 'Este e as damas mais elegantes de Itália?"
"Ronsard, Montaigne,
Bodin, Maquiavel, etc., só têm admirações para a civilização anterior ao
Cristianismo. Erasmo invoca o nome de Sócrates, e Mancílio Ficino acende uma lâmpada
diante do busto de Platão. Ia-se mais longe ainda: por dedicação à antiguidade,
Pedro Pomponacio, mau filósofo e insignificante
lógico, mas falador engenhoso e animado, sustentava que as almas eram mortais.
Em Roma, "quem não tinha a cerca dos dogmas da Igreja alguma opinião errônea
e herética não parecia gentil-homem e bom cortezão."
"Por uma parte
havia afetação de conhecimentos e costumes clássicos, por outra, nos púlpitos e
nas reuniões eclesiásticas imperava a ignorância. A teologia tomava quase
sempre o lugar do Evangelho; os sermões eram de um gosto detestável; os pregadores
misturavam o profano com o sagrado, o jocoso com o sério, e buscavam o novo, o
extravagante, o surpreendente."
"Entre o povo
espalhavam-se pregadores vulgares, que lhe ensinavam erros, superstições e
terminavam invariavelmente as prédicas pedindo dinheiro."
"O
alto clero, absorvido por cuidados inteiramente mundanos, não pensava em
instruir-se nas coisas da fé, que era obrigado a defender e a conservar
impoluta; os eclesiásticos de categoria inferior, como sempre, regulavam o seu
procedimento pelo dos chefes. Os conventos, outrora centros de atividade,
estavam submersos no torpor da velhice e no relaxamento da opulência. A
imprensa deixara desocupados os muitos frades que copiavam manuscritos, e eles,
na sua ociosidade, puseram-se a discutir, com pouca arte e muitas sutilezas,
questões de medíocre importância, ao passo que a literatura nascente criticava
as inépcias escolásticas que tinham ocupado o lugar da verdadeira ciência."
E, ao mesmo tempo que a dúvida
erudita, naquele século de renovação, contribuía para lançar maior perturbação
nos espíritos, a crítica irreverente se desenvolvia, vergastando os vícios da corte
de Roma e os abusos que se tinham introduzido na igreja, com uma liberdade que
constituía "circunstância notável nessa época", não obstante os crescentes
rigores da Inquisição. "Dante e
Petrarca atacavam com grande violência aqueles abusos e, todavia, não
incorreram na menor censura: os seus livros nem sequer foram proibidos . As
novelas circulavam, cheias de argúcias e de aventuras escandalosas atribuídas
aos frades."
Para agravar esse estado de anarquia
das inteligências e desmoralização geral, surgiu, como nota, de certo modo,
culminante, o fato da venda das indulgências, ignóbil comércio, que ofereceu a
Lutero o decisivo pretexto para o rompimento das hostilidades.
“A venda das
bulas de indulgência - refere o historiador - tornou-se um dos mais pingues rendimentos da cúria. O povo via no
dinheiro que dava o preço da coisa santa, os frades encarregados da cobrança
encareciam profundamente a virtude do perdão, e a percentagem, que recebiam, do produto da venda lhes estimulava o zelo. Os
concílios de Latrão, de Viena e de Constança haviam decretado severas
penalidades contra esse tráfico; mas Leão X o praticou em escala maior que
nunca, para ocorrer às enormes despesas da sua corte e habilitar-se para duas
grandes empresas: uma cruzada contra Selim e a construção de um suntuoso templo."
"João Tetzel,
dominicano de Pirna, encarregado pelo arcebispo eleitor de Mogúncia de cobrar
na Alemanha o rendimento das indulgências, desempenhou-se da incumbência de
modo escandaloso: atravessou a Saxônia com caixas cheias de cédulas já
assinadas. Quando chegava a alguma povoação, arvorava uma cruz na praça e
apregoava a sua mercadoria: Comprem, comprem, dizia o especulador, porque ao
som de cada moeda que cai no meu cofre sai uma alma do Purgatório. O povo acudia em tropel a trocar talcos e
sequins por indulgências. O negócio fazia-se até nas tabernas; só de Freyburg
levou Tetzel dois mil florins, com extremo desprazer do eleitor da Saxônia e
profunda indignação das pessoas verdadeiramente religiosas.
"Essa
Indignação animou Martinho Lutero a levantar o estandarte de uma revolução
religiosa".
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